Migalhas Marítimas

Súmula da jurisprudência do tribunal marítimo: Mais uma auspiciosa novidade da corte do mar

A coluna aborda o 90º aniversário do Tribunal Marítimo, criado em 1934 e atualmente regido pela lei 2.180/54. Destaca a importância da recente resolução-TM 64/24, que introduz súmulas de jurisprudência no regimento interno do Tribunal.

22/8/2024

Criado em 5/7/34, através do decreto 24.585/34, na época em que a República Federativa do Brasil ainda era República dos Estados Unidos do Brasil, o Tribunal Marítimo completou seus 90 anos de existência em 2024, sagrando-se na história do país como importante órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, enquanto tribunal técnico e especializado, responsável por julgar acidentes e fatos da navegação e manter o registro geral da propriedade marítima.

Com o passar dos anos, o Tribunal, hoje regido pela lei 2.180/54, adquire cada vez mais importância no contexto de aplicação do Direito Marítimo, disciplina que, não obstante apresente faces inerentes às mais diversas áreas, não se enquadra como subcategoria de qualquer delas, mas, sim, como disciplina própria, tipicamente transversal e autônoma, conforme exposto em texto anterior desta coluna1, motivo pelo qual o caráter técnico e especializado das decisões tomadas no âmbito do Tribunal Marítimo afigura-se essencial nas soluções dadas a cada caso, diante das especificidades inerentes à área.

Nesse sentido, face à transversalidade característica do Direito Marítimo, muitas são as discussões travadas entre os maritimistas acerca de quais institutos poderiam ser aproveitados das demais disciplinas com vistas à aplicação no âmbito do Tribunal Marítimo, no intuito de aprimorar o exercício de sua jurisdição, face aos diversos tipos de casos originados em todo o país, a envolver embarcações nacionais e estrangeiras.

Na esfera dessas discussões, merecem destaque as que tratam especificamente dos institutos de Direito Processual que podem ser aplicados ao Direito Processual Marítimo, de modo a adequá-lo às constantes mudanças e evoluções inerentes à sociedade desde sua criação, ao longo dos 90 anos de existência do Tribunal Marítimo, acrescentando maior qualidade à prestação jurisdicional, sem que a autonomia, tecnicidade e tradição do órgão sejam perdidas, mas, como dito, aprimoradas.

Por óbvio, o Direito Marítimo ou o Direito Processual Marítimo não se vinculam a qualquer alteração que sofram as matérias com as quais se conectam em algum nível, podendo aproveitar delas o que lhes convêm, no entanto, ideais como os de legalidade, segurança jurídica, isonomia, celeridade e eficiência devem servir como parâmetros atuais para todos os procedimentos, sejam eles administrativos ou judiciais, em garantia e ampliação dos direitos fundamentais defendidos pela Constituição da República.

Dessa forma, veio em boa hora a resolução-TM 64/24, que altera o regimento interno processual para introduzir a súmula de jurisprudência do Tribunal Marítimo, a qual, nos termos da própria resolução, possui o escopo de “conferir segurança jurídica às decisões do Tribunal Marítimo e de resguardar a eficiência e a celeridade dos processos de julgamento de acidentes e fatos da navegação”.

Introduzindo apenas dois novos artigos no regimento interno (167-A e 167-B), a breve, porém relevantíssima resolução, traz consigo a concretização dos princípios fundamentais consagrados no ordenamento pátrio, dispondo sobre o procedimento para criação, cancelamento ou alteração dos enunciados numerados que irão compor a súmula, a serem deliberados em sessão plenária por maioria absoluta (art. 167-A, §2º), com vias de traduzir, de forma sucinta, deliberações anteriores do Plenário do Tribunal sobre determinada matéria de sua competência.

Ademais, dispõe a nova resolução que a citação do enunciado da súmula por seu número correspondente, inclusive, dispensará a referência a julgados proferidos pelo Tribunal no mesmo sentido, conforme art. 167-A, §6º, o que demonstra significativo valor persuasivo, além de estipular que qualquer juiz poderá propor a revisão da jurisprudência traduzida na súmula, diante de novos casos (167-B, caput).

