Introdução
Uma constatação bastante difundida é que o crescimento do comércio internacional nas últimas décadas ampliou a demanda por embarcações e a utilização de rotas marítimas, atualmente responsáveis por impressionantes 80% das mercadorias que circulam diariamente por meio do transporte internacional de cargas, segundo estimativa das Nações Unidas (“ONU”).1
Não por acaso, no âmbito do Direito Marítimo, que interessa mais diretamente os leitores dessa coluna, houve avanços notáveis na sistematização das obrigações e responsabilidades das partes nos contratos de transporte e nos contratos utilizados para afretamento das embarcações que são empregadas nas rotas comerciais marítimas.
De fato, esses dois instrumentos jurídicos são essenciais para o comércio marítimo internacional. Vale aprofundar, assim, especialmente para os leitores ainda não completamente familiarizados com essas duas espécies contratuais, as distinções existentes entre os contratos de transporte por via marítima e os contratos de afretamento, examinando mais detidamente as diferentes obrigações advindas de cada um deles e os respectivos regimes de responsabilidade.
O Contrato de Transporte Marítimo
O contrato de transporte foi por muito tempo regulado parcialmente pelo Código Comercial, de 1850, por uma sequência de 20 artigos. Diversas leis especiais também se debruçaram sobre o tema, visando regular aspectos específicos do transporte por via marítima, como ocorreu em relação ao Decreto-Lei n° 116, de 25 de janeiro de 1967.
Com a promulgação do Código Civil de 2002 (“CC”), entretanto, houve maior unificação das regras gerais sobre a matéria. O artigo 730 do Código Civil, mais especificamente, estabelece que “pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas." Desse dispositivo, extraem-se dois elementos essenciais do contrato de transporte, quais sejam, a onerosidade e o transporte em si.
Pode-se dizer mais. O deslocamento, tanto da pessoa quanto da coisa, é o objeto principal do contrato, sendo da sua essência o transporte seguro e eficaz. Diante desta perspectiva, o contrato de transporte é geralmente interpretado como uma obrigação de resultado (e não de meio), que se inicia com o recebimento da mercadoria pelo transportador e finaliza-se com a sua entrega, no tempo e modo contratados, ao destinatário.
Com efeito, Marco Aurélio Bezerra de Melo leciona que “a obrigação do transportador é de resultado ou de fim, apenas ocorrendo o adimplemento por parte do transportador se a pessoa ou mercadoria transportada chegar ao seu destino segura, incólume, conforme roteiro de partida e chegada previamente estabelecido”.2 Gustavo Tepedino corrobora esse entendimento e acrescenta, ainda, a presença comum do destinatário ou consignatário da carga, que é a pessoa designada para receber a mercadoria, podendo ser o remetente em si ou uma terceira parte.3 Quando se trata de um terceiro, mesmo não sendo parte direta do contrato de transporte, o destinatário detém direitos perante o transportador e, eventualmente, estará também sujeito a obrigações.
Resumidamente, diante da disciplina do Código Civil, o transporte de mercadorias é um acordo no qual o transportador se compromete, diante do remetente ou expedidor, a transportar o item disponibilizado nas condições acordadas e entregá-lo ao destinatário mediante o pagamento de uma remuneração. O objeto transportado, vale dizer, geralmente consistirá em um bem específico, certo e determinado em termos de valor, peso ou quantidade.
A primeira etapa do contrato de transporte de mercadorias começa com a entrega dos produtos ao transportador. Conforme previsto no artigo 750 do CC, a partir desse momento, o transportador assume a responsabilidade pela guarda das mercadorias recebidas, que devem ser identificadas corretamente. O artigo 744 do Código Civil permite que o transportador emita o documento chamado conhecimento de transporte, também conhecido como conhecimento de carga, nessa mesma ocasião. Esse documento é emitido pelo transportador com o objetivo principal de garantir que a empresa transportadora recebeu a mercadoria e que ela tem a obrigação de entregar a mercadoria ao destino indicado.
Mais do que isso, segundo a doutrina, o conhecimento de transporte serve como título para a entrega da mercadoria pelo portador legítimo. Por ser consensual, o contrato de transporte não exige uma forma específica para ser válido. Portanto, como previsto pelo artigo 744 do Código Civil, a ausência do conhecimento não significa necessariamente que o contrato é nulo.
