Migalhas Marítimas

Núcleo de justiça 4.0 – Direito marítimo, uma experiência em construção

O TJ/SP criou o Núcleo de Justiça 4.0 – Direito Marítimo (NDM), especializado em Direito marítimo, portuário e aduaneiro. Após nove meses, o NDM tem 390 processos em andamento, oferecendo decisões técnicas e jurídicas com segurança, em um formato digital que cobre todo o Estado.

8/8/2024

Em 27/11/23 foi instalado o Núcleo de Justiça 4.0 – Direito Marítimo (NDM), do TJ/SP.

Na data em que finalizei este artigo, 13/7/24, o NDM do TJ/SP completava quase nove meses de sua efetiva implantação, possuindo, em andamento, 390 processos.

O NDM, convém recordar, foi uma iniciativa inédita no país quando o tema é a especialização do Direito marítimo, portuário e aduaneiro.

Há experiências anteriores quando o tema é especialização, mas são diferentes do NDM, que cuida exclusivamente de julgar as demandas que tenham como objeto o Direito marítimo, portuário e aduaneiro.

Não há qualquer outra competência que lhe é agregada.

No formato inteiramente digital, o que lhe permite abarcar a competência de todo o território do Estado de São Paulo, o NDM do TJ/SP, está habilitado para conferir segurança jurídica, na perspectiva de uma melhor decisão, a partir do conhecimento técnico/jurídico do julgador.

Com o olhar no retrovisor, não foi fácil chegar até aqui.

A construção do NDM do TJ/SP foi fruto de uma sempre necessária parceria entre OAB e Poder Judiciário que, somando esforços, após quase um ano de gestação, viabilizaram entregar um projeto viável, capaz de atender às necessidades e interesses de todos os setores, direta ou indiretamente, interessados na especialização.

Especialização é uma aspiração comum da advocacia e do Judiciário.

Fruto do seu ineditismo, o NDM do TJ/SP enfrentou resistências compreensíveis. O desconhecido assusta em qualquer setor, com mais razão nesse setor em que as demandas costumam ser de vulto econômico e de elevada repercussão nas escolhas empresariais dos interessados.

Mas, nos fixemos no presente, com o olhar no futuro.

Após esse tempo de gestação, o NDM do TJ/SP se consolidou.

Considero uma das grandes vantagens da especialização, no formato de Núcleo de Justiça 4.0, a possibilidade da indicação de mais de um juiz para atuar como seu integrante. No NDM do TJ/SP, somos em três magistrados, selecionados por edital interno, dentre os juízes da comarca de Santos, estabelecido como critério de escolha a antiguidade na carreira.

O NDM do TJ/SP não é um órgão colegiado.

Cada juiz que o integra possui absoluta independência funcional para conduzir o seu processo, tomando as decisões que o processo lhe exigir, segundo a sua exclusiva convicção. Não há qualquer interferência externa, seja do TJ/SP, seja do seu coordenador, este com mera função administrativa de organização das suas atividades.

Sobre esse ponto, é interessante observar que do julgador se exige ser imparcial e independente, mas não se pode esperar neutralidade.

O julgador, no estado atual da técnica, ainda é um ser humano e como tal carrega suas próprias convicções, construídas ao longo da sua experiência de vida, o que, inevitavelmente, se reproduz no julgamento do processo.

É por essa razão que, processos envolvendo a mesma matéria, possam receber julgamentos diferentes, sendo esse fato inerente ao sistema jurídico e essencial para o Estado Democrático de Direito, na perspectiva de que diferentes visões de mundo possam ascender ao processo, cabendo, se o caso, aos órgãos de unificação proceder com a estabilização do tema.

O NDM do TJ/SP, espera-se, possa contribuir para a agilidade na tramitação e julgamento dos processos, mas a agilidade não é o seu objetivo.

Acima da agilidade está a segurança jurídica que nasce de um bom julgamento. Esperar que o julgador seja ágil e ao mesmo tempo construa uma decisão fundamentada, a partir da análise detalhada dos elementos do processo, é uma verdadeira utopia.

O juiz cumpridor de metas não se ajusta com o conceito de segurança jurídica. É preciso buscar o equilíbrio.

