Migalhas Marítimas

O Direito Marítimo: Breve reflexão sobre seu conceito e lugar na ciência jurídica

Desenvolvimento prático e acadêmico do Direito Marítimo no Brasil. Predominância de debates forenses. Crescente interesse acadêmico, mas ensino ainda limitado na graduação.

16/5/2024

O Direito Marítimo tem um caráter essencialmente prático no seu desenvolvimento, na medida em que o debate sobre as teses e conceitos se dá predominantemente, nas discussões forenses e arbitrais. Mesmo os eventos de Direito Marítimo, cada vez maiores e mais frequentes no Brasil (o que é ótima notícia) são caracterizados pela presença maciça de profissionais de diversas áreas, como advogados, agentes marítimos, magistrados, práticos, e armadores, enfim, todos aqueles que vivem, na prática, as questões da navegação e comércio marítimo, e buscam soluções para os problemas jurídicos reais com que se deparam.

Isto não significa que não haja, em paralelo, um desenvolvimento do Direito Marítimo no âmbito acadêmico. Nos últimos dez anos, diversas instituições vêm lançando cursos de pós-graduação nessa área, e novos livros vêm sendo publicados. Nos cursos de graduação, no entanto, a disciplina, quando é oferecida, quase sempre tem caráter eletivo, ou é apenas uma pequena parte de disciplinas obrigatórias, como o Direito Comercial ou Internacional. Por isso, ainda é válida a expressão, tão comum entre os advogados maritimistas, de que "o Direito Marítimo não se aprende na escola".

Apesar de tudo isso, e do escopo desta Coluna Migalhas Marítimas também ser essencialmente prático, com alguma frequência sou questionado por leitores, em eventos ou mensagens, sobre a posição do Direito Marítimo como ciência, como "classificá-lo" e, de certa forma, até "por onde começar" a conhecê-lo. Por isso, no texto desta semana, farei um pequeno desvio, para trazer algumas reflexões – longe de serem respostas definitivas – sobre estas questões. 

Quando se busca o lugar de determinada disciplina na ciência, se está tratando basicamente de dois conceitos: A epistemologia (o "estudo da ciência" ou a "ciência da ciência") e a taxinomia (a ciência da classificação ou categorização). No início dos cursos jurídicos – ainda que nem todos se recordem ou tenham sido apresentados a estas palavras – estes dois conceitos estão bastante presentes, seja na Introdução ao Direito, que investiga o papel e o próprio conceito da Ciência Jurídica e, nas demais disciplinas, no esforço para "classificar" determinada matéria, como de Direito público ou Direito privado, o que, por sua vez, envolve a ideia de "autonomia" daquela disciplina. Neste contexto, muitos foram os embates, por exemplo, sobre a autonomia do Direito Tributário em relação ao Direito Financeiro, do Direito Previdenciário em relação ao Direito do Trabalho, e vários outros. 

Passo, então, a breves reflexões sobre a autonomia, a classificação e o conceito do Direito Marítimo, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, ou mesmo tratá-lo em profundidade.

Vem das próprias origens da organização social da humanidade a existência do Direito Civil e do Direito Penal. Os textos mais antigos do Direito, como o Código de Hamurabi, já continham regras básicas dessas matérias. Mesmo as mais primitivas sociedades humanas, anteriores à escrita, já adotavam sistemas de regras civis e penais. O desenvolvimento do comércio levou, naturalmente, à autonomia do Direito Comercial (essencialmente costumeiro, desde essa origem), destacando-o do Direito Civil. Após as revoluções burguesas da Idade Moderna, o Direito Constitucional inicia sua jornada, ainda que levasse séculos para que fosse reconhecida a supremacia da Constituição frente às preexistentes normas civis, penais e comerciais.

A partir destas três disciplinas essenciais, a maior complexidade das relações humanas levou à autonomia de novas disciplinas, especialmente no âmbito do Direito Público (Administrativo e Financeiro), o Direito Processual e, no pós-guerras, já no século XX, ao chamado grande tronco do "Direito Social", que não seria público nem privado, englobando, entre outros, o Direito do Trabalho e o Direito Previdenciário.

Note-se bem: Regras jurídicas sobre estes temas já existiam muito antes de as disciplinas respectivas terem sua autonomia reconhecida. O ponto aqui ressaltado é o reconhecimento de um corpo de regras que compartilham métodos e postulados específicos, além de esforços acadêmicos para seu estudo e sistematização.

Além de todas estas disciplinas que poderíamos chamar de "clássicas", compartimentadas segundo a natureza das relações jurídicas que regulam, nas últimas décadas do século XX passou a ser comum a referência a "disciplinas transversais", reconhecidas por objetos mais específicos de regulação, mas que perpassam diversas disciplinas. Veja-se, por exemplo, o "Direito da Criança e do Adolescente": As normas que o compõem podem ser de Direito Civil (especialmente de Família), Penal ou Administrativo. No entanto, o DCA não é um "subtipo" de nenhuma destas disciplinas, nem poderia ser disposto numa chave sinótica de classificação das matérias jurídicas, simplesmente porque atravessa todas elas sem se subsumir a nenhuma especificamente. Outro exemplo interessante é o Direito Urbanístico, que se compõe essencialmente de regras de Direito Administrativo, mas com este não se confunde, pois compartilha áreas significativas com o Direito Civil e, em alguns casos, Penal.

Especificamente no âmbito da advocacia, há uma profusão de "Direitos transversais", referenciados pela atividade econômica, como Direito das Telecomunicações, da Mineração, do Petróleo, da Energia, etc. Há mesmo uma prática de designar estes, em conjunto, como "Direito da Infraestrutura".

Neste contexto, a discussão sobre a autonomia das "disciplinas transversais" perde muito de sua importância, pois o que realmente interessa ao profissional do Direito é identificar os métodos de trabalho, princípios e práticas da matéria.

Pois bem. E onde fica o Direito Marítimo nisso tudo?

Deve-se lembrar, inicialmente, que o Direito Marítimo é muito antigo. Sua origem está muito ligada ao Direito Comercial, diante da evidência de que a navegação sempre teve como escopo principal o comércio. Nada obstante, sua autonomia também foi sempre muito clara, em razão das peculiaridades do meio em que ocorre a navegação.

No âmbito acadêmico, durante décadas, o Direito Marítimo foi tido como um ramo do Direito Comercial, estudando relações jurídicas de direito privado, relacionadas aos contratos de transporte por meio marítimo, bem como ao afretamento de embarcações. Os livros clássicos de Direito Marítimo brasileiro, desde o início do século XX, foram todos escritos por autores de Direito Comercial. Esta é a que se poderia chamar "face privada" do Direito Marítimo, pela qual sempre foi mais conhecido.

Em outra vertente, também antiga, o Direito Marítimo é objeto de estudo do Direito Internacional, comumente referido, nesta específica acepção, como "Direito do Mar". Este enfoque dá mais ênfase à definição dos territórios marítimos (águas territoriais, zonas contíguas e zonas econômicas exclusivas), sua exploração e às relações entre os Estados, no que tange à navegação internacional.   

Em ambos os casos referidos acima, também vêm de décadas as discussões sobre a autonomia do Direito Marítimo em relação ao Direito Comercial, e do Direito do Mar em relação ao Direito Internacional. 

Nas últimas décadas do século XX, e no início do século XXI, porém, foi ganhando importância também o que se poderia chamar de "face pública" do Direito Marítimo. O Tribunal Marítimo, existente desde 1932, passou a ser objeto de maior atenção e estudos. A criação da Antaq em 2001, inseriu várias relações jurídicas de direito público entre as preocupações dos maritimistas. Antes disso, os litígios relativos ao AFRMM – Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante – sempre buscaram fontes de Direito Tributário, dada a similitude dessa exação com outras de natureza tributária. Refira-se, ainda, o Direito Portuário e o Aduaneiro, frequentemente tidos como "parte" do Direito Marítimo, e que, no mínimo, estão intimamente relacionados a ele, ao menos na prática jurídica.  

Parece claro, portanto, que o Direito Marítimo é tipicamente uma disciplina transversal, sendo impossível enquadrá-lo como subcategoria do Direito Comercial, do Internacional, ou de qualquer outro Direito objetivo. De fato, um breve lançar d'olhos já revela inúmeras dessas intercessões: Além das já explanadas com o Direito Comercial, Civil, Internacional, Administrativo e Tributário, tem-se ainda a estreita relação com o Direito Processual, tanto no Processo Civil (diante da existência de procedimentos especiais aplicáveis unicamente no Direito Marítimo, como a ratificação de protesto formado a bordo), quanto na existência do chamado "Direito Processual Marítimo", usualmente referido como o estudo do processo administrativo que se desenrola no Tribunal Marítimo. Há ainda o "Direito do Trabalho Marítimo", voltado ao estudo das relações trabalhistas dos que laboram a bordo de navios, com muitas especificidades, que, a um simples olhar de bom senso, já demonstram a inaplicabilidade de institutos trabalhistas "comuns", como a jornada de trabalho e o descanso semanal. 

Pode-se concluir, de tudo isso, que o Direito Marítimo goza de inequívoca autonomia, não se subsumindo a nenhuma das categorias em que são classificados os ramos do Direito, tratando-se de disciplina transversal, que se relaciona com várias outras e tem institutos comuns com estas, além de vários institutos próprios e específicos. Quanto à sua classificação, é impossível reconhecê-lo como ramo do Direito Privado ou do Direito Público.

Assim, concluindo esta breve reflexão, tem-se, quanto à epistemologia, que o Direito Marítimo é disciplina autônoma, que estuda as normas regedoras das relações jurídicas decorrentes da navegação aquaviária, em múltiplos aspectos. Quanto à taxinomia, é disciplina transversal, que, além dos seus próprios institutos, adota e adapta outros, de vários ramos do Direito Privado e do Direito Público.

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.