Na ocasião em que Malcom McLean, em meados da década de 50, teve a ideia visionária de otimizar sua logística no transporte e translado de carga de um local para outro, usando invólucros padronizados que acondicionavam as cargas em seus interiores e facilitavam o manuseio, o conhecido contêiner foi então empregado, servindo tanto no serviço logístico, quanto na proteção da carga durante o transporte.
A ideia revolucionou a indústria, que acabou se adaptando para o transporte de cargas conteinerizadas. Consequentemente, navios, terminais e caminhões ajustaram-se à caixa metálica cheia de produtos. O contêiner tornou-se uma base importante do sistema de comércio e transporte internacional.
A partir disso e como primazia, é necessário compreender que o contêiner não constitui embalagem da mercadoria2, tratando-se de uma das espécies de unidade de carga legalmente previstas. Neste sentido a Lei nº 6.288/75 e Lei nº 9.611/98, respectivamente:
- Do contêiner
Art. 3º. O container, para todos os efeitos legais, não constitui embalagem das mercadorias, sendo considerado sempre um equipamento ou acessório do veículo transportador.
- Da unidade de carga
Art. 24. Para os efeitos desta Lei, considera-se unidade de carga qualquer equipamento adequado à unitização de mercadorias a serem transportadas, sujeitas a movimentação de forma indivisível em todas as modalidades de transporte utilizadas no percurso.
Parágrafo único. A unidade de carga, seus acessórios e equipamentos não constituem embalagem e são partes integrantes do todo.
Como unidade de carga, o contêiner é responsável pela acomodação da carga para realização do transporte marítimo com maior eficiência e segurança, tratando-se de equipamento, acessório à embarcação - navio conteineiro ou porta-contêineres-, adequado à unitização de mercadorias a serem transportadas, passível de completa manipulação durante o percurso.
Deste modo, deve-se compreender que, apesar do contêiner oferecer comodidade para o transporte da carga, a carga poderia vir a ser transportada independentemente da utilização deste recipiente, sendo o contêiner um instrumento facilitador do transporte, e não uma obrigatoriedade ao transporte da carga.
Neste aspecto, é certo que toda embalagem deve ser e estar adequada ao produto, de modo a manter sua integridade ao longo do transporte marítimo até o momento do seu descarregamento, a fim de evitar quaisquer danos durante o transporte, visto que uma embalagem inapropriada da mercadoria pode vir a causar danos à mesma.
Sobre isso, ao analisarmos as ações regressivas ajuizadas no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo3, podemos notar que o vício de embalagem é uma das principais causas de avaria de carga, representando número expressivo de sinistros, pois o incorreto acondicionamento da mercadoria em embalagem própria pode vir a ocasionar o perdimento total ou parcial da carga, além de prejuízos significativos aos envolvidos na operação.
Neste ponto, imprescindível também avaliar o tipo de mercadoria que está sendo exportada, a fim de adequá-la ao recipiente no qual ela será estufada. Para mercadorias que necessitam de refrigeração, um contêiner reefer é indispensável para o transporte da carga. Já aquelas mercadorias pesadas e maiores, como máquinas de grande porte, podem necessitar de um contêiner flat rack ou open top, que possuem aberturas em suas extremidades laterais e/ou superior, sendo por vezes compostos por peças removíveis.
Além disso, importante citar que algumas mercadorias, como é o caso dos produtos perigosos, possuem especificidades legais próprias que obrigam o acondicionamento em embalagens homologadas. No modal marítimo, por exemplo, as mercadorias perigosas devem ser embaladas obedecendo os termos do IMDG – International Maritime Dangerous Goods (Código Marítimo Internacional para Cargas Perigosas) e da NORMAM-05/DPC.
Deste modo, é certo que a má unitização da carga no interior do contêiner, realizada sem os devidos cuidados, poderá vir a ocasionar avarias na carga, sendo o momento do estufamento do contêiner de crucial relevância para a garantia da incolumidade da mercadoria.
Dito isso, sabe-se que, com o balançar das ondas e da maré, é comum e inevitável que os contêineres transportados acompanhem o movimento da embarcação. Logo, por esse motivo e agregando tudo o que já foi tratado neste texto, a integralidade das cargas armazenadas no interior das unidades depende de uma correta ovação, peação, amarração e utilização de embalagem adequada para o produto.
Dito isso, nos deparamos com o cerne da questão: é possível o Armador ser responsável pelo mau acondicionamento do produto dentro do contêiner, ainda que não tenha sido este quem o embalou, acondicionou, estivou e lacrou?
Sobre isso, nos casos em que o transportador recebe a carga acondicionada, resta evidenciado no próprio conhecimento de transporte de quem é a responsabilidade do acondicionamento da carga antes do embarque, sendo normal ver ressalvas tais quais “said to contain”, “shipper’s load, stow, weight, count and seal” e “Full Container Load”, entre outras.
Deste modo, quando as partes contratantes estipularem que a responsabilidade e o dever de estufagem da carga são do exportador, restará evidenciado que o transportador já recebe a carga peada, acondicionada, estivada, amarrada e lacrada pelo shipper, não possuindo conhecimento ou responsabilidade quanto ao correto acondicionamento desta carga no contêiner.
Assim, sendo a responsabilidade do exportador a estufagem correta da mercadoria no contêiner, poderia o Armador, que recebe o contêiner já lacrado, não participou da sua estufagem antes do transporte marítimo e não tem acesso às condições da carga em seu interior – apesar de muitos armadores oferecerem serviços similares de estufagem e ovação, normalmente não são contratados para tanto -, ser o responsável por uma avaria na carga fruto de má estufagem ou amarração da mercadoria no interior do contêiner?
A esse respeito, a legislação brasileira prevê a inexecução da obrigação por fato que não pode ser imputado ao armador, exonerando-o nas hipóteses de ter havido vício próprio da mercadoria e embalagem inadequada da carga.
Isso porque, o Armador não possui qualquer responsabilidade quanto à estufagem da carga nos casos em que recebe a mercadoria devidamente acomodada e lacrada pelo embarcador, não possuindo qualquer meio de acesso ao interior do contêiner - a não ser se violasse o lacre da unidade, o que seria uma conduta ilícita.
Ainda, para que se caracterize a responsabilidade do transportador marítimo, seria indispensável demonstrar o nexo de causalidade entre as avarias na carga e a conduta do transportador.
Neste ponto, sabendo que a responsabilidade do transportador marítimo inicia-se apenas com o recebimento da mercadoria, se em razão da inadequação da embalagem a carga vier a sofrer avarias, é certo que a causa dos danos teve origem na fase de pré-embarque, isentando-se o transportador, portanto, de qualquer responsabilidade, a qual deve ser atribuída ao embarcador, responsável pela estufagem e armazenagem da mercadoria no contêiner.
Neste liame, cumpre ressaltar que nos casos em que o contêiner é entregue lacrado ao transportador marítimo, é de responsabilidade do embarcador o correto acondicionamento da carga em contêiner lacrado, porquanto impossibilita qualquer tipo de vistoria pelo transportador marítimo.
Deste modo, assim como para cada tipo de mercadoria existe um contêiner apropriado, o armazenamento composto da estufagem da mercadoria também deve ser adequado, cabendo ao embarcador toda e qualquer responsabilidade pelo seu mau acondicionamento.
Logo, nos casos em que o contêiner é entregue estufado e lacrado ao transportador, a responsabilidade do armador é limitada à entrega da mercadoria no destino no estado em que foi recebido, ou seja, ainda em contêiner lacrado e em boas condições externas daquela unidade de carga, não podendo ser obrigado a responder pelos danos ocasionados na mercadoria que foi embalada e acondicionada de forma incorreta por terceiro, em seu anterior, como prevê o artigo 16, inciso II da Lei 9.611/98:
Art. 16. O Operador de Transporte Multimodal e seus subcontratados somente serão liberados de sua responsabilidade em razão de:?
(...) II - inadequação da embalagem, quando imputável ao expedidor da carga;?
Diante disso, a responsabilidade pela embalagem e estufagem da carga é do expedidor da carga, que deve cuidadosamente escolher a embalagem do produto, considerando as características da carga e o tempo de percurso, além de outras determinações legais específicas.?Sobre isso, o decreto Lei 64.387 de 22/04/1969 estabelece:
Art. 4º Parágrafo 4º - A inadequabilidade da embalagem, de acordo com os usos e costumes e recomendações oficiais, equipara-se aos vícios próprios da mercadoria, não respondendo a entidade transportadora pelos riscos e consequências daí decorrentes.”
Neste sentido vêm sendo o entendimento pacificado no Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
Estufagem realizada pelo embarcador – Contêiner desembarcado em bom estado e com lacre intacto – Ausência de responsabilidade do transportador 12.1 Ação regressiva – Ressarcimento – Seguro – Decadência – Não ocorrência – Transporte marítimo – Avarias na carga – Danos causados em razão do mau acondicionamento no interior do contêiner – Ciência pela segurada da forma empregada na fixação da mercadoria – Culpa in elegendo e in vigilando – Seguradora que não estava contratual e nem legalmente obrigada a promover o pagamento – Sentença de improcedência – Decisão correta – Recurso improvido (TJ-SP - APL: 1028954- 80.2015.8.26.0562, Relator: Souza Lopes, 17ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 24/10/2018). 5
Responsabilidade civil – Transporte marítimo – Ação regressiva – Sentença que julgou improcedentes os pedidos com relação à MSC (...) TRANSPORTE DE CARGAS – Avarias - Responsabilidade das requeridas pelos danos verificados na carga transportada - Descabimento – Falha na preparação do contêiner - Hipótese em que a causa do sinistro foi a movimentação da carga dentro do contêiner – Falha na preparação do contêiner, o que afasta a responsabilidade das rés – Recurso não provido. (TJSP - APL: 1005356-63.2016.8.26.0562, Relator: Helio Faria, 18ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 13/03/2017). 6
Inépcia da petição inicial – ILEGITIMIDADE ATIVA – ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM – INÉPCIA DA PETIÇÃO INICIAL – PRESCRIÇÃO – TRANSPORTE MARÍTIMO. (...) A primeira corré trata-se de transportadora não operadora de navio, denominada "NVOCC - Non-vessel operating common carrier" – Necessidade de contratação da transportadora de fato – Ambas as empresas integram a cadeia prestadora dos serviços de transporte marítimo – Incidência do artigo 756 do Estatuto Substantivo Civil – Preliminar afastada. (...) Demanda proposta pela seguradora sub-rogada contra transportadora para ressarcimento pela perda/avaria da carga (...) TRANSPORTE MARÍTIMO – Responsabilidade objetiva da transportadora – Necessidade de nexo de causalidade entre a conduta das corrés e os danos sofridos – Suscitado vício de origem – Constatação – Provas dos autos que indicam para o mau acondicionamento da 12 Contêiner Lacrado / FCL 197 mercadoria – Ausência de impacto externo comprovado – Demais peças que foram entregues em perfeitas condições – Dever de indenizar não configurado – Litigância de má-fé não caracterizada – Ação julgada procedente – Sentença reformada – Recursos parcialmente providos . (TJSP 10102678320158260100, Relator: Carlos Alberto Lopes, 32ª Câmara Extraordinária de Direito Privado, Data de Publicação: 10/10/2017). 7
Logo, é certo que toda deficiência na embalagem pode vir a gerar um dano para o consignatário, que anseia pelo recebimento incólume de sua mercadoria.
Contudo, também podemos afirmar que não cabe qualquer tipo de imputação de responsabilidade ao transportador marítimo por vícios de embalagem da carga ou avarias que tenham como causa uma má amarração, ovação ou acondicionamento da carga no interior do contêiner, quando tais tarefas são realizadas pelo embarcador, sendo este último, portanto, o responsável por eventuais danos em razão de mau acondicionamento da mercadoria no interior do contêiner.