Após a proposição e consequente julgamento do caso, mediante aprovação da maioria absoluta, será redigido pela comissão de jurisprudência o projeto de súmula que, posteriormente, virá a ser aprovada pelo Tribunal em sessão (art. 167-B, §1º).

Confira-se:

CAPÍTULO XIV-A

DA SÚMULA DE JURISPRUDÊNCIA

Art. 167-A. A jurisprudência firmada pelo Tribunal será compendiada na súmula do Tribunal Marítimo.

§ 1º A Súmula constituir-se-á de enunciados numerados, resumindo deliberações do Plenário do Tribunal Marítimo sobre matéria de sua competência.

§ 2º A inclusão de enunciados na súmula, bem como a sua alteração ou cancelamento, serão deliberados em sessão plenária, por maioria absoluta.

§ 3º Ficarão vagos com a nota correspondente, para efeito de eventual restabelecimento, os números dos enunciados que o Tribunal cancelar ou alterar, tomando os que forem modificados novos números na série.

§ 4º Os adendos e emendas à súmula, datados e numerados em séries separadas e contínuas, serão publicados no e-DTM.

§ 5º As edições ulteriores da súmula incluirão os adendos e emendas.

§ 6º A citação do enunciado da súmula pelo número correspondente dispensará, perante o Tribunal, a referência a outros julgados no mesmo sentido.

Art. 167-B. Qualquer juiz poderá propor, em novos feitos, a revisão da jurisprudência compendiada na súmula.

§ 1º Proferido o julgamento, em decisão tomada pela maioria absoluta dos juízes, a Comissão de Jurisprudência deverá redigir o projeto de súmula, a ser aprovada pelo Tribunal em sessão.

Cabe ressaltar que, anteriormente à reforma trazida pela edição da resolução-TM 64/24, o regimento interno do Tribunal detinha pouquíssimas menções à palavra jurisprudência, sendo todas elas relacionadas à composição da Comissão (arts. 9º, 12 e 13).

A lei orgânica do Tribunal Marítimo2, de igual modo, possui somente uma menção ao vocábulo, em seu art. 32, III. Ainda, é certo que nenhum dos dois mencionava súmulas em qualquer dispositivo, antes da reforma, e sequer havia menção à segurança jurídica de forma expressa.

Com a chegada da nova resolução, esse cenário se transforma.

Logo de seu preâmbulo, extrai-se a definição da súmula de jurisprudência como sendo o entendimento consolidado adotado por um tribunal a respeito de um tema específico de sua competência, enfatizando-se a necessidade de “conferir segurança jurídica às decisões do Tribunal Marítimo e de resguardar a eficiência e a celeridade dos processos de julgamento de acidentes e fatos da navegação”, em homenagem aos princípios constitucionais que, hoje, exercem papel fundamental no ordenamento jurídico pátrio.

Assim, a súmula é um entendimento resumido, ou seja, verdadeira síntese a traduzir o entendimento da Corte acerca de uma determinada matéria, resultante de um largo conjunto de decisões proferidas com base em um mesmo entendimento.

Desse modo, o Tribunal Marítimo poderá criar súmulas de jurisprudência que tratem das diversas matérias de sua competência, envolvendo o julgamento de acidentes e fatos da navegação, de modo a promover, por exemplo, a edição de enunciados que envolvam o abalroamento de embarcações, cuja elevada incidência de casos semelhantes poderá ensejar a conveniência de se ter um entendimento sumulado, uniformizado, como forma de promover a segurança jurídica e a celeridade processual.

Outrossim, no preâmbulo da resolução-TM 64/24, há referência expressa ao art. 30 da lei de introdução às normas do Direito brasileiro, com mais uma menção ao objetivo de aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, em clara inspiração no dispositivo que determina que “as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”, extraído da LINDB.

Por fim, é possível verificar determinante influência do CPC/15, na medida em que consta na resolução o expresso “dever dos tribunais [de] uniformizar sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente”, disposição que se extrai, em seus exatos termos, do art. 926, do CPC/15, o qual cria para os tribunais verdadeiro dever de uniformização, a ser satisfeito através da edição de enunciados de súmula que correspondam à sua jurisprudência dominante, em analogia ao art. 926, § 1º, do CPC/15.

