Em 15/01/2024 foi sancionado o Projeto de Lei 757/2022. Sob o pretexto de "regulamentar e conferir segurança jurídica e estabilidade regulatória aos preços dos serviços de praticagem", o PL 757/2022, na verdade, solidifica o monopólio dos serviços de praticagem no Brasil e torna ainda mais distante uma regulação econômica efetiva e eficiente dos preços.
Não é de agora que a necessidade de regulação dos preços de praticagem está em discussão no Brasil.
Em comparação internacional, o Brasil apresenta o maior custo de praticagem do mundo, conforme já apontou um estudo realizado pelo Centro de Estudos em Gestão Naval da Escola Politécnica da USP (2008). Rio Grande, Santos, Itajaí, Paranaguá, Rio de Janeiro e São Francisco do Sul estão no topo da lista dos 10 portos com o mais caro preço de praticagem por hora de manobra no cenário mundial. Este custo impacta diretamente no preço do frete, que impacta diretamente no preço das operações logísticas do país, que impacta diretamente no preço dos produtos ao consumidor final. Ou seja, quem paga a conta da praticagem somos nós.
Em 2012, o Governo Dilma editou o Decreto 7.860/2012 e criou a Comissão Nacional para Assuntos de Praticagem (CNAP), com objetivo de propor metodologia de regulação econômica da praticagem e estabelecer os preços máximos do serviço em cada zona de praticagem. A proposta de metodologia contou com participação acadêmica de alto gabarito, como a UFRGS, e as tabelas de preços máximo chegaram a trazer uma redução de mais de 50% nos valores então praticados.
Mas a implementação de tais medidas não foi para frente, pois as entidades representativas dos práticos levaram a discussão ao Judiciário e consolidaram jurisprudência no sentido de que a intervenção estatal nos preços de praticagem só seria possível diante de ameaça à permanente disponibilidade dos serviços (REsp 1.662.196-RJ). Ocorre que essa ameaça à permanente disponibilidade dos serviços não existe verdadeiramente. Como a praticagem é obrigatória e deve estar permanentemente disponível (art. 14 da Lei 9.537/1997) e como o prático não pode recursar-se a prestar o serviço sob pena de suspensão ou cancelamento de sua habilitação (art. 15 da Lei 9.537/1997), nunca há ameaça ou efetiva paralisação. A jurisprudência se consolidou de forma desconexa com a realidade. Como resultado, também não houve espaço para a regulação econômica pela CNAP. Em 2019, com o início do Governo Bolsonaro, o Decreto de criação da CNAP foi extinto.
Em 2018, o TCU iniciou uma auditoria técnica (TC 042.971/2018-7), concluindo que “o serviço de praticagem é exercido em situação de monopólio, sem regulação econômica e sem transparência nos preços”. Durante a tramitação do processo, a totalidade das entidades ouvidas (como o Ministério da Infraestrutura, o Cade e a Antaq) manifestou-se favoravelmente à necessidade de regulação econômica da praticagem. O corpo técnico do TCU recomendou que fosse apresentada proposta de alteração legislativa com o objetivo de regular economicamente os serviços de praticagem, além de que o Cade fosse cientificado sobre a existência de concorrência imperfeita e possível infração à ordem econômica. Às vésperas do recesso de 2022/2023, o processo foi julgado pelo Plenário do TCU, que não acolheu as recomendações feitas no âmbito da auditoria, e o processo foi encerrado.
O PL 757/2022 relâmpago
Neste meio tempo, diversos projetos de lei trataram do tema da regulação econômica dos serviços de praticagem, sem, contudo, contarem com forças políticas capazes de fazê-los andar. Foi então que, em novembro de 2023, em meio a pautas importantíssimas como a Reforma Tributária e mais uma vez na véspera do recesso, o Congresso determinou que o PL757/2022 tramitasse em regime de urgência (regime reservado a matérias de relevante e inadiável interesse nacional), e o texto final apresentado pelo Dep. Coronel Meira (PL/PE) foi aprovado sem modificações em sessão extraordinária. Em menos de um mês, o mesmo texto foi aprovado no Senado e encaminhado à sanção presidencial. Ontem, 15/01/2024, o PL 757/2022 foi aprovado na íntegra e sem vetos.
A rapidez com que o PL 757/2022 tramitou destoa da média de tramitação das matérias legislativas no Congresso Nacional e espanta. Para além da tramitação acelerada, espanta especialmente o conteúdo que foi aprovado.
Antes de aprofundar este ponto, trago uma breve explicação sobre um dos porquês de o preço do serviço de praticagem ser tão elevado no país.
Por que o serviço de praticagem no Brasil está dentre os mais caros do mundo?
