Em dezembro/2021, escrevemos nessa coluna sobre as origens e aplicação das cláusulas knock-for-knock no Direito brasileiro1. Como esclarecido na oportunidade, tais cláusulas são costumeiramente utilizadas na indústria de óleo e gás e, resumidamente, preveem um regime de responsabilidade no qual o causador de um dano pode deixar de ter responsabilidade pela sua reparação, assumindo, cada um dos envolvidos, seus próprios prejuízos.
Como examinado detalhadamente naquela oportunidade, para além de representar maior segurança operacional para os players do mercado – na medida em que estabelece um sistema de responsabilidade pré-fixado e previsível – as cláusulas knock-for-knock surgiram visando proporcionar, na medida do possível, uma distribuição equitativa de riscos entre as partes.
Tendo em vista a crescente relevância dessa modalidade de cláusula na indústria marítima, entretanto, é oportuno revisitar o tema abordando, em especial, sua aplicação e interpretação de acordo com conceitos existentes no Direito brasileiro, uma vez que se trata de cláusula originária do direito estrangeiro.
Iniciando exatamente por esse ângulo, no cenário internacional, o modelo de contrato SUPPLYTIME 2017 da BIMCO fornece uma conceituação interessante sobre as cláusulas knock-for-knock2. Confira-se:
“SUPPLYTIME é um contrato de afretamento por tempo para navios de apoio offshore. Funciona com base num regime de responsabilidade "knock for knock", o que significa que cada parte concorda em assumir a responsabilidade e indenizar a outra relativamente a perdas ou danos nos seus próprios bens e ferimentos ou morte do seu pessoal, independentemente da culpa.” (tradução livre)
A título exemplificativo, no âmbito de um contrato de SUPPLYTIME, que configura um afretamento por tempo, é possível haver o abalroamento de embarcações, resultando, por exemplo, em danos a um navio cargueiro ou do outra categoria. Nesses casos, de acordo com a cláusula knock-for-knock, a responsabilidade pelo dano não poderia recair sobre a embarcação de apoio, ainda que a mesma tenha sido a causadora do dano, havendo, ao contrário, repartição dos prejuízos, cada parte assumindo seus próprios prejuízos3.
A lógica por de trás da aplicação da cláusula, nesse caso, é impedir que o custo de reparo de um grande cargueiro seja suportado pelo operador do reboque – que também não será aquele que terá maior proveito da atividade econômica desempenhada. Em outras palavras, a depender do caso, as cláusulas knock-for-knock podem ser utilizadas para garantir a manutenção e o funcionamento saudável do mercado internacional de apoio marítimo e offshore, protegendo quem pode ser considerado como a parte economicamente mais “frágil” da relação contratual4.
Ao adentrar o Direito brasileiro, todavia, não encontramos correlação exata da noção “knock-for-knock” com outros institutos jurídicos – seja na legislação, seja na jurisprudência, o que tende a criar dificuldades na importação dessas cláusulas e interpretação entre nós.
Os Tribunais brasileiros, à míngua de melhor solução, têm preferido enquadrar as cláusulas em questão como cláusulas gerais de não indenização, que isentam o causador do dano da responsabilidade pelos prejuízos sofridos pela contraparte contratual. Contudo, para que tais cláusulas contratuais sejam consideradas válidas, a jurisprudência exige o atendimento de alguns requisitos, como aqueles elencados em julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Confira-se:
"Segundo o jurista Carlos Roberto Gonçalves há cinco requisitos a serem respeitados para que a cláusula de não indenizar seja considerada plenamente válida pelo ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam: a) não colisão com preceito de ordem pública; b) ausência de intenção de afastar obrigação de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato; c) inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do causador do dano; d) bilateralidade de consentimento; e e) igualdade de posição das partes.”5
Em primeiro lugar, o requisito de “não colisão com preceito de ordem pública” relaciona-se diretamente com a limitação imposta aos contratantes em uma relação privada e significa que as cláusulas firmadas em contratos de afretamento não podem se sobrepor à Lei. Um debate que surge da aplicação desse requisito diz respeito à possibilidade de as referidas cláusulas atribuírem os riscos do negócio de maneira distinta à prevista em Lei – em contrariedade, por exemplo, a disposições legais de atribuição de responsabilidade objetiva a determinados agentes. Esse, portanto, o primeiro ponto controvertido no que diz respeito à aplicação das cláusulas knock-for-knock, uma vez que poderão colidir com preceitos legais que estabelecem, por exemplo, a responsabilidade objetiva, ou seja, sem culpa, de determinados agentes em suas atividades.
