Migalhas Marítimas

Direito Marítimo em foco no caso MV DALI: Seguros marítimos

O texto aborda o impacto da colisão do navio "MV DALI" com a ponte Francis Scott Key em Baltimore, destacando debates sobre regulamentação do sinistro, direito aplicável e seguros marítimos. Questões incluem investigações, responsabilidade por danos e indenizações.

20/6/2024

A colisão entre o navio porta-contêineres "MV DALI" e a ponte Francis Scott Key, em Baltimore, nos Estados Unidos, teve um impacto significativo no setor da navegação e vem fomentando debates sobre a regulação do sinistro e o Direito aplicável. Ganha destaque nessas discussões o tema dos seguros marítimos, já que o porte financeiro do acidente atraí atenção.

Diversas questões surgem após um acidente dessa magnitude. Desde dúvidas sobre a condução de investigações até o impacto contratual e atribuição de responsabilidade em casos de atrasos nas entregas ou avarias às mercadorias a bordo, sem excluir as eventuais demandas de indenização movidas por terceiros.

Os seguros marítimos tomam posição central nessa discussão, sendo relevante estabelecer desde já que no cenário internacional a expressão seguro, notadamente no ramo marítimo, não tem o mesmo contorno jurídico dado pelo Direito brasileiro. Ou seja, nesse artigo e nas demais avaliações do acidente, a expressão seguro referencia-se tão somente à uma relação jurídica na qual uma parte faz jus ao recebimento de indenização mediante a ocorrência de condições contratualmente previstas.

Não se trata, portanto, da estrutura securitária regulada típica do Direito brasileiro. Na maioria dos casos não há apólices e as regras são diferentes daquelas que o ordenamento jurídico pátrio impõe. Essa diferença é importante para que seja possível compreender uma relação cujo pressuposto é o mutualismo e a cooperação, em oposição ao fornecimento de serviços pelo mercado securitário brasileiro.

O sinistro de Baltimore certamente resultará em custos avaliados em bilhões de dólares e, segundo Bruce Carnegie-Brown, presidente do Lloyd’s de Londres, é provável que se torne a maior perda individual no ramo dos seguros marítimos. Tudo isso evidencia a importância da contratação de seguros e assemelhados, especialmente porque um revés ocorrido durante a aventura marítima pode trazer as mais variadas consequências, nos mais variados setores.

Não é à toa que cerca de apenas 5 dias após o acidente já se discutia na Corte Distrital de Maryland a limitação de responsabilidade. Em petição apresentada em nome do proprietário do navio e do manager, alegou-se a ausência de falha, negligência ou falta de cuidado por parte dos requerentes.

No entanto, caso reconhecida alguma responsabilidade, requereu-se a limitação de responsabilidade em razão dos altos valores para reparos e salvamento frente ao valor do navio e o frete da viagem. Assim, os requerentes pleiteiam a limitação desta ao valor do navio quando do acontecimento do acidente somada ao montante que representa o rendimento da viagem, o que inicialmente totaliza 43,67 milhões de dólares.

Importante asseverar que, a aventura marítima é essencialmente uma atividade de risco. Justamente por isso, todo aquele que se propõe a desempenhar essa atividade deve estar preparado para possíveis infortúnios.

Por isso, como regra, o transporte marítimo envolve valores vultosos com relação às cargas transportadas, investimentos realizados na embarcação e sua armação, entre outros gastos inerentes à atividade. Por consequência, considerando-se a iminente possibilidade de risco - os quais podem envolver cifras altíssimas - é evidente que a contratação de um seguro ou ingresso em clubes de mútuo é medida essencial para o bom exercício desse tipo de atividade.

Portanto, o seguro atua efetivamente como uma transferência de risco. Em outras palavras, o segurador se obriga, nos exatos limites do contrato a garantir, ao contratante o pagamento de uma indenização na hipótese de concretização de um dano (sinistro), mediante uma contraprestação (prêmio).

Especialmente com relação aos seguros marítimos, podemos citar a existência dos mais diversos tipos, sendo eles: O DPEM, o RCA-C, o seguro de carga, o seguro de casco e máquinas (H&M) e os típicos contratos de mútuo garantidos aos membros dos clubes de P&I, os quais descrevemos brevemente:

Importante ressaltar que, sem prejuízo das relevantes coberturas securitárias e contrato de mútuo citadas acima, o mercado de seguro pode se desenvolver para que outros riscos passem a ser abrangidos, já que constantemente se observa novas atualizações no mercado.

Em relação às coberturas dos clubes de P&I, nos alongamos para contextualizar sua dinâmica. De antemão, importante ressaltar que são associações compostas pelos players do mercado marítimo (proprietários, armadores, operadores, afretadores, entre outros). Seu propósito é salvaguardar os interesses coletivos de seus membros contra os riscos inerentes à operação comercial de navios, através da constituição de um fundo de reserva.