Ainda segundo a doutrina4, o conhecimento de transporte assume a natureza de título de crédito impróprio, por ser meio pelo qual a obrigação de entrega da mercadoria pode ser exigida, apresentando características principais desse instituto, como literalidade, autonomia e cartularidade. De fato, o conhecimento de transporte circula por meio de endosso, a menos que seja emitido não à ordem, hipótese em que é necessário realizar uma cessão para sua circulação5.
Sobre a natureza jurídica do contrato de transporte, uma parte da doutrina acorda em defini-lo como sendo bilateral, oneroso e consensual.6 Alguns autores, todavia, preferem classificar tais contratos como comutativos e impessoais, já que o foco estaria no resultado, não na identidade pessoal do contratante.7 Por isso mesmo, a sub-rogação é uma prática comum, exatamente porque o cerne do contrato de transporte não residiria na pessoa do contratante, mas sim no transporte em si.
O transporte marítimo de mercadorias é um campo jurídico complexo, especialmente no que tange à responsabilidade civil dos transportadores. O cumprimento do contrato de transporte pressupõe a entrega da carga nas mesmas condições em que foi recebida. A não realização desse resultado, a depender das circunstâncias do caso, pode implicar na não conclusão do contrato e desencadeia a responsabilidade civil do transportador, mas o assunto é repleto de nuances e controvérsias a depender das circunstâncias do caso concreto.
O tema já foi abordado nesta coluna em mais de uma oportunidade, sendo controvertida a natureza da responsabilidade do transportador de cargas, mais especificamente se dependeria ou não da prova de culpa. De modo geral, excetuando-se o regime consumerista em que a responsabilidade é de natureza objetiva, cabendo excludentes expressamente previstas na legislação, a jurisprudência tem adotado o entendimento de que a culpa do transportador é presumida em casos de inadimplemento contratual, cabendo ao transportador comprovar a existência de algum elemento que afaste a sua responsabilidade. Há julgados também que adotam a responsabilidade objetiva do transportador mesmo quando não se está diante de uma relação e consumo, embora existam diversos elementos para se questionar os fundamentos jurídicos desse entendimento.8
Com efeito, a obrigação do transportador tem seu ponto de partida exato no instante em que a carga é confiada para transporte. Nesse momento crucial, estabelece-se uma conexão jurídica entre o transportador e a carga, impondo-lhe o ônus de assegurar sua integridade e entrega conforme as estipulações contratuais. A responsabilidade do transportador persiste durante todo o trajeto, salvo estipulação em sentido contrário, findando apenas com a entrega da carga no local e à parte previamente convencionados.
Neste contexto, a cláusula de incolumidade emerge como um componente crítico, delineando o dever do transportador de garantir a segurança e a preservação da carga durante todo o processo de transporte. Esta obrigação desencadeia uma série de responsabilidades, tendo como objetivo primordial o cuidado meticuloso, englobando desde a guarda até a efetiva entrega dos bens ao destinatário de direito.
Isso não significa, porém, que o transportador sempre responderá por danos ocorridos com a carga, cabendo prova em sentido contrário, ou seja, de que os danos ocorreram por causas que não se inserem no âmbito da responsabilidade do transportador ou rompem (vício de origem da carga, caso fortuito ou força maior, desde que não alocados ao próprio transportador, de acordo com o contrato ou com a interpretação da natureza da relação contratual). As circunstâncias do caso concreto e do contrato em específico serão, assim, decisivas para a caracterização da responsabilidade do transportador.
O contrato de afretamento
Já o contrato de afretamento não se confunde com o contrato de transporte. Ao contrário deste último, o contrato de afretamento, instrumento fundamental para a indústria marítima, estabelece as bases para a disponibilização e operação de embarcações ou serviços de embarcação por parte de um fretador ao afretador. Resumidamente, esse contrato prevê as condições sob as quais o fretador compromete-se a ceder seu navio ou os serviços da embarcação ao afretador durante um período predeterminado ou uma viagem determinada, não se confundindo, assim, com o contato de transporte mencionado anteriormente.
A previsão legal das modalidades de contrato de afretamento consta da Lei n° 9.432/97. Um dos tipos mais comuns de contrato de afretamento é o chamado "Afretamento por Tempo" (Time Charter), no qual o afretador disponibiliza ao fretador uma ou mais embarcações -- “armada e tripulada”, nos termos do art. 2º, daquela lei -- por um intervalo de tempo específico. Durante esse período, o afretador assume o controle operacional (gestão comercial) da embarcação, o que geralmente inclui responsabilidades pelos seus custos operacionais. Em outras palavras, "neste contrato, enquanto é o afretador quem define a programação comercial que o navio irá cumprir, a armação do navio continuará sendo providenciada pelo fretador.”9
No âmbito do Time charter, a principal incumbência do fretador consiste em disponibilizar (i) uma embarcação específica; (ii) devidamente equipada e; (iii) em condições de navegar, para o afretador. Cabe ao afretador, por outro lado, receber a embarcação e utilizá-la conforme os parâmetros definidos no contrato, abrangendo também as limitações temporais.
Caso o fretador não cumpra com a entrega da embarcação na data acordada, o afretador possuirá o direito de rescindir o contrato ou solicitar redução do frete referente aos dias nos quais a embarcação não esteve disponível. Essas cláusulas contratuais visam assegurar a pronta disponibilidade da embarcação para o afretador, promovendo assim a eficácia e transparência na relação contratual entre as partes envolvidas.10
Outra modalidade comum do contrato de afretamento é o "Afretamento por Viagem" (Voyage Charter), no qual o fretador disponibiliza ao afretador uma ou mais embarcações, com tripulação, para uma viagem específica ou para transportar uma quantidade determinada de carga de um ponto a outro. O conceito é similar ao afretamento por tempo, mas como “a duração deste tipo de contrato é de somente uma ou algumas viagens específicas, a gestão comercial do navio é transferida ao afretador apenas parcialmente, e por isso, o exercício dos poderes comerciais pelo afretador são limitados, quando comparados a um afretamento por período.”11
Ainda que a o art. 2º, da Lei 9.432, anteriormente mencionado, inclua nesse afretamento o conceito de transporte, o cerne do contrato continua sendo a disponibilização da embarcação em si, e não a obrigação de transportar uma mercadoria ou carga de um ponto a outro. O objeto do contrato de afretamento por viagem, assim, não se confunde com o objeto do contrato de transporte.
Já o Afretamento a Casco Nu (Bareboat Charter) representa uma terceira categoria, na qual o navio é disponibilizado pelo fretador ao afretador sem tripulação, e o afretador assume responsabilidades mais amplas, incluindo a gestão náutica, operacional e os custos associados. A principal obrigação decorrente do Bareboat Charter é a transferência da posse de uma embarcação navegável ao afretador pelo fretador, ou por seu representante, no local e no momento previamente acordados. De acordo com a doutrina12, a falta de transferência da posse no tempo, forma e lugar estabelecidos concede ao afretador a opção de exigir a execução específica ou de rescindir o contrato por inadimplemento.
Uma vez que a coisa é entregue, o fretador assume a responsabilidade de garantir ao afretador o uso pacífico da embarcação, observando sua destinação normal e os limites estipulados na carta de fretamento. Essa garantia visa assegurar a utilização adequada da embarcação pelo afretador dentro dos parâmetros contratualmente estabelecidos.
Vale acrescentar ainda que nos contratos de afretamento por tempo e a caso nu são comuns a estipulação dos chamados "trading limits", estabelecendo limites geográficos para proteger a embarcação de rotas desconhecidas ou arriscadas. Esses limites são fundamentais para preservar a segurança e adequação da embarcação, garantindo o cumprimento das condições contratuais13. A título de exemplo, é comum que no contrato de afretamento por tempo a embarcação possa operar em qualquer porto, enquanto no afretamento por viagem haja restrição das áreas em que a embarcação possa navegar. O estado de navegabilidade da embarcação, por sua vez, também pode ser objeto de negociação, permitindo que as partes acordem que a embarcação não esteja completamente apta, implicando um abatimento no preço do contrato.
Ao estabelecer claramente os termos e condições em que as embarcações serão disponibilizadas e operadas, o contrato de afretamento proporciona uma base sólida para a cooperação entre fretador e afretador, permitindo o desenvolvimento de operações marítimas em diferentes contextos comerciais. Os contratos de afretamento, assim como os de transporte anteriormente mencionados, cada um cumprimento uma função específica e distinta, são essenciais para a eficiência e funcionamento da indústria marítima.
Como se nota, no Contrato de Afretamento, a obrigação central do fretador consiste em fornecer uma embarcação no tempo, local e forma devidos ao afretador. Não há obrigação de entregar carga em segurança, como se verifica do contrato de transporte, anteriormente mencionado.