Segundo Didier3, o dever de uniformizar pressupõe que o Tribunal não seja omisso quanto às suas divergências internas sobre a mesma questão jurídica, tendo a obrigação de resolver essa divergência e, por consequência, uniformizar seu entendimento sobre o mesmo assunto, de modo que, ao editar enunciados de súmula, os Tribunais devem se ater às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação, nos termos do art. 926, §2º, do CPC. A súmula, portanto, consiste em verdadeira norma geral e abstrata criada a partir de casos concretos.

No que tange ao dever de manter estável a jurisprudência, verifica-se que a nova resolução traz, em seu art. 167-A, §2º, a necessidade de deliberação em sessão plenária, por maioria absoluta, a fim de que possa ser alterada ou cancelada súmula preexistente, não obstante a revisão de seu conteúdo possa ser proposta por qualquer juiz diante de novo caso. Tal fato demonstra a preocupação com a estabilização dos entendimentos, ao passo em que estabelecido procedimento para alteração ou cancelamento de enunciado anteriormente editado pela Corte (overruling), em respeito à segurança jurídica.

Sob outro olhar, o dever de integridade da jurisprudência advém da ideia de unidade do Direito, o qual deverá embasar todas as decisões, impedindo que se extraia do mesmo ordenamento, diante de casos similares, julgamentos fundados em argumentações arbitrárias de sentidos diversos. Por essa lógica, deve-se compreender o ordenamento jurídico como um sistema de normas, de modo que leis, decretos, portarias e resoluções exprimem a integridade das normas de Direito Marítimo, ao passo em que a jurisprudência, advinda do Direito, deve de igual maneira ser íntegra, entendida sob a ótica de sua unidade.

Aliada ao dever de unidade da jurisprudência, está a coerência que, por sua vez, carrega consigo a ideia de não contradição, aliada à conexão positiva de sentido4 entre os entendimentos a serem emanados da Corte Marítima. Neste sentido, a jurisprudência deve ser íntegra, a interpretar o ordenamento jurídico em sua unidade, vedadas as decisões arbitrárias, assim como deve ser coerente, dialogando com precedentes anteriores, quer seja para segui-los, ou, mesmo, superá-los, de forma fundamentada.

Conforme já mencionado, o Tribunal Marítimo não está vinculado às disposições inerentes às matérias com as quais se relaciona em algum grau. No entanto, entendemos que a elaboração de súmulas próprias da Corte Marítima, assim como funcionam os precedentes, tornar-se-ão expressivos fundamentos das decisões técnicas e jurídicas por ela emanadas, exercendo importante papel persuasivo a ser explorado pelas partes no exercício do contraditório e da ampla defesa.

É nesse sentido que a introdução de novos artigos no regimento interno, para tratar especificamente da criação das súmulas, cuja função precípua se exprime na uniformização de entendimento nos julgamentos emanados pelo Tribunal, traduz relevantíssima inovação à Corte Marítima, que manifesta cada vez mais sua adequação e crescente importância dentro da ordem jurídica nacional. 

As súmulas a serem criadas pelo Tribunal Marítimo, sem dúvidas, trarão significativas alterações à prática forense, com positivas repercussões nacionais e, inclusive, internacionais, no que tange ao julgamento dos acidentes e fatos da navegação, haja vista o importante papel na padronização do entendimento emanado pela Corte, acrescentando ainda mais isonomia e transparência aos seus julgados, em homenagem à segurança jurídica.

A Resolução-TM 64/24 foi publicada no e-DTM 86, do dia 26/6/24, e entrará em vigor 60 dias após sua publicação, conforme disposto no art. 2º, de modo que começará a produzir efeitos nos próximos dias, em 26/8/24, momento a partir do qual poderá ter início a proposição e criação dos enunciados da súmula.

________

1 Ferrari, Sérgio. O Direito Marítimo: Breve reflexão sobre seu conceito e lugar na ciência jurídica.  Migalhas Marítimas, 16/05/2024.

2 Lei 2.180/54.

3 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sistema Brasileiro de Precedentes Judiciais Obrigatórios e os Deveres Institucionais dos Tribunais: Uniformidade, Estabilidade, Integridade e Coerência da Jurisprudência. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ed. 64, p. 135-147, 2017.

4 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 12ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2011, p. 140.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.