Migalhas Marítimas

A "carteira de motorista" dos barcos: Como é hoje e como será em breve

A curiosidade é plenamente justificada pois, a um olhar externo, não se percebe, em geral, vias demarcadas, placas ou "sinais de trânsito" nesse meio, o que pode dar a falsa aparência de que não há regras nem espaços delimitados.

1/2/2024

Num dos artigos que publiquei neste espaço, “Existe um Código de Trânsito para o Mar?”, procurei atender aos leitores que, não tendo formação ou vivência marítima, têm curiosidade sobre as “normas de trânsito” do mar e de outros meios aquáticos.  A curiosidade é plenamente justificada pois, a um olhar externo, não se percebe, em geral, vias demarcadas, placas ou “sinais de trânsito” nesse meio, o que pode dar a falsa aparência de que não há regras nem espaços delimitados.  Neste mesmo contexto, uma pergunta frequente que ouço de amigos que embarcam pela primeira vez num barco de lazer é sobre qual “carteira de motorista” é preciso ter para conduzir uma embarcação. Por isso, dentro dos objetivos da Coluna, de levar o conhecimento sobre o Direito Marítimo para além dos que trabalham na área, trarei algumas noções básicas – provavelmente enfadonhas para os colegas maritimistas – sobre a “habilitação náutica”.

Para começar, a escolha da palavra “barcos”, no título deste texto, não é aleatória. É comum alguma dúvida sobre falar em “barcos” ou “navios”, por isso se costuma usar, nos textos e mesmo nas normas marítimas, a expressão “embarcação”, mais ampla.  Neste artigo, tratarei apenas das habilitações necessárias para a condução de embarcações de esporte e lazer, ou seja, dos amadores.  Não se tratará da navegação comercial, em que as embarcações são conduzidas por profissionais marítimos. Por isso, a opção por “barcos”.

Na habilitação para veículos terrestres, o conceito fundamental é de que a categoria (A, B, C, etc.) é determinada pelo tipo de veículo que se pretende conduzir: motos, carros, vans, ônibus, caminhões, etc.  Já na habilitação marítima para amadores, o conceito é bem diferente, dizendo respeito à área de navegação, e não ao tipo de embarcação que se pretende conduzir, salvo quanto às motos aquáticas (“jet skis”).

Spoiler: o parágrafo anterior deixará de ser verdadeiro dentro de exatos 4 (quatro) meses da publicação deste artigo, em 01/06/2024.

Mas vamos, primeiro, entender o conceito atual das regras: as atividades náuticas de esporte e recreio são regulamentadas por áreas de navegação, que têm as seguintes definições:

interior águas abrigadas ou parcialmente abrigadas, como lagoas, lagos, rios, baías e enseadas
costeira dentro dos limites de visibilidade da costa (até a distância máxima de 20 milhas náuticas da costa).
oceânica sem restrições (além de 20 milhas náuticas da costa) 

A exceção a este conceito está na habilitação de motonauta, que permite ao seu possuidor exclusivamente a condução de motos aquáticas, que, por definição legal, somente podem ser usadas em navegação interior.  A recíproca é verdadeira: mesmo quem tenha as habilitações descritas a seguir não está autorizado a conduzir motos aquáticas.  Assim, em resumo: a habilitação para a condução de jet skis é exclusiva da categoria de motonauta, e sua utilização só é permitida em navegação interior.

Portanto, excetuadas as motos aquáticas, para cada uma destas áreas de navegação, corresponde uma categoria de habilitação, que têm o nome, respectivamente, de arrais-amador (habilitado apenas para a navegação interior), mestre-amador (habilitado para navegação interior e costeira) e capitão-amador (habilitado para navegação interior, costeira e oceânica).  A obtenção dessas categorias é necessariamente escalonada: para obter a carteira de capitão-amador, é preciso antes obter a de mestre-amador e, para esta, é necessário ter antes a de arrais-amador.

Portanto, pelas normas atualmente em vigor – e assim é há décadas – um arrais-amador pode conduzir tanto um pequeno bote a motor até uma potente lancha de 50 pés (mais de 15 metros de comprimento), desde que nos limites da navegação interior.  Por outro lado, para conduzir um pequeno veleiro de 19 pés (pouco menos de 6 metros de comprimento) entre o Rio de Janeiro e Angra dos Reis, é necessária a habilitação de mestre-amador.

Em paralelo a esta categorização das habilitações, as Normas da Autoridade Marítima (NORMAM) preveem a categorização das próprias embarcações, segundo as mesmas áreas de navegação, isto é, interior, costeira e oceânica.  Para obter cada uma destas categorias, vale ressaltar, é necessária a dotação de equipamentos de navegação e de segurança, não havendo uma relação direta com o tamanho da embarcação.  Por isso, mesmo pequenos veleiros podem ser classificados, a pedido do proprietário, como de navegação oceânica, desde que sejam providenciados todos os equipamentos obrigatórios para essa categoria.

E o que muda, então, a partir de junho de 2024?