A existência desses clubes é justificada pela capacidade de oferecer coberturas que vão além das apólices convencionais de seguros. Além de proteger contra reclamações de carga e danos pessoais, suas coberturas podem incluir danos ambientais, multas administrativas e custos legais. Em casos excepcionais, podem até mesmo cobrir riscos não previstos, mediante aprovação dos diretores, o que é conhecido como omnibus rule.

E o que difere os clubes de P&I das seguradoras tradicionais? Em primeiro lugar, os clubes de P&I são associações sem fins lucrativos, ao passo que as seguradoras têm um claro objetivo empresarial, visando o lucro. Um indicativo disso é a omnibus rule, mencionada anteriormente, que destaca o propósito primordial dos clubes em proteger os interesses dos membros, em vez de visar lucros próprios. Além disso, os clubes podem até mesmo reembolsar seus membros, através de return-calls, caso haja um excesso de fundos devido a uma baixa sinistralidade.

A dinâmica entre membros e o clube é completamente diferente. Enquanto nas seguradoras tradicionais há contratos bilaterais de seguro, nos clubes de P&I existe uma relação associativa regida por regras internas (club rules), sem a presença de uma apólice tradicional. As contribuições dos membros (calls) são distintas dos prêmios de seguro.

Portanto, os próprios membros que, através de um sistema de auxílio mútuo, contribuem para compensar os prejuízos sofridos por outros membros, como em casos de responsabilidade civil. É importante destacar que o clube apenas reembolsa seus membros após estes terem compensado primeiramente quaisquer danos causados a terceiros, seguindo o princípio do "pay to be paid". O clube atua, portanto, como um mero administrador de fundos, não buscando lucros próprios como as seguradoras tradicionais e não gerenciando diretamente os danos sofridos por terceiros

Em vista de todas essas distinções, é evidente que não há base legal ou contratual para defender a solidariedade entre clubes e membros para o pagamento de indenizações por danos a terceiros. Embora os contratos sejam regidos pelo Direito inglês, não haveria justificativa para presunção de solidariedade, o que é inclusive proibido no Direito brasileiro. A natureza jurídica dos clubes de P&I é fundamentalmente diferente daquela das seguradoras reguladas sob o Direito brasileiro, e seus objetivos não se confundem. Portanto, impor solidariedade seria desconsiderar a estrutura contratual formulada.

Felizmente, esse tem sido o entendimento que vem se consolidando na jurisprudência, o que se denota do precedente abaixo1:

Agravo de instrumento – Ação ordinária de indenização - Cumprimento de sentença – Pretensão da credora de redirecionamento da execução – Descabimento - Clube de P&I que se caracteriza como associação de armadores/transportadores marítimos que atuam no sentido de dar proteção mútua aos associados no exercício de suas atividades de transportadoras de cargas via marítima – Não verificada a existência de vínculo jurídico entre as partes que pudesse autorizar sua inclusão no polo passivo, a fim de ser responsabilizado pelo pagamento do débito – Ademais, não há como estender a coisa julgada para parte que sequer figurou na demanda original - Decisão mantida - Recurso desprovido. (TJ/SP; Agravo de Instrumento 2254137-84.2018.8.26.0000; Relator(a): Sergio Gomes; 37ª Câmara de Direito Privado; j. 31/1/19)

Os 'Seguros Marítimos', apesar de inicialmente aparentar simplicidade, revelam-se notavelmente complexos, oferecendo terreno fértil para uma miríade de debates. O incidente provocado pelo MV Dali ilustra bem essa complexidade, pois não apenas suscita questões relacionadas a seguros e danos, mas também desencadeia discussões sobre os desdobramentos envolvendo terceiros afetados, além do impacto nas operações de diversas embarcações cujas escalas foram atrasadas devido ao bloqueio causado pelo desabamento da ponte.

Relevante mencionar que em relação ao acidente do MV DALI, especialistas falam na potencialidade para que seja o maior prêmio a ser utilizado na história dos clubes P&I, tamanha a dimensão dos danos causados pelo acidente.

As consequências do referido acidente no meio securitário ainda devem repercutir por alguns anos, propiciando não apenas oportunidades didáticas, mas também contribuindo para o aprimoramento do instituto, o que, acompanhado da boa jurisprudência, será capaz de garantir que a "aventura marítima" seja cada vez mais segura.

Em resumo, embora os riscos inerentes à atividade marítima sejam inevitáveis, os desdobramentos negativos podem (e devem) ser mitigados com a gestão dos riscos, tal medida tem o condão de não apenas preservar os interesses financeiros dos envolvidos, mas também promover a segurança e a estabilidade para o bom desenvolvimento do setor.

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.