Conclusão
Em síntese, ao se examinar os contratos de transporte marítimo de mercadorias e o afretamento no âmbito do direito marítimo, torna-se evidente que ambas as modalidades desempenham papéis cruciais, mas também essencialmente distintos, no comércio internacional. O contrato de transporte marítimo de mercadorias estabelece relação jurídica entre o armador e o proprietário da carga em que o cerne da obrigação é a entrega do objeto transportado nas condições que lhe foram entregues. Já o contrato de afretamento, o objeto da obrigação é distinto, qual seja, a disponibilização do navio para uso exclusivo ou parcial por um período determinado ou em determinada viagem pelo afretador.
Juridicamente, como se verifica, as diferenças entre esses contratos são substanciais. Essas distinções refletem-se também na natureza das obrigações e riscos assumidos por ambas as partes. No transporte marítimo de mercadorias, o transportador assume uma responsabilidade mais abrangente pelos danos ou perdas durante o transporte, cabendo, todavia, a aplicação de excludentes e limitações de responsabilidade, conforme as circunstâncias do caso. Já no contrato de afretamento, o fretador responde pela entrega do navio nas condições estabelecidas e acordadas em contrato firmado pelas partes.
A compreensão dessas nuances jurídicas é essencial para assegurar a utilização eficaz desses contratos e a proteção adequada dos interesses das partes envolvidas no complexo cenário do transporte marítimo. Essa análise ressalta a importância de uma abordagem jurídica refinada e adaptável diante das distintas características e desafios apresentados por cada modalidade contratual, destacando a necessidade de uma constante atualização e harmonização das normativas legais para lidar com a evolução dinâmica do setor marítimo.
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1 Nações Unidas Brasil. Disponível em: Transporte marítimo é responsável por 80% do comércio mundial | As Nações Unidas no Brasil
2 Marco Aurélio Bezerra de Melo, Direito Civil: Contratos, 2ª edição, Forense, São Paulo, 2018.
3 "O transporte de pessoas consiste em contrato pelo qual o transportador se obriga a transportar, com segurança, pessoas e suas bagagens, de um lugar para o outro, mediante remuneração." (Gustavo Tepedino, Fundamentos do Direito Civil, Volume 3, fl. 428, 3ª edição, Forense, São Paulo, 2022.).
4 “Pode o conhecimento de transporte ser utilizado como espécie de título de crédito impróprio, podendo ser negociado. Isso porque, como títulos representativos da mercadoria, admitem a sua plena disponibilidade. Lembre-se, contudo, que essa constatação apoia-se no fato de assim ser previsto no Dec. 19.473/1930 (cuja revogação pelo Dec. s/n de 25/04/1991 é desconsiderada ou rejeitada por doutrina e jurisprudência. Fundamenta a crítica, o fato de que a matéria não se encontra disciplinada por outra norma e, sobretudo, que dada a hierarquia de lei daquela norma frente à Constituição Federal de 1891, ocorreria impossibilidade de sua revogação por decreto". (Contratos de transporte, Bruno Miragem, 2014).
5 “O conhecimento consiste em título de crédito impróprio, pois, apesar de não incorporar uma operação de crédito propriamente dita, é o instrumento pelo qual se exige a prestação, gozando das principais caraterísticasdaquele instituto, como a literalidade, a autonomia, a cartularidade, circulando mediante endosso, salvo se emitido não a ordem, caso em que deve haver cessão para sua circulação. Uma vez emitido o conhecimento, a entrega das mercadorias condiciona- -se à transferência ao transportador do respectivo título. Não deve, portanto, o transportador entregá-las ao destinatário indicado pelo remetente, mas ao legítimo possuidor do título, verdadeiro titular dos direitos e obrigações de correntes do contrato de transporte (CC, art. 754).” (Gustavo Tepedino. Fundamentos do Direito Civil, Vol. 3,).
6 Arnold Wald, Bruno Miragem, Marco Aurélio Bezerra de Melo
7 Gustavo Tepedino, Marco Aurélio Bezerra de Melo
8 Confira aqui.
9 Disponível aqui.
10 Mariana C. N. da Gama. O Regime Jurídico do Contrato de Transporte Marítimo de Mercadorias. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2005.
11 Disponível aqui.
12 Artur R. Carbone e Luís Felipe Galante. O afretamento a casco nu de embarcações. Revista de Direito Privado, São Paulo, RT, n. 8, p. 16, out./dez. 2001.
13 Mariana C. N. da Gama. O Regime Jurídico do Contrato de Transporte Marítimo de Mercadorias. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2005.