"'Nuestra guerra no es contra ella sino contra los demonios que la habiten' dijo Delaura"1
1 – Sobre chicanistas e exorcistas: argumentos, lendas e métodos no debate jurídico
Um dos livros mais impactantes na minha formação jurídica, que li ainda no início da graduação, foi o “Manual do Chicanista”: uma obra anônima (sob o pseudônimo de “Dr. Cesário da Beca Ria”), de um magistral sarcasmo e fino humor, que relatava a história de um advogado fictício, com seus pequenos golpes e artimanhas para “vencer” na advocacia. O humor leve conduz o leitor a um retrato sem retoques do dia-a-dia forense e das muitas vicissitudes da profissão. Ao narrar seu “método” de argumentação jurídica, o protagonista inventava o nome de um autor jurídico (“doutrinador” como ainda chama a minha geração), Dorotéo de Alcácer, a quem atribuía determinada tese que favorecia seu cliente. Não tardou a que outros copiassem suas citações, até que, de cópia em cópia, chegassem a constar em acórdãos dos tribunais, sem que ninguém se desse ao trabalho de checar a existência do catedrático, Professor Doutor Alcácer. Aos mais jovens, uma explicação necessária: o livro é provavelmente dos anos 1980, tempo pré-google, em que isso ainda era possível.
Cayetano Delaura também não existiu, ao menos no mundo real. É outro habitante do maravilhoso mundo da literatura, personagem de “Del Amor y Otros Demonios”, uma obra menos conhecida do gênio Gabriel García Marquez: um jovem padre, culto, poliglota e crente, a quem foi dada a missão de exorcizar os demônios da jovem Sierva Maria. Mais não direi, para não tirar do futuro leitor da obra o prazer de descobrir porque a razão do título da obra e de sua construção gramatical.
Em 10/11/2022, no Migalhas 5.475, foi publicado artigo de minha autoria, sobre terrenos de marinha e sobre a propriedade, uso e acesso às praias, cujo título (“"É mal gerido esse troço aí"? Breves esclarecimentos sobre terrenos de marinha e sobre a propriedade e o acesso às praias”) era inspirado na fala de um personagem do mundo real, mas que cairia muito bem numa narrativa de realismo fantástico, dada a espantosa desconexão que demonstra ter com os conceitos desse mesmo mundo real que habita. Naquela ocasião, a intenção era esclarecer sobre dois conceitos – bem distintos, como tentei deixar claro – tão falados e ao mesmo tempo tão confundidos: os terrenos de marinha e a propriedade das praias (da qual decorre, obviamente, a questão do acesso).
Pelo que tenho visto do debate sobre a “PEC das Praias”, se algum dos debatedores leu meu artigo anterior, devo reconhecer que fracassei miseravelmente nesse intuito de esclarecer, pois quase todo o debate sobre a referida Proposta tem confundido os dois conceitos.
Não entenderam ou, ao contrário, entenderam bem demais? Responda você mesmo, leitor, ao final deste texto.
2 – Sobre jabutis e tartarugas: terrenos de marinha e praias
O jabuti ingressa neste texto pelo seu sentido real, mas em breve falarei dele num de seus sentidos figurados. Jabutis e tartarugas são animais diferentes, que ocupam habitant diferentes: no mar encontramos a “tartaruga marinha”, certamente muitíssimo interessada na questão das praias, local de sua reprodução e essencial para a continuidade da espécie. Se chama “marinha” não por oposição à tartaruga “terrestre”, mas apenas para diferenciá-la da tartaruga que vive em água doce, cuja espécie mais conhecida é o “tigre d'água”. Quem não vive na água, e, portanto, não precisa da praia para sua reprodução, nem tem “marinha” no nome, é o jabuti. É muito comum, porém, a confusão entre tartarugas e jabutis, e frequentemente se usa uma palavra pela outra. Nenhum problema e, em princípio, nenhuma consequência séria parece decorrer dessa confusão.
Terrenos de marinha e praias são frequentemente confundidos. Ao contrário do que ocorre com jabutis e tartarugas, essa confusão vem tendo consequências bem sérias, sendo mesmo um fator que inviabiliza, por completo, o debate sobre a “PEC das Praias”. Quando ambos os lados de um debate – os que são “contra” ou “a favor” da proposta – cometem o mesmo erro de essência, estão discutindo sobre algo diferente do que está na PEC. E aí, sem dúvida, mora um grande perigo, de uma proposta tão importante ter um debate absolutamente dissociado do que efetivamente diz o texto.
Tentando contribuir para tornar este debate mais claro e objetivo, retomarei os conceitos de terreno de marinha e de praia, para permitir que o leitor forme sua própria opinião sobre o que está, realmente, em discussão.
