Migalhas Marítimas

Como a inteligência artificial pode contribuir para a eficiência da indústria marítima

O tema da IA na indústria marítima toma contornos ainda mais relevantes quando verificado que, hoje, as estimativas apontam que mais de 75% dos acidentes com embarcações decorrem de erro humano.

1/8/2024

Em artigo publicado nesta coluna em 1º.06.2023, foram abordadas parte das discussões que vêm sendo travadas no setor marítimo com relação à implementação de novas tecnologias na indústria, sobretudo no que diz respeito ao uso da inteligência artificial. Como destacado por ocasião daquele artigo, as tecnologias de IA podem ser aplicadas nas mais variadas atividades desenvolvidas no setor, desde a automatização de tarefas como o planejamento das rotas marítimas até a otimização da organização e armazenamento de cargas nos terminais portuários. 

O tema da IA na indústria marítima toma contornos ainda mais relevantes quando verificado que, hoje, as estimativas apontam que mais de 75% dos acidentes com embarcações decorrem de erro humano1. Dessa forma, a utilização de novas tecnologias como a IA poderiam promover a segurança das operações marítimas, contribuindo também para uma maior eficiência e desenvolvimento do setor. 

Mais recentemente, as discussões sobre IA nas operações marítimas têm se enveredado para outros caminhos como, por exemplo, o da descarbonização da indústria. Com efeito, em um dos maiores fóruns mundiais sobre o assunto, foi noticiado que a Google – gigante do ramo digital – estaria desenvolvendo um sistema de IA para implementação nos ramos de transporte marítimo e logística. A ideia do programa seria, justamente, o de otimizar as operações no mar, conectando embarcações em rota de navegação, digitalizando a comunicação com cliente e autoridades aduaneiras e – sobretudo – reduzindo custos e emissões de carbono2. 

Em primeiro lugar, por mais trivial que o apontamento pareça, a inteligência artificial possibilita que empresas do setor se organizem no tocante à emissão de gases de carbono e, logo, monitorem e implementem eventuais metas para a sua redução. Mais especificamente, a IA, aliada a tecnologias de machine learning, poderia auxiliar na previsão de padrões de emissão de gases – ao avaliar determinada rota de operação, embarcação utilizada e/ou carga transportada – e planejar estratégias para a otimização nessa emissão, com vistas a controlá-la e reduzi-la. 

Grosso modo, trata-se da análise de dados no setor marítimo, orientada, justamente, para a sua descarbonização. Nesse sentido, a ideia é que quanto mais players do setor adiram a tal tecnologia em suas operações – compartilhando tais dados com empresas especializadas no fornecimento desse serviço – maior será a qualidade das previsões e monitoramento das emissões de carbono, em um esforço conjunto para o desenvolvimento sustentável pela via marítima. 

Além disso, tal como adiantado anteriormente e no texto da coluna de 1º.06.2023, a IA também despenha um papel crucial no desenvolvimento e utilização de navios autônomos – isto é, embarcações que podem prescindir inteiramente de tripulação – contribuindo para uma navegação mais eficiente e mais sustentável. Isso porque os navios autônomos também poderão promover a utilização de energia limpa, como biocombustíveis ou combustíveis sintéticos – geralmente mais caros que combustíveis fosseis. 

Em outras palavras, o que até então não era considerado muito atrativo para empresas do setor – em virtude do preço pouco competitivo de combustíveis “limpos” quando comparados com os fosseis – poderia ser mitigado face à alta autonomia conferida aos navios autônomos por meio do uso da IA. Consequentemente, o sucesso na utilização de navios autônomos também teria o condão de reduzir a dependência de outros modais, em especial o rodoviário, sabidamente emissor de gases de carbono. 

Outra possível aplicação da inteligência artificial no setor marítimo diz respeito ao mercado de seguros marítimos, em que a análise de dados poderá ter impacto relevante na precificação dos respectivos prêmios. Com efeito, a utilização de algoritmos sofisticados e técnicas de machine learning através da IA permitem que as seguradoras processem grande volume de dados em tempo real, incluindo informações meteorológicas, padrões de navegação e histórico de acidentes. Isso permite uma avaliação mais precisa dos riscos associados a diferentes rotas, embarcações, cargas transportadas etc, resultando em prêmios de seguros mais personalizados e adequados – além, claro, de também contribuir com a prevenção de acidentes em geral, tendo em vista a possibilidade de detecção precoce de alguns sinistros.

Por fim, a implementação de sistemas de IA também têm o condão de aprimorar e aumentar a eficiência nas operações portuárias. Afinal, essa tecnologia também poderá ser utilizada para gerenciar o fluxo de cargas em transporte pela via marítima, prevendo demandas e ocupação dos portos, otimizando operações rotineiras de carga e descarga e até mesmo auxiliando na preparação de documentos para o desembaraço aduaneiro da mercadoria.

A título de exemplo, cite-se a possibilidade de a IA prever com precisão a demanda por movimentação de contêineres em determinado porto, permitindo uma alocação mais eficiente de guindastes, caminhões e trabalhadores. Isso não só reduziria o tempo de espera para o descarregamento das embarcações, mas também minimizaria congestionamentos internos no próprio porto, com uma melhor organização das mercadorias transportadas. 

Por sua vez, o processo de desembaraço aduaneiro da mercadoria no porto de destino poderia ser acelerado através da análise inteligente da documentação necessária à liberação da carga. Isto é, ao fazer uso de base de dados nacionais e internacionais, por exemplo, a IA poderia rodar verificações automatizadas de conformidade regulatória – tais como aquelas relacionadas à classificação dos bens, aplicação de regramentos tarifários, leitura dos termos do conhecimento de embarque, etc – mitigando a ocorrência de fraudes e, assim, garantindo que as mercadorias estejam de acordo com as leis e regulamentação aplicáveis. 

Além disso, de igual modo à descarbonização no que diz respeito aos combustíveis utilizados para as embarcações, a IA poderia auxiliar na otimização do consumo de energia dos equipamentos portuários, identificando padrões de uso e sugerindo práticas mais sustentáveis. 

Em última análise, a IA também poderá contribuir com a segurança das operações do porto ao antever condições meteorológicas adversas, como aquelas causadas em razão da maré alta e ressaca, permitindo que as autoridades portuárias, concessionárias e/ou autorizatários adotem medidas preventivas para proteção da carga e das embarcações atracadas. 

Em conclusão, a inteligência artificial está posicionada para ser um catalisador transformador na indústria marítima, oferecendo uma ampla gama de benefícios que abrangem desde a otimização operacional até a melhoria da segurança e sustentabilidade. A capacidade da IA de análise grande volume de dados em tempo real permite uma gestão mais eficiente dos riscos, tanto no que diz respeito à descarbonização da navegação, ao mercado de seguros marítimos e às operações portuárias. Certamente, os impactos e benefícios que a tecnologia pode gerar no setor ainda são incalculáveis e imprevisíveis, sendo certo que o assunto se desenvolvera à medida em que avançam os esforços para a concretização de objetivos de desenvolvimento sustentável e eficiência energética, integrado à tecnologia de ponta, no Brasil e no mundo.

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1 Disponível aqui. Acesso em 30.07.2024.

2 Disponível aqui. Acesso em 30.07.2024.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.