A mudança se dá exatamente no conceito fundamental de que tratei acima, ou seja, de que a habilitação do amador é correlacionada à área de navegação e não à embarcação conduzida.  Como dito, é a mudança de um conceito que vem sendo adotado há décadas.

É surpreendente, neste contexto, que uma mudança tão significativa tenha ocorrido por alteração tão discreta na norma.

No Capítulo 4 (que trata das embarcações, e não das habilitações) da Norma da Autoridade Marítima sobre atividades de esporte e recreio (NORMAM 211) foi inserida uma simples “nota”, em meio às tabelas que tratam do material obrigatório para as embarcações, com o seguinte teor:

Nota: Os itens relacionados nas tabelas dos artigos 4.33, 4.34 e 4.35 são de dotação e porte obrigatórios, em consonância com a classificação da embarcação constante do seu Título de Inscrição de Embarcação (TIE). Portanto, independente da navegação em que a embarcação de esporte e/ou recreio estiver empreendendo, a embarcação deverá dispor de todos os itens citados. Ressalta-se que a habilitação do condutor deverá ser compatível com a classificação da embarcação. Como regra de transição, essa obrigatoriedade passará a vigorar a partir de 1º de junho de 2024.

Trata-se de uma mudança significativa nas regras, que trará grande impacto para os amadores.   Ainda sem abordar o conteúdo da alteração, mas apenas a formalidade, é de se observar, com o devido respeito, que uma mudança tão significativa para a navegação de esporte e recreio, e que altera um conceito consolidado há muitos anos, precisaria ser feita através de uma regra específica, clara e direta, e não por uma simples “nota” que “ressalta” uma nova obrigação.

Numa análise técnico-jurídica mais rigorosa, a forma como foi feita tal mudança se revela bastante problemática.  Direitos e obrigações devem ser estabelecidos em norma expressa, ainda mais quando se trata de regras que podem gerar a imposição de sanções.  Se um condutor for autuado por não ter a habilitação correspondente à categoria da embarcação, qual norma será citada no auto de infração? A “nota que consta após o item 4.35”?  Sequer há um artigo ou item numerado que possa ser indicado, o que pode, inclusive, trazer indesejáveis nulidades às sanções aplicadas pelo descumprimento da “nota” (falta de tipicidade da conduta).

Quanto ao conteúdo da alteração, algumas críticas – sempre respeitosas à Autoridade Marítima, evidentemente – também são cabíveis.

Para se ter uma ideia do impacto desta mudança, imagine-se alguém que, por mais de 20 anos, tenha um pequeno veleiro ou lancha, que utiliza exclusivamente na Baía da Ilha Grande (e poderia ser a de Guanabara ou de Todos os Santos, ou ainda a Lagoa dos Patos), para pequenos passeios, ou seja, pratica exclusivamente a navegação interior. Para tanto, possui a habilitação de arrais-amador, suficiente para essa atividade. Imagine-se, ainda, que esse amador venha a trocar esta embarcação por outra, de mesmo tamanho (ou até menor), que tenha sido classificada, pelo proprietário anterior, para navegação costeira.    Para continuar navegando nos mesmos lugares, com um barco do mesmo porte, este amador terá que obter a habilitação de mestre.

Pode-se ainda imaginar a situação de uma embarcação utilizada por uma família, em que os pais têm a habilitação de mestre-amador, e conduzem a embarcação em águas costeiras, e os filhos têm a habilitação de arrais-amador, porque conduzem a mesma embarcação, apenas em pequenos passeios em águas interiores.  Com a nova norma, todos terão que obter a habilitação de mestre-amador, mesmo que para simples manobras, como levar o barco de uma vaga molhada (boia) para o cais da marina ou clube.  O mesmo valeria para coproprietários (situação bastante comum hoje em dia) que utilizem o mesmo barco para diferentes finalidades.

Em razão dessa mudança, é de se esperar que haja um significativo aumento na procura pelas habilitações mais elevadas (mestre-amador e capitão-amador), havendo dúvidas sobre a capacidade operacional das Capitanias dos Portos para atender a esse incremento na demanda pelos exames.

Em conclusão, pode-se afirmar que, além das dúvidas quanto à efetiva melhoria da segurança da navegação, que poderá advir dessa mudança, a alteração merece críticas, tanto formais quanto materiais.  Espero que o presente artigo seja uma contribuição, respeitosa e construtiva, para o seu aperfeiçoamento.

Quanto à pergunta que inicia este texto, pode-se sintetizar: a “carteira de motorista” dos navegadores amadores é a CHA (carteira de habilitação de amador), que pode ser emitida tem três categorias, a depender da classificação da embarcação que se pretende conduzir: arrais-amador, mestre-amador e capitão-amador.  E a recomendação final ao leitor é: antes de soltar as amarras de uma embarcação, mesmo que vá apenas movê-la de uma vaga para outra, alguns metros adiante, consulte o documento do barco, para saber se está legalmente habilitado a fazê-lo. 

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.