Sugiro ao leitor que, antes de prosseguir, leia o texto publicado no Migalhas 5.475 (link acima), onde os dois conceitos estão expostos e maneira tão clara e didática quanto me foi possível fazer naquela ocasião. Para quem não tiver tempo de fazê-lo, trago a definição legal de um e de outro:
- Decreto-lei 9.760, de 1946: “São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831, os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés”.
- Lei 7.661, de 1988: “Praia é a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema.”
Como se pode perceber, nem todo terreno de marinha será uma praia, porque o litoral brasileiro tem várias outras formações naturais (como falésias e rochedos) e artificiais (como portos, marinas e fortes construídos no passado), de modo que nem tudo que está nessa faixa de 33 metros a partir da linha-base contém praias. A recíproca, mais raramente, também pode ser verdadeira: se uma praia se estende além dessa faixa de 33 metros, não será um terreno de marinha (embora, como procurei explicar no texto anterior, continue sendo propriedade da União e bem de uso comum do povo).
Sem a necessária clareza destes conceitos, o debate público sobre a PEC 03/2022 vem incidindo em vários erros de premissa. Destaco, aqui, apenas algumas dessas premissas falsas, com a devida explicação:
Note bem o leitor: o “apenas” da última célula da tabela não está destacado por acaso. Se a PEC tratar apenas dos terrenos de marinha, todo o debate estará centrado na natureza jurídica e nos efeitos de um instituto desconhecido das pessoas (ao menos quanto à sua versão real, não a imaginária), assim como suas consequências.
Como Cayetano Delaura, estão tentando exorcizar um demônio, mas não sabem qual.
O mais espantoso, nessa história de quase realismo fantástico, é que tanta discussão seja feita sem que ninguém, aparentemente, tenha de fato lido o texto da PEC.
Vejamos, então, o que efetivamente diz a PEC, e o leitor descobrirá que a questão é mais simples do que parece.
3 – Os terrenos de marinha na PEC 03/2022
A “PEC das Praias” foi numerada como 03/2022 no Senado Federal, quando recebida da Câmara dos Deputados, após a aprovação, em dois turnos, nessa última Casa Legislativa.
Para melhor contextualizar, as únicas referências a terrenos de marinha, no texto da Constituição, estão no inciso VII do art. 20 e no art. 49 do ADCT. O primeiro reafirma a propriedade da União sobre os terrenos de marinha:
Art. 20. São bens da União:
VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos;
Já o segundo trata do instituto da enfiteuse, e dispõe o seguinte:
Art. 49. A lei disporá sobre o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos, sendo facultada aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do que dispuserem os respectivos contratos.
§ 3º. A enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima.
Portanto, se a intenção dos Parlamentares autores da PEC é a extinção da enfiteuse dos terrenos de marinha, bastaria revogar esses dois dispositivos – o que efetivamente está no texto da PEC – e deixar todo o resto para a legislação ordinária, através da revogação ou alteração do Decreto-Lei 9.760, de 1946.
Um exercício de lógica: se a intenção fosse realmente essa, e se há um caminho mais fácil (alterar o DL 9760), porque experimentados parlamentares teriam escolhido o caminho mais difícil (fazer uma ampla Emenda Constitucional)? A única premissa errada desse silogismo pode ser real intenção contida na PEC.
Assim é que, numa desnecessária inflação constitucional, e em péssima técnica legislativa, a PEC contém nada menos do que 13 dispositivos (1 artigo com 5 incisos e 2 parágrafos, sendo o primeiro parágrafo com outros dois incisos, 1 artigo sem desdobramentos, e 1 artigo com 1 parágrafo) “avulsos”, que não modificam o texto da Constituição, isto é, não acrescentam, revogam nem alteram dispositivos já presentes na Carta. Ficam como que “flutuando” no ordenamento jurídico, em nível constitucional, mas sem integrar formalmente a Constituição. Não admira que as pessoas tenham tido pouca disposição para ler todo o texto da PEC.
Estes 13 dispositivos tratam, com minúcias próprias da lei ordinária – e talvez até de um decreto regulamentador – de como se daria o processo de extinção das enfiteuses dos terrenos de marinha. Não vou analisá-los neste texto (embora alguns deles mereçam uma séria apreciação à luz do princípio constitucional da moralidade), já que o propósito deste artigo é tratar da PEC “DAS PRAIAS”, e penso já ter esclarecido suficientemente que não é necessário tratar de terrenos de marinha para entender a questão das praias.
4 – As praias na PEC 03/2022
Dissipada a névoa dos terrenos de marinha, o que diz a PEC, efetivamente, sobre as praias? Nada.
É isso mesmo, caro leitor: a “PEC das Praias”, ao menos até agora, no texto disponibilizado publicamente pelo Senado Federal, nada diz sobre praias. Não trata da sua propriedade, nem do seu uso ou acesso.