Com relação ao segundo requisito, parece haver menos controvérsia, pois as cláusulas em questão não teriam, em princípio, a intenção de afastar obrigação de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato. Afinal, o objeto dos contratos de afretamento seria a disponibilização de uma embarcação, seja por tempo, seja por viagem, sendo que essa obrigação central, em princípio, não seria afetada pela previsão, entre as partes, de uma cláusula knock-for-knock. Apesar disso, não é impossível cogitar da existência de um contrato em que a simples previsão dessa cláusula tangencie ou até mesmo afeta a obrigação central assumida por um dos contratantes, gerando espaço para controvérsias sobre sua validade.
No que concerne aos requisitos relativos à bilateralidade de consentimento e à igualdade de posição das partes, muito embora possa haver alguma distância de poderio econômico e técnico entre as partes envolvidas em um contrato marítimo, na maioria das vezes se trata de empresas sofisticadas, com recursos financeiros e suficientes para negociarem tais cláusulas validamente. Dessa maneira, tais requisitos também se fariam preenchidos no momento de celebração de cláusulas knock-for-knock (ou de não indenizar), por empresas do ramo de navegação, embora, novamente, o exame deva ser realizado caso a caso.
Por fim, o requisito da “inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do causador do dano” é o que gera maiores controvérsias na pactuação das cláusulas em referência. Isso porque ele exige uma análise cuidadosa da conduta do agente causador do dano, além também de retirar, em parte, a segurança pretendida pelas partes ao pactuar as cláusulas knock-for-knock, estabelecendo um regime pré-estabelecido de responsabilidade contratual em que, geralmente, não importará a avaliação da culpa do agente.
A controvérsia é acirrada, sem dúvida. Caso se comprove que o agente causador do dano agiu com dolo ou culpa grave, discute-se se ele poderá ser responsabilizado por eventuais prejuízos – independentemente de haver sido fixada cláusula contratual em sentido contrário6. Os Tribunais brasileiros, tal como descrito no julgado acima mencionado, parecem indicar a possibilidade dessa discussão, tornando por vezes relativa à presunção de isenção de responsabilidade trazida pelas cláusulas em exame, embora seja necessário avaliar as circunstâncias de cada contratação.
Fazendo um paralelo com outros ordenamentos, contudo, verifica-se que a prática internacional atribui maior autonomia às partes para determinar os limites da alocação de responsabilidade contratual. Com efeito, de acordo com a cláusula 14.(a) do BIMCO SUPPLYTIME 2017, e em sentido diametralmente oposto ao que entendeu o julgado do Tribunal de São Paulo, as partes teriam maior autonomia para convencionar a extensão da isenção de responsabilidade, mesmo em casos de danos oriundos de dolo ou culpa grave.
A Noruega, por exemplo – país com uma das maiores frotas mercantes do mundo – vem admitindo a aplicação da cláusula, recomendando, todavia, cautela nos casos em que se estiver diante de “negligência grave” (“gross negligence", em inglês). De todo modo, os Tribunais noruegueses tendem a prestigiar a autonomia contratual e a manifestação da livre iniciativa quando da pactuação dos contratos, chancelando a cláusula knock-for-knock e caminhando para admitir, inclusive e a depender do caso, a isenção de responsabilidade em hipóteses de negligência grave.
Certamente, a ideia por trás das cláusulas knock-for-knock é muito relevante para estabelecer, previamente, um sistema de responsabilidade a ser compartilhado entre todas as partes da relação contratual. Afinal, com a ciência prévia da alocação dos riscos no contrato, as empresas de navegação podem antever óbices à execução contratual, distribuir melhor os seus recursos e até observar incentivos para prestação do serviço da maneira mais adequada possível. Por outro lado, todavia, como foi possível perceber do julgado do Tribunal de São Paulo e da aplicação ponderada do conceito na Noruega, o uso cláusula knock-for-knock exige cautela, sob pena de se chancelar, em última instância, justamente, o que se pretendia evitar com a cláusula: o desequilíbrio da relação contratual em desfavor de uma das partes. Nesse contexto, os requisitos elencados pelo acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo fornecem indicativos que devem ser examinados para aferição da razoabilidade da cláusula em cada caso concreto.
Certo é que o tema ainda será revisitado pela jurisprudência pátria, considerando a ampliação da utilização das cláusulas knock-for-knock no mercado marítimo brasileiro.
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1 MIGALHAS. Cláusulas knock-for-knock: origem e aplicação no direito pátrio. Disponível aqui.
2 BIMCO. SUPPLYTIME 2017. Disponível aqui.
3 PARCHOMOVSKY, Gideon; STAVANG, Andre. Contracting around tort defaults: the knock-for-knock principle and accident costs. CREE Working Paper 14/2013.
4 Ibidem. pp. 122-123/179.
5 TJ/SP - AC: 10141782020178260590 SP 1014178-20.2017.8.26.0590, Relator: Alexandre Coelho, Data de Julgamento: 16/06/2021, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/06/2021
6 ARLOTA, Alexandre Sales Cabral. A cláusula knock-for-knock e sua admissibilidade à luz do direito brasileiro (Tese de Doutorado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito, Rio de Janeiro, 2018. p. 166.