É fato que agronegócio brasileiro responde por 44% do total das exportações do Brasil, sendo o país o maior exportador mundial de soja, café, carne de frango, celulose de fibra curta, suco de laranja e, recentemente, de algodão. Nessa medida é grande tomador dos serviços de transporte marítimo de mercadorias. Por outro lado, tendo essas commodities preços geralmente definidos em bolsas estrangeiras, uma boa gestão da logística e, em especial, do custo do frete marítimo, é essencial para o bom resultado das empresas exportadoras. Dessa forma, não é de se estranhar que os exportadores dediquem grande atenção aos contratos marítimos, em especial ao afretamento de navios.
Mas esse cuidado não deve ficar limitado aos grandes exportadores ou às trading companies na medida em que, independentemente de quem contrata o transporte da mercadoria, muitas das provisões do contrato marítimo vão se refletir diretamente nos contratos de compra e venda de commodities criando direitos e obrigações específicas para vendedor e comprador, tais como a obrigação de dar o aviso de prontidão (NOR - Notice of Readness), a contagem do prazo para carregamento e/ou descarregamento (laytime) e a consequente obrigação de pagar sobrestadia (demurrage), entre outros.
Além disso, a utilização nos contratos internacionais de venda e compra de commodities de expressões próprias dos contratos marítimos, como é o caso da frequente utilização dos INCONTERMS FOB e CIF, servem para definir o momento de transferência do risco da mercadoria entre vendedor e comprador.
Em outras ocasiões já tivemos oportunidade de discorrer sobre a venda e compra internacional de commodities agrícolas1 e da utilização dos contratos padrão utilizados pelo mercado a partir da sua divulgação por associações comerciais tais como o GAFTA, FOSFA, ICA, entre outros, assim como o papel da arbitragem na solução das disputas a eles referentes.
O que gostaríamos de chamar a atenção especificamente neste artigo é para o fato de que muitas dessas disputas têm como pano de fundo questões relacionadas ao transporte marítimo daquelas commodities, em especial discussões sobre contagem do laytime, sobre a validade da nomeação de navio ou do seu aviso de prontidão, cobrança de detention e demurrage, entre outros assuntos tipicamente de Direito Marítimo.
Por outro lado, especificamente para os contratantes do transporte marítimo, subsiste, ainda, a necessidade da devida atenção à questão da atribuição de responsabilidade pela avaria ou perda da mercadoria durante o transporte, os limites à reparação dos danos e o papel dos clubes P&I nessa reparação.
Assim como ocorre no mercado internacional de commodities, os contratos no mercado shipping também exigem celeridade em sua formação na mesma medida em que exigem segurança às partes contratantes que são de países diversos e culturas diversas. Por esses motivos, é comum a utilização de contratos padronizados ou standard forms, elaborados por associações de fretadores, associações de shipbrokers (agenciadores de compra, venda e afretamentos), assim como grandes empresas permitindo tanto ao fretador como ao afretador acessar melhor os riscos e custos da contratação, sem prejuízo da inserção de cláusulas extras, chamadas rider clauses2, que muitas vezes já têm sua redação também padronizada, sendo assim standard clauses.3
As disputas marítimas podem atrair diversas jurisdições e legislações aplicáveis em razão das nacionalidades de fretadores, afretadores, transportadores, embarcadores e consignatários envolvidos em um contrato marítimo, além das jurisdições envolvidas em caso de acidentes e fatos da navegação. Por outro lado, casos marítimos demandam grande especialidade, atendimento imediato dos advogados e técnicos (engenheiro naval ou comandante), produção de provas in loco (vistorias conjuntas — judiciais).
Por esta razão, os contratos marítimos padrão adotam a arbitragem como meio ideal de solução dos conflitos que os envolvam.
Nos contratos BIMCO, por exemplo, encontram-se cláusula de solução de conflitos por meio de mediação e arbitragem pela LMAA (London Maritime Arbitrators’ Association — Londres) ou pela SMA203 (Society of Maritime Arbitrators — Nova Iorque).
Normalmente, as cláusulas de arbitragem nesses contratos padrão dispõem que o contrato será regido e interpretado pelas leis da Inglaterra e qualquer disputa dele decorrente ou a ele relacionado será submetida à arbitragem em Londres, em conformidade com a lei de arbitragem (arbitration act) de 1996 e conduzida em conformidade com as regras da associação dos árbitros marítimos de Londres (London Maritime Arbitrators’ Association) — LMAA em vigor quando do início do processo de arbitragem.
Como se vê, os atores que hoje atuam no agronegócio brasileiro, produtores, trade companies, advogados, executivos, não podem ignorar a importância de conhecer o Direito Marítimo e os seus impactos nas diversas cadeias de produtos.
Um último alerta, no entanto: Diferentemente de outros Estados marítimos, como Estados Unidos, Inglaterra, China, França, Japão, Grécia e Noruega, para citar alguns, o Brasil, ao longo de sua história, nunca teve uma legislação marítima autônoma e sistematizada, tampouco a matéria foi estudada de forma programática nas faculdades de Direito como disciplina fundamental obrigatória nas grades curriculares, mas, ao contrário, o Direito Marítimo sempre foi tratado como um apêndice do Direito Comercial, em um dos capítulos de sua normatização, ostentando hoje o inútil título de ser a única parte do Código Comercial de 1850 que permanece em vigor. A legislação brasileira que trata do Direito Marítimo é um compilado de leis, decretos e portarias, tratados incorporados, que leva a um sistema confuso e pouco seguro e absolutamente desorganizado. Isso pode ser constatado nos movimentos legislativos recentes, temos um código defasado, suplantado pela realidade, com um catálogo fragmentado de legislações, comprometendo a eficiência e a segurança das operações marítimas como também colocando o Brasil em desvantagem competitiva no cenário internacional.4
Por isso é preciso que os atores do agronegócio busquem profissionais brasileiros que possam navegar tanto nas águas da legislação nacional quanto nas águas internacionais da Lex Maritima.5
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1 FAVACHO, F. G. S. C. Contratos internacionais de commodities agrícolas. In: FAVACHO, Frederico; PERES, Tatiana Bonatti (org.). Agronegócio. 1. ed. Lisboa: Chiado, 2017. v. 1, p. 375-430.
2 Rider clauses são cláusulas extras, adicionadas ao contrato, desde que o contrato principal preveja essa situação. Geralmente essa cláusula é simples, prevendo apenas a adoção das cláusulas que estiverem em anexo ao contrato (“Rider Clauses as attached hereto are incorporated in this Charter”). Como o contrato padrão geralmente não aceita alteração nas suas cláusulas, faz-se necessário que as alterações sejam incluídas por meio de um documento em anexo.
3 Moisés Filho, 2017.
4 Cf. MENEZES, Wagner. Por Um Direito Marítimo Autônomo no Brasil. Disponível em confira-se em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/por-um-direito-maritimo-autonomo-no-brasil-01052024?non-beta=1
5 Para saber mais sobre a relação entre Agronegócio e Direito Marítimo cf. em FAVACHO, F. G. S. C. Agronegócio e Direito Marítimo. In: Rafaela Aiex Parra. (Org.). AGRONEGÓCIO. 3ªed.Londrina: Toth, 2022, v. , p. 223 e seguintes.