4 – A Prova da Culpa e o Peso das Decisões do Tribunal Marítimo
Outro ponto que se destacou na análise dos julgados sobre abalroação foi a questão probatória. De um modo geral, o Poder Judiciário se ateve ao elenco clássico do Código de Processo Civil (CPC): prova testemunhal, documental ou pericial.
Neste tema, todavia, é essencial ter em conta o que consta da lei 2.180/54, que instituiu o Tribunal Marítimo (TM), especialmente os seguintes dispositivos:
Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.
Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva.
O tema já foi extensamente tratado nesta Coluna, tanto em textos deste autor como de outros que aqui escreveram, aos quais remetemos o leitor.
Na jurisprudência, porém, não se tem uma posição unânime, e nem mesmo clara, na maioria das vezes, sobre o valor das decisões do TM nos processos judiciais. O julgado a seguir, do TJAM, parece ter aplicado corretamente o o art. 18 da Lei 2.180/54, conforme parte da ementa que interessa a esse subtema:
“EMENTA I: APELAÇÃO CÍVEL – DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA PARCIAL – QUESTÃO QUE SE CONFUNDE COM O MÉRITO – INEXISTÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL – SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU FAVORÁVEL NESTE QUESITO – NÃO CONHECIMENTO – DANOS MATERIAIS – ABALROAMENTO DE EMBARCAÇÕES – TRIBUNAL MARÍTIMO – ÓRGÃO AUXILIAR DO JUDICIÁRIO – ARTS. 1º E 18, L. 2.180/54 – DECISÃO QUE GOZA DE PRESUNÇÃO RELATIVA – SINISTRO QUE SE DEU POR CULPA DE PREPOSTO DAS APELANTES – INEXISTÊNCIA DE PROVAS EM SENTIDO CONTRÁRIO.”1
No corpo do voto do Relator, destaca-se a seguinte passagem:
“Com efeito, nos termos do art. 1º da Lei 2.180/54, o Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, é órgão administrativo autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, vinculado ao Comando da Marinha, tendo como atribuições o julgamento dos acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre e as questões relacionadas com tal atividade, especificadas em lei.
Já o art. 18 do mencionado diploma legal estabelece que as decisões do Tribunal Marítimo, quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação, tem valor probatório e se presumem certas, sendo, porém, suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.”
O mesmo se observa em outro julgado daquela mesma Corte:
“Não tendo o Apelante produzido ou requerido prova pericial, ou de outra natureza, apta a infirmar as conclusões traçadas no inquérito administrativo produzido pela Capitania dos Portos (fls. 16/46) assim como a sentença do Tribunal Marítimo no processo administrativo n. 23.443/2008 (fls. 209/213), ressai acertado o reconhecimento do dever de indenizar pelos danos derivados do acidente fluvial.”2 (transcrição parcial da ementa)
O mesmo prestígio à decisão do TM sobressai da seguinte ementa de acórdão do TJRJ (transcrição parcial):
“Acórdão unânime do Tribunal Marítimo, concluindo que o acidente foi causado por imprudência do comandante do ferryboat.
Acórdão precedido de minucioso inquérito instaurado pela Capitania dos Portos da Bahia e de Laudo de Exame Pericial Indireto.
Nos termos do art. 18 da Lei nº 2.180/54, “As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.””3
Do mesmo Tribunal (TJRJ) é o acórdão do qual se colhe o seguinte excerto:
“Muito embora suscetíveis de revisão pelo Poder Judiciário, as decisões proferidas pelo Tribunal Marítimo têm força probatória e tem presunção de acerto, nos termos do disposto na Lei 2.180/54, com a redação dada pela Lei 9.578/97. E é nesta prova técnica, oriunda do Tribunal Marítimo, que a decisão deve ser baseada, não só por se tratar o Tribunal Marítimo de órgão autônomo e auxiliar do Poder Judiciário, que analisou a questão de forma cuidadosa e exaustiva, mas também porque – como esclarecido acima – a Apelante, instada a se manifestar sobre as provas que pretendia produzir, nada fez. E o Tribunal Marítimo concluiu pela responsabilidade do condutor da embarcação de propriedade da Apelante no abalroamento de que tratam os presentes autos.”4
Por fim, reporte-se decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJSC), cuja ementa, apesar de excessivamente sintética, permite vislumbrar o prestígio da decisão do TM, como prova técnica que goza de presunção relativa de certeza:
“RESPONSABILIDADE CIVIL. ABALