Migalhas Marítimas

BR DO MAR e o “embróglio”, pelo viés concorrencial, da questão da bandeira estrangeira na cabotagem

Lei 14.301/22 institui o BR DO MAR para estimular o transporte por cabotagem e promover objetivos como ampliar a oferta e incentivar a concorrência.

14/3/2024

É de conhecimento dos estudiosos, juristas e empresários do setor marítimo que em 25/3/22 foi publicada a lei 14.301/22 que, dentre outras iniciativas na navegação, instituiu o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem (BR DO MAR), visando os seguintes objetivos:

  1. ampliar a oferta e melhorar a qualidade o transporte por cabotagem;
  2. incentivar a concorrência e a competitividade na prestação do serviço de transporte por cabotagem;
  3. ampliar a disponibilidade de frota para a navegação de cabotagem;
  4. incentivar a formação, a capacitação e a qualificação de marítimos nacionais;
  5. estimular o desenvolvimento da indústria naval de cabotagem brasileira;
  6. revisar a vinculação das políticas de navegação de cabotagem com as políticas de construção naval;
  7. incentivar as operações especiais de cabotagem e os investimentos delas decorrentes em instalações portuárias, para atendimento de cargas em tipo, rota ou mercado ainda não existentes ou consolidados na cabotagem brasileira; e
  8. otimizar o emprego dos recursos oriundos da arrecadação do Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante - AFRMM.

Ante à leitura da redação acima, percebe-se que o grande objetivo da BR DO MAR é a ampliação da oferta e melhora da qualidade do transporte por cabotagem, estimulando o desenvolvimento da indústria naval de cabotagem brasileira (que, nada mais é que a navegação entre portos do mesmo país) e, por via de consequência, incentivar a concorrência e a competitividade na prestação do serviço de transporte por cabotagem.

Isto porque, o Brasil é um país conhecido pelo transporte rodoviário, tanto na condução de pessoas quanto na circulação de mercadorias e, levando-se em conta o excessivo custo do combustível e a manutenção e pavimentação das rodovias, entende-se que o aperfeiçoamento da indústria naval, especialmente pela via da cabotagem, é uma alternativa eficiente e menos onerosa para lidar com a demanda logística do mercado brasileiro. 

Nesse sentido, a edição da lei trouxe uma série de benefícios ao setor naval, com a desburocratização dos trâmites da cabotagem, mas o que chamou mais atenção com a edição da lei, com certeza, foi a autorização de forma progressiva da utilização de navios estrangeiros durante a navegação de cabotagem sem a necessidade de contratar a construção de embarcações em portos brasileiros. Vejamos a redação da lei: 

Art. 5º A empresa habilitada no BR do Mar poderá afretar por tempo embarcações de sua subsidiária integral estrangeira ou de subsidiária integral estrangeira de outra empresa brasileira de navegação para operar a navegação de cabotagem, desde que essas embarcações estejam:

  1. em sua propriedade; ou
  2. em sua posse, uso e controle, sob contrato de afretamento a casco nu.

§ 1º O afretamento de que trata o caput deste artigo poderá ser realizado nas seguintes hipóteses:

ampliação da tonelagem de porte bruto das embarcações próprias efetivamente operantes, registradas em nome do grupo econômico a que pertença a empresa afretadora, de acordo com a proporção a ser definida em ato do Poder Executivo federal;

  1. substituição de embarcação de tipo semelhante em construção no País, na proporção de até 200% da tonelagem de porte bruto da embarcação em construção, pelo prazo de 6 meses, prorrogável por igual período, até o limite de 36 meses;
  2. substituição de embarcação de tipo semelhante em construção no exterior, na proporção de até 100% da tonelagem de porte bruto da embarcação em construção, pelo prazo de 6 meses, prorrogável por igual período, até o limite de 36 meses;
  3. atendimento exclusivo de contratos de transporte de longo prazo, nos termos dispostos em ato do Poder Executivo federal; e
  4. prestação exclusiva de operações especiais de cabotagem, pelo prazo de 36 meses, prorrogável por até 12 meses, nos termos dispostos em ato do Poder Executivo federal.

Isto porque, no passado, a lei 9.432/97 colocou limitações à utilização de embarcações estrangeiras na navegação de cabotagem. Veja-se o disposto no art.9°:

Art. 9º O afretamento de embarcação estrangeira por viagem ou por tempo, para operar na navegação interior de percurso nacional ou no transporte de mercadorias na navegação de cabotagem ou nas navegações de apoio portuário e marítimo, bem como a casco nu na navegação de apoio portuário, depende de autorização do órgão competente e só poderá ocorrer nos seguintes casos:

  1. quando verificada inexistência ou indisponibilidade de embarcação de bandeira brasileira do tipo e porte adequados para o transporte ou apoio pretendido;
  2. quando verificado interesse público, devidamente justificado;
  3. quando em substituição a embarcações em construção no País, em estaleiro brasileiro, com contrato em eficácia, enquanto durar a construção, por período máximo de trinta e seis meses, até o limite:

Veja-se que o disposto no inciso I do art. 9º previa a necessidade de realização de um processo de consulta às empresas brasileiras de navegação quanto a disponibilidade de navios para afretamento. Entretanto, caso não existisse embarcação nacional disponível ou as condições exigidas para tais embarcações fossem incompatíveis com a necessidade ou com as condições de mercado, o afretamento de embarcações estrangeiras já era passível de autorização. 