Porque, então, tanta celeuma em torno de algo que não existe? Tenho lá meus palpites, e visualizo dois motivos possíveis, e um não exclui o outro. Em primeiro lugar, parece ser uma decorrência direta da confusão que se faz entre “terreno de marinha” e “praia”, como procurei explicar acima.
Em segundo lugar, há um possível motivo bem mais sutil e preocupante. A História do processo legislativo, no Brasil, registra inúmeras histórias de projetos aparentemente bem-intencionados que, depois de vencer a batalha da opinião pública, são sutilmente modificados, para inserir disposição completamente alheia à sua intenção inicial, ou mesmo matéria estranha ao conteúdo do projeto.
Nesta categoria, há o contrabando e o jabuti. O contrabando, que se tornou quase impossível depois da digitalização do processo legislativo e da sua ampla publicidade pela internet, consiste na inserção, no texto final do ato normativo, de dispositivos ou expressões que jamais foram votados ou aprovados. É um procedimento que se tornou famoso quando um ex-constituinte, que também foi Ministro da Justiça e do STF, revelou, décadas depois, tê-lo praticado na própria Constituição, em 1988. O jabuti, menos ousado, consiste na inserção, num projeto em andamento, de dispositivo alheio à matéria nele tratada, que vem a ser votado “discretamente”, geralmente na última fase de discussão, e “misturado” a outros que foram objeto de intenso debate2. É fácil perceber que, especialmente em projetos de grande extensão, um jabuti possa receber votos favoráveis até de parlamentares que não façam a mínima ideia de que ele está, lenta e silenciosamente, caminhando entre as linhas do texto e protegido pela sua carapaça.
No caso da “PEC das Praias”, uma simples mudança do inciso revogado no art. 20 (do VII para o IV, por exemplo) ou a discreta inserção da palavra “praias” no seu texto, poderia ser suficiente para mudar todas as conclusões a que cheguei no início deste item. Dado o histórico do Congresso Nacional, ninguém se surpreenderia se isso acontecesse.
Uma propaganda de empreendimento imobiliário com “praia privativa” – algo evidentemente ilegal, assim como os “beach clubs” e os “cercadinhos VIP” – com a participação de um famoso jogador de futebol, não é feita de graça. Se o jabuti está na árvore é porque alguém o colocou lá. Do mesmo modo, se a propaganda está no ar, é porque alguém está pagando por ela.
Por isso, talvez os opositores da “PEC das Praias” não sejam tão ingênuos ou confusos como parecem à primeira vista. É possível que, antevendo a possibilidade de que um jabuti seja colocado na árvore, especialmente depois que a opinião pública estiver cansada do tema, já tenham se antecipado e combatido a própria PEC, não pelo que ela contém, mas pelo que pode vir a conter.
Não farei juízo de valor sobre essa estratégia, e nem mesmo vou meter a colher nessa discussão. O intuito deste artigo foi, somente, o de clarear a discussão e colocar os conceitos jurídicos no seu devido lugar.
5 – Inocente ou Possuída? Como o leitor vê a “PEC das Praias”?
Do ponto de vista estritamente jurídico, o que se pode dizer é que a “PEC dos terrenos de marinha” nada diz – ao menos no texto que foi dado a conhecimento até agora – sobre a propriedade, o uso e o acesso às praias.
Ao tratar especificamente dos “terrenos de marinha”, a PEC é, sem dúvida, mal redigida, de má técnica legislativa e em grande parte desnecessária. Mas cabe ao leitor ter sua própria opinião sobre a conveniência ou não de extinguir os terrenos de marinha, já que, ao final, ao menos este debate está colocado.
Quanto às praias, a PEC 03/2022 parece ser, ao menos até agora, uma moça inocente e misteriosa como a Sierva Maria criada por García Marquez. Mas há quem veja escondido nela – e não se pode criticar esta visão, dado o histórico da política (com “p” minúsculo mesmo) brasileira – o demônio da privatização ou fechamento das praias.
Assim, concluindo esta reflexão, deixo a cargo do leitor, agora armado – assim espero – com conceitos jurídicos claros e bem definidos, a formação da sua própria opinião, exercendo sua liberdade democrática para se posicionar sobre os dois temas, tanto a extinção dos terrenos de marinha quanto à propriedade, acesso e uso das praias.
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1 GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Del Amor y Otros Demonios. Barcelona: Círculo de Lectores, 1995, p. 113.
2 Como esclarece o dicionarista Wagner Azevedo: “A locução emenda jabuti refere-se à emenda legislativa que aparece, mas ninguém sabe quem a elaborou. Recebeu esse nome em alusão ao conto do jabuti em cima da árvore. Sabemos que jabuti não sobe em árvore e, por conta disso, se alguém vir um numa árvore, é porque ele foi colocado lá.” AZEVEDO, Wagner. Dicionário de Animais com Outros Significados. Rio de Janeiro: Drago Editorial, 2018, p. 127.