Virtus in medium est!1

É preciso, pois, compreender que há causas que permitem um julgamento mais célere, seja pela reiteração de casos, seja pela pouca complexidade técnico/jurídica da matéria.

Porém, haverá casos que se exigirá do julgador maior tempo de aprendizado e reflexão sobre o objeto do processo, exigindo-lhe que volte o olhar para os argumentos das partes, para a doutrina especializada e para a jurisprudência dos Tribunais.

Aliás, é um desejo que o próprio NDM do TJ/SP seja um condutor da jurisprudência nacional a respeito da matéria, produzindo decisões capazes de orientar a aplicação do Direito em todo o território nacional.

O NDM do TJ/SP, por exemplo, em caso sob minha condução, julgou demanda que envolvia a chamada “Guarda Provisória”, questão de alta relevância para o setor portuário, oportunidade em que realizamos audiência para oitiva de especialistas, iniciativa até então incomum em processos de primeiro grau, que resultou em relevantes contribuições para a melhor compreensão do tema e, por consequência, em um julgamento mais técnico.

Não há dúvida de que a maior contribuição do NDM do TJ/SP está no campo da especialização dos julgamentos.

A ideia da especialização é exitosa há muito tempo no âmbito do Poder Judiciário, que com ela sempre trabalhou em maior ou menor grau, veja-se, por exemplo, a existências de varas cíveis e criminais em menor grau de especialização e as varas empresariais em maior grau de especialização.

O NDM do TJ/SP representa a especialização em grau máximo, segmentando na sua competência matérias de elevada complexidade, cujo rigor técnico exige análise e decisão por magistrados especializados a partir do estudo constante e da repetição de casos julgados.

Em outro caso sob a minha condução, a exemplificar o êxito da especialização, o NDM do TJ/SP decidiu sobre a validade da cobrança de frete adicional em razão de condição climática extrema, em região específica do país, demanda que exigiu rigor técnico na sua apreciação, pois envolveu não apenas conceitos de Direito da responsabilidade civil contratual, mas também conceitos técnicos de navegabilidade da embarcação.

Um outro destaque importante é a constante interação entre o NDM do TJ/SP e outras instituições de extrema importância para o setor, em especial, cito a ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários e o TM - Tribunal Marítimo, sem deixar de relevar as associações representativas dos vários setores envolvidos nesse ramo de negócios.

Em alguns casos sob a minha condução, a ANTAQ, com fundamento no art. 138, do CPC2, foi nomeada como Amicus Curiae, oportunidade em que trouxe aos autos relevantes contribuições para o julgamento dos processos, não apenas jurídicas, mas de ordem técnica/operacional, fator importante a ser considerado na decisão.

Aguardo, ainda, caso a envolver acidente ou fato da navegação, oportunidade em que será possível valer-se da contribuição do prestigiado Tribunal Marítimo, Corte que produz acórdãos de elevada técnica.

O NDM é uma conquista sedimentada, que serve de exemplo para outros Estados da Federação, mas precisa avançar.

Para nós, juízes, a reflexão da necessidade do estudo permanente, em um setor com uma profusão de atos normativos e avanços técnicos diários, que exigirão um novo olhar para os casos em julgamento.

Se o julgamento diário nos confere a confiança de saber como julgar, novos casos virão, novas questões aparecerão, e para elas precisamos estar preparados, antecipados nos estudos e discussões da academia.

Para a advocacia, só ouso falar sob a perspectiva de quem olha o processo “do outro lado do balcão”, na certeza de que os bons profissionais, comuns nesse ramo do direito, auxiliam o Poder Judiciário com a oferta de manifestações dotadas de rigor técnico, com detalhada explicação da matéria de fato, a permitir a exata compreensão da controvérsia.

Esse papel da advocacia na apresentação da causa é fundamental para que o magistrado possa proferir a melhor decisão de mérito possível.

O sistema de justiça do Estado de São Paulo, hoje, com a criação e consolidação do NDM do TJ/SP, está preparado para oferecer ao setor marítimo, portuário e aduaneiro uma alternativa viável e segura quanto ao melhor julgamento possível de suas demandas.

A especialização não é uma opção, é a única solução!

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1 Frase do filósofo Aristóteles que em tradução literal significa “a virtude está no meio”.

2 Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação. § 1º A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3º. § 2º Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae. § 3º O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas.

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.