Assim, como exposto, com o advento da BR DO MAR obstou-se a obrigatoriedade de empresas navais consultarem o mercado sobre a disponibilidade de embarcações de bandeira brasileira disponível para o transporte, com a flexibilização gradativa das regras de afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira brasileira. 

Fato que, entretanto, já no passado podia ser flexibilizado, porém através de autorização, na hipótese de não existir embarcação brasileira disponível para a realização do transporte, a teor do art. 9°, I, da lei 9.432/97. 

Ademais, sobre o tema, é possível ver doutrinas do passado, destacando a exclusividade da embarcação nacional na cabotagem no Brasil, com destaque para a necessidade de existir autorização do estado costeiro autorizando a navegação por navios de outras nacionalidades, veja-se1

“5) Navegação de cabotagem: O Estado costeiro pode reservar o navegação de cabotagem exclusivamente para embarcações nacionais. Isto é, o comércio marítimo entre um porto nacional e outro é um direito específico das embarcações com pavilhão do Estado costeiro. Se não houver nenhum tratado ou consentimento do Estado costeiro autorizando este tipo de navegação por navios de outras nacionalidades, como regra, somente as embarcações de bandeira nacional podem realizar a cabotagem comercial entre dois portos de um mesmo país.”

E ainda2

“A navegação de cabotagem é exclusividade das embarcações nacionais, isto é, o comércio marítimo entre um porto nacional e outro é um direito específico das embarcações com pavilhão do Estado costeiro. Se não houver nenhum tratado ou consentimento do país ribeirinho no sentido de autorizar este tipo de navegação por navios de outras nacionalidades, como regra, somente as embarcações de bandeira nacional podem realizar a cabotagem comercial entre dois portos de um mesmo país. Isto, naturalmente, impede que um navio estrangeiro faça escalas em dois ou mais portos de uma mesma nação”

Ou seja, podemos resumir a BR DO MAR como verdadeiro conjunto de regras de afretamento de embarcações de bandeira estrangeira para operar na cabotagem sem a obrigatoriedade de se consultar o mercado sobre a disponibilidade de embarcações de bandeira brasileira disponível para fazer o transporte entre os portos brasileiros. 

Dessa forma, empresas brasileiras de navegação estão autorizadas a operar na cabotagem, mesmo que não possuam frota própria.  

Assim, cumpre-se destacar aqui que o objetivo deste artigo é trazer luz para esse ponto em específico da BR DO MAR, qual seja a utilização de navios de bandeira estrangeira na cabotagem nacional, sem a necessidade de autorização, que, a despeito de confirmar o aumento da competitividade na cabotagem brasileira, barateando os custos nesta dinâmica, chama a atenção para o debate sobre até que ponto isso não gerará uma dependência pela frota internacional, através do monopólio de empresas multinacionais estrangeiras. 

Sobre o ponto, cumpre expor que, quando do PL 4.199/20) para criação da BR DO MAR, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE expediu Nota Técnica (39/20/DEE/CADE), analisando os efeitos concorrenciais do referido PL. Veja-se ementa: 

“EMENTA: A presente nota técnica analisa os efeitos concorrenciais do PL 4.199/20, de autoria do Poder Executivo, que "Institui o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem - BR do Mar e altera a lei 5.474, de 18 de julho de 1968, a lei 9.432, de 8 de janeiro de 1997, a lei 10.233, de 5 de junho de 2001, e a lei 10.893, de 13 de julho de 2004", bem como das Emendas de Plenário a ele relacionadas. Apresenta-se ressalvas quanto as restrições impostas ao afretamento a tempo, bem como pondera sobre a real necessidade da liberalização por fases no afretamento a casco nu e sobre a transparência de preços de fretes. Indica a possibilidade de prejuízos concorrenciais da vedação de integração ver cal proposta pela Emenda 23 e da vedação da participação de empresas do setor petroleiro conforme Emenda 43. VERSÃO: Pública”

Ante à leitura da referida Nota Técnica, o CADE considerou à época que, no geral, o PL (atualmente a BR DO MAR) representa melhorias no ambiente concorrencial. Senão, veja-se passagem da referida Nota Técnica: 

“Na mesma linha, o PL propõe flexibilização do afretamento de embarcações a casco nu. Na alteração proposta para o Art. 10, da lei 9.432/97, verifica-se que o PL introduz importantes medidas no sentido de liberalização do afretamento de embarcações estrangeiras a casco nu Também aqui se verifica avanço em relação ao contexto atual, em que o afretamento de embarcações a casco nu é condicionado à existência do chamado “lastro” – as EBNs podem afretar embarcações a casco nu em uma proporção de 50% das embarcações de sua propriedade. Assim, a EBN que possui duas embarcações, pode afretar uma a casco nu. A proposta apresentada elimina a necessidade do lastro, possibilitando que as EBNs atuem na navegação de cabotagem com embarcações afretadas, sem a necessidade de frota própria. Desta forma, acredita-se que o PL representa avanço no sentido de um ambiente mais competitivo ao reduzir barreiras à entrada no mercado de navegação de cabotagem”

Fica aqui a autorreflexão no sentido de que toda tentativa de restrição da concorrência, não desenvolve a indústria (como um todo, não apenas a naval). Ao contrário abre espaço para que o setor fique estagnado por falta de competição, trazendo prejuízos para a sociedade como um todo.

Pois bem, em que pese o parecer do CADE, de fato, ter considerado o Projeto (atual BR DO MAR) positivo, naquela época o PL já tinha opositores, a exemplo do deputado Fausto Pinato, que, em suas palavras, considerou que a BR DO MAR consolidaria a exploração da cabotagem pelas multinacionais estrangeiras. Senão veja-se nota publicada pelo Deputado, quando do pedido de informações ao CADE:

“O Cade confirma que, se o PL for aprovado da maneira que está, irá consolidar a exploração da cabotagem brasileira junto a empresas estrangeiras que já controlam 95% do setor, operando 80% das operações feitas em águas brasileiras, com seus navios estrangeiros. Isso acontecerá, porque o BR do Mar possibilitará que essas embarcações sejam consideradas brasileiras, impedindo que empresas que ainda estão em processo de formação de frota recorram ao mercado para afretar navios”,

Nesse sentido, para a banca de oposição, a atual BR DO MAR, com a abertura, sem necessidade de autorização, da cabotagem às empresas estrangeiras, a bem da verdade teria distorcido a concorrência no mercado nacional de navegação de cabotagem, dificultando a entrada de pequenas empresas brasileiras no setor, consolidando, dessa forma, o monopólio das multinacionais estrangeiras.

CONCLUSÃO

O presente artigo aborda a BR DO MAR (lei 14.301/22) sob o viés da questão concorrencial, por conta da redação da referida lei. Isto porque, a BR DO MAR trouxe verdadeiro conjunto de regras de afretamento de embarcações de bandeira estrangeira para operar na cabotagem sem a obrigatoriedade de se consultar o mercado sobre a disponibilidade de embarcações de bandeira brasileira disponível para fazer o transporte entre os portos brasileiros. 

No passado, a lei 9.432/97 colocou limitações à utilização de embarcações estrangeiras na navegação de cabotagem.

O inciso I do art. 9º da lei 9.432/97 previa a necessidade de realização de um processo de consulta às empresas brasileiras de navegação quanto a disponibilidade de navios para afretamento. Entretanto, caso não existisse embarcação nacional disponível ou as condições exigidas para tais embarcações fossem incompatíveis com a necessidade ou com as condições de mercado, o afretamento de embarcações estrangeiras já era passível de autorização.

Pois bem, como dito, com o advento da BR DO MAR obstou-se a obrigatoriedade de empresas navais consultarem o mercado sobre a disponibilidade de embarcações de bandeira brasileira disponível para o transporte, com a flexibilização gradativa das regras de afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira brasileira.

E, a despeito de confirmar o aumento da competitividade na cabotagem brasileira, barateando os custos nesta dinâmica, chama a atenção para o debate sobre até que ponto isso não gerará uma dependência pela frota internacional, através do monopólio de empresas multinacionais estrangeiras.

Como demonstrado, no passado, quando da edição do PL da BR DO MAR, CADE considerou à época que, no geral, o Projeto de Lei (atualmente a BR DO MAR) representa melhorias no ambiente concorrencial.

Entretanto, a BR DO MAR, já naquela época, quando do PL, sofreu com a oposição, eis que, para determinado grupo de opositores, a atual BR DO MAR, com a abertura da cabotagem, sem necessidade de autorização, às empresas estrangeiras, a bem da verdade teria distorcido a concorrência no mercado nacional de navegação de cabotagem, dificultando a entrada de pequenas empresas brasileiras no setor, consolidando, dessa forma, o monopólio das multinacionais estrangeiras. 

Por fim, a autora reforça aqui seu entendimento de que toda tentativa de restrição da concorrência, não desenvolve a indústria (como um todo, não apenas a naval). Ao contrário abre espaço para que o setor fique estagnado por falta de competição, trazendo prejuízos para a sociedade como um todo.

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1 Direito do Mar – Fundamentos e Conceitos Normativos, Tiago V Zanella, p. 30.

2 Manual de Direito do Mar, Tiago V Zanella, p. 160.

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.