Embora não seja regulada economicamente, a praticagem se submete a importante regulação técnica. No escopo dessa regulação técnica, a Autoridade Marítima (Diretoria de Portos e Costas – “DPC”) instituiu a “Escala de Rodízio Única de Serviço do Prático”, comumente chamada de Rodízio, segundo a qual o atendimento dos navios que operam nos portos e terminais brasileiros deve ser realizado alternativamente por cada prático, a fim de que todos os práticos de uma mesma zona de praticagem atendam os navios de forma equitativa.
O Rodízio tem dois efeitos diretos sobre os preços de praticagem: (i) primeiro, os tomadores dos serviços não podem escolher o prático que atenderá seus navios (o que limita eventual poder de barganha nas negociações comerciais); e (ii) segundo, os práticos individualmente acabam por ter uma demanda uniforme, ou muito próxima, dos serviços que prestam (o que lhes retira qualquer incentivo para negociar preços mais atrativos em contrapartida a uma maior demanda).
Nesse cenário, o Rodízio termina funcionando como mecanismo de cartelização, pois serve para assegurar não apenas que todos os práticos atuantes em um mesmo mercado geográfico tenham fatias idênticas (ou muito próximas) de demanda, mas também para que eles possam coordenar seus preços e maximizar seus lucros. Trata-se, a rigor, de conduta que caracteriza infração à ordem econômica (art. 36, I e III, da Lei 12.529/2011).
Não há dúvidas sobre o importante papel da Autoridade Marítima (exercido pela DPC e por seus agentes delegados) na regulação da praticagem e no estabelecimento de institutos voltados à garantia da segurança e continuidade do serviço, como é o caso do Rodízio. O que parece discutível é a aplicação do Rodízio de forma a eliminar totalmente a concorrência entre os práticos, permitindo-lhes que se coordenem para extrair o máximo de renda dos usuários de seus serviços.
Na quase totalidade dos outros países em que há o rodízio obrigatório, há também uma regulação econômica eficiente (Cade, processo 08012.006144/99-19).
O PL 757/2022 é dos práticos (e para os) práticos
Voltando ao PL 757/2022: até então, o Rodízio era matéria regulatória prevista nas normas da Autoridade Marítima (item 2.26 da Normam 12 ou 311). Mas o PL 757/2022 elevou o Rodízio ao status de legislação federal: a distribuição equitativa dos serviços, que impede a livre concorrência, agora é lei (art. 13. §5º, da Lei 9.537/199). Há evidente inconstitucionalidade neste dispositivo, por contrariar os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência (art. 170, IV, da Constituição Federal).
Se, como o próprio PL traz, o serviço de praticagem possui natureza privada, então ele deve ser submetido aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, e qualquer norma que contrarie tais princípios deveria ser reprimida.
De outro lado, diante do interesse público envolvido no serviço de praticagem, violam-se também os princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública (art. 37 da Constituição Federal) porque implementar o Rodízio por meio de um mecanismo de rígida alocação de cotas de mercado envolve um desvio de finalidade.
Para o atingimento das finalidades do Rodízio (garantia da disponibilidade ininterrupta do serviço, prevenção da fadiga do prático e manutenção da habilitação), não é inimamente necessário que exista uma distribuição uniforme ou equitativa da demanda pelo serviço de praticagem. Bastaria que, por exemplo, fossem estabelecidas quantidades mínimas e máximas de manobras a serem realizadas pelos práticos (a fim de, no primeiro caso, manter a habilitação e, no segundo, evitar a fadiga) e que fosse estabelecida uma escala obrigatória para os períodos em que a demanda ou a oferta tendem a ser mais reduzidas, como nas festas de final de ano. Seja como for, é evidente que não é necessário eliminar completamente a concorrência entre os práticos para que os objetivos do Rodízio sejam atingidos.
Quanto à regulação econômica, o PL 757/2022 piorou o cenário legislativo que já existia. As inclusões feitas à Lei 9.537/1997 revestem-se de um viés indevido de preservação do status quo dos práticos. Primeiro, o PL 757/2022 fortaleceu a condicionante de que a Autoridade Marítima somente poderá fixar preços para assegurar a ininterruptabilidade do serviço (art. 14, parágrafo único, da Lei 9.537/1997) – hipótese que, como vimos, não acontece na prática. Segundo, o PL 757/2022 concedeu caráter excepcional e temporário à fixação de preços pela Autoridade Marítima, privilegiando a livre negociação (art. 15-A, §3º, da Lei 9.537/1997) – hipótese que, como vimos, também não acontece na prática. Ao fim e ao cabo, a livre negociação dá-se entre práticos que exercem sua atividade em regime de monopólio e usuários dos serviços que dela dependem de forma obrigatória e sem possibilidade de escolha do prestador. Por último, o PL 757/2022 ainda abre a possibilidade de a fixação de preços pela Autoridade Marítima observar a atualização monetária anual dos preços costumeiramente praticados (art. 15-A, §6º, da Lei 9.537/1997) – isto é, a fixação de preços pela Autoridade Marítima, de acordo com o PL 757/2022, não necessita seguir critérios técnicos qualificados; basta que atualize os preços que, costumeiramente, já são impostos pelos práticos aos usuários dos serviços.
Em resumo, de acordo com o PL 757/2022, a regulação econômica (i) deverá privilegiar a livre negociação entre as partes (sendo que negociação entre as partes não é livre) e (ii) somente acontecerá de forma excepcional e provisória, limitada a 24 meses (sendo que poderá limitar-se meramente à correção monetária aos preços já existentes).
Outro ponto que chama atenção no PL 757/2022 é que a fixação está condicionada à hipótese antes tratada de garantia da ininterruptabilidade dos serviços, ou “quando comprovado o abuso de poder econômico ou a defasagem dos valores do serviço de praticagem”. Além de esses requisitos estarem relacionados a um julgamento subjetivo (o PL não traz critérios objetivos para aferi-los), o abuso de poder econômico vem sendo exercido há décadas e décadas pela praticagem (é costume de difícil descaracterização, senão por uma regulação econômica séria e qualificada), e os preços dos serviços não gozam de transparência. Portanto, as outras condicionantes para a intervenção estatal nos preços de praticagem também se mostram de difícil prova para os usuários.
Quem é a favor do PL 757/2022?
Todas as entidades envolvidas no serviço de praticagem, exceto os próprios práticos, são firmes quanto à necessidade de regulação econômica: a DPC, a Antaq, o então Ministério da Infraestrutura, o Cade, a auditoria do TCU. A OCDE não só é favorável à regulação econômica, como também aponta para o fim do rodízio obrigatório no Relatório de Avaliação Concorrencial do Brasil. Por que a opinião desses órgãos não prevalece? A quem interessa a manutenção do status quo da praticagem?
Vale salientar que a Autoridade Marítima, bastante participativa no processo legislativo do PL 757/2022, manifestou-se publicamente no sentido de que o PL 757/2022 é contrário aos interesses públicos e ameaça a segurança da navegação, efeito oposto á legislação atual”. A Marinha do Brasil ainda defende a necessidade de separação da regulação técnica e da regulação econômica dos serviços de praticagem, sugerindo que esta última seja exercida por outra entidade, já que ela não disporia de estrutura para tal exercício. Sabendo-se que a DPC não dispõe de estrutura para exercer a regulação econômica, a possibilidade de intervenção estatal para a mera atualização dos preços praticados parece um artificioso mecanismo de manutenção do status quo dos práticos. E é salutar perceber-se que, se os usuários acionam a autoridade marítima para a fixação de preços, é porque aqueles previstos no contrato, com as devidas correções monetárias anuais, já não se mostram adequados e deveriam ser revistos criteriosamente.
O PL 757/2022 abre a possibilidade de a Autoridade Marítima formar e presidir comissão temporária, paritária e de natureza consultiva com a participação da Antaq (e a participação do tomador dos serviços e da praticagem). A participação da Antaq poderia ser positiva se o texto do PL 757/2022 permitisse uma efetiva fixação de preços. Então, embora a Antaq tenha sido “trazida” à questão pelo PL 757/2022, não parece que uma efetiva intervenção do Estado nos preços de praticagem acontecerá, nem uma mudança no paradigma dos preços atuais. Além disso, o parecer da Antaq está expressamente taxado de consultivo, o que não lhe traz força vinculante.
E agora?
Caberá aos usuários dos serviços de praticagem uma atuação mais próxima da Autoridade Marítima com o objetivo de colaborar na fixação adequada dos preços de praticagem – se isso for possível dentro de todas as restrições trazidas pelo PL 757/2022 – e exigir interpretação do PL 7572022 em respeito aos princípios e fundamentos da ordem econômica, cuja previsão está plasmada no art. 170 da Constituição Federal. É um enorme desafio.
Penso que fracassamos, enquanto país, na efetiva e eficiente regulação do serviço de praticagem e em tantas outras instâncias que essa falta de regulação afeta: como no comércio marítimo nacional e internacional, na expansão das operações logísticas do Brasil e na competitividade do setor.
E se hoje os preços de praticagem já são considerados os mais caros do mundo, o PL 757/2022 veio para mostrar que poderão ser ainda piores. Ganham os 600 práticos do Brasil e perdem os 214 milhões de brasileiros e brasileiras.