No âmbito do processo judicial, a Teoria Geral do Processo costuma dedicar um capítulo ao estudo das “partes” e “terceiros” do processo, eventualmente chamados de “atores processuais”, expressão que às vezes compreende também o magistrado e os auxiliares do juízo. Na prática forense, nos acostumamos às referências aos integrantes dos polos processuais, autor e réu, bem como aos terceiros intervenientes (assistentes, opoentes, etc.). Autor, réu e juiz foram a tríade processual, usualmente representada por um triângulo, já que as partes interagem com o juízo, mas também diretamente. Essa relação “triangular” supera a antiga visão do processo como uma relação “angular”, em que as partes interagiam apenas com o juiz, sem comunicação direta com a parte contrária. O atual CPC, ao contrário, incentiva a relação direta entre as partes, não apenas no âmbito da negociação sobre o mérito, mas também permitindo o entendimento quanto ao próprio procedimento, através do instituto do negócio processual, inspirado na arbitragem. Por fim, sabe-se que o Ministério Público exerce papel relevante nos processos civis e criminais, seja como parte, seja como fiscal da lei ou curador de interesses indisponíveis.
Tudo o que foi dito no parágrafo anterior – de amplo conhecimento dos leitores – tem apenas o intuito de contextualizar o tema do presente artigo, que tem o singelo objetivo do sistematizar informações já presentes, de modo esparso, na Lei e nas normas internas do Tribunal Marítimo, para que sejam mais acessíveis àqueles que não militam perante a Corte Marítima, mas pretendem fazê-lo ou apenas conhecer como funciona na prática.
Nos processos administrativos “genéricos”, que não seguem um rito particular, usualmente a relação processual não é “triangular”, mas linear, tendo de um lado o particular (“administrado”, como se costuma chamar na literatura de Direito Administrativo) e de outro a Administração, que exerce também a função de decidir (“julgar”). Não por acaso, se costuma observar uma dificuldade, em estagiários ou advogados recém-formados, na elaboração de petições nesse contexto, já que toda a ênfase da formação universitária é no processo judicial, em que há uma parte contrária a ser criticada e “vencida” através do julgamento de um terceiro imparcial (o Estado-Juiz). No processo administrativo, porém, a “parte contrária” é a própria Administração, que também julgará, e precisa, muitas vezes, ser convencida do desacerto de seus próprios entendimentos.
No âmbito do Tribunal Marítimo (TM), embora seja um processo administrativo, segue um rito bem peculiar, detalhadamente previsto na Lei 2.180/54 (Lei Orgânica do Tribunal Marítimo – LOTM), no seu Regimento Interno Processual (RIPTM) e em outros regulamentos próprios. A relação processual é efetivamente triangular, pois há um polo ativo (acusação), um polo passivo (defesa) e o julgamento por um terceiro imparcial, que é o colegiado do TM.
No polo ativo da relação processual, há duas situações possíveis: a mais comum é que este seja ocupado pela Procuradoria Especial da Marinha – PEM. Trata-se de órgão específico, que exerce atribuições semelhantes às do Ministério Público, e ordinariamente formula a peça acusatória (“representação”), quando convencido, após a análise do inquérito sobre acidentes e fatos da navegação (IAFN) da provável materialidade e autoria da infração.
A Procuradoria Especial da Marinha foi prevista no próprio Decreto n. 20.829/1931, que criou o TM, dispondo sobre um “procurador especial”, que seria aproveitado entre os “auditores da Marinha em disponibilidade ou, na falta, entre os membros da Procuradoria da República”. Já o primeiro ato normativo a tratar das suas atribuições foi o Decreto n. 24.585/1934.
Na LOTM, foi mantida a existência de uma procuradoria, tendo também sido criada a figura do advogado de ofício, a quem incumbiria a defesa dos acusados com gratuidade de justiça e curadoria dos revéis. Refletindo modelo presente em alguns Estados, foi previsto que o advogado de oficio – defensor público – seria o estágio inicial da carreira de procurador.
Com a promulgação da lei 7.642/19871, a procuradoria passou a se chamar Procuradoria Especial da Marinha (PEM), com subordinação ao Ministro da Marinha. Essa mesma lei – considerada a Lei Orgânica da PEM e vigente até os dias de hoje – criou o cargo de Diretor da Procuradoria Especial da Marinha, exercido por um Oficial Superior da Armada, e suprimiu a previsão de adjuntos de procurador, passando a PEM a ser composta apenas por procuradores e advogados de ofício.
Apesar de exercer um papel semelhante ao do Ministério Público, a posição institucional da PEM não era muito clara nessa época, pois incluía funções que hoje são próprias do Ministério Público, mas também algumas da Defensoria Pública e Advocacia Pública. É fato, porém, que antes da Constituição de 1988, o próprio Ministério Público Federal exercia funções de representação judicial da União. Em 2000, os advogados de oficio foram transferidos para a Defensoria Pública da União e a carreira de procuradores especiais, no mesmo ano, foi transposta para a Advocacia-Geral da União (AGU)2, tendo seus titulares sido transformados em Advogados da União em 2002, permanecendo, porém, em exercício na PEM.
Posteriormente, contudo, a AGU resolveu remover os membros que vinham exercendo suas funções na PEM, razão pela qual foi editada Portaria Conjunta, n. 3, de 30 de julho de 2014, do Consultor-Geral da União e do Comandante da Marinha3, por meio da qual se decidiu repassar o exercício das funções de procurador aos militares Oficiais do Quadro Técnico da Marinha, o que perdura até hoje.
Portanto, o que se tem hoje é um órgão sui generis, com funções semelhantes às do Ministério Público, mas formada por oficiais do Quadro Técnico, bacharéis em Direito.
A Lei prevê ainda a figura do assistente de acusação, em que aquele que tem legítimo interesse jurídico ou econômico, poderá requerer sua admissão para, ao lado da PEM, formular a acusação.
Finalmente, nos casos em que a PEM não oferece a representação, o particular, igualmente quando dotado de interesse legítimo, poderá fazer a chamada “representação de parte”, que em muito se assemelha à ação penal privada subsidiária da pública. Nestes casos, a PEM funciona como custos legis, e não como parte.
Em ambos os casos – assistência de acusação ou representação privada – a hipótese mais comum é de seguradoras ou clubes de P&I, que pretendem buscar, em ação de regresso, a responsabilização dos culpados pelo acidente ou fato da navegação.
No polo passivo do processo marítimo constam os “representados”, isto é, aqueles que são apontados, pela acusação, como responsáveis pelo acidente ou fato da navegação. São representados por seus advogados ou, na falta deles, pela Defensoria Pública da União. Obviamente, pode ocorrer uma pluralidade de partes no polo passivo, se vários forem os acusados pelo acidente. Não se trata, porém, de um litisconsórcio unitário, pois a conclusão pode ser diferente para cada um deles – condenação ou absolvição – e os interesses frequentemente são opostos.
Assim, observa-se que no processo marítimo, também ocorre a formação de uma relação triangular, tendo num dos vértices o representante (PEM ou autor da representação privada), podendo ocorrer ainda a assistência; no outro vértice um ou mais representados e, terceiro vértice, no papel do Estado-Juiz, o colegiado do Tribunal Marítimo.
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1 BRASIL. Lei n. 7.642, de 18 de dezembro de 1987. Disponível aqui. Acesso em: 19 jan. 2024.
2 PROCURADORIA ESPECIAL DA MARINHA. Histórico. Disponível aqui. Acesso em: 20 jan. 2024.
3 BRASIL. Advocacia-Geral da União. Portaria Conjunta n. 3, de 30 de julho de 2014. Disponível aqui. Acesso em: 20 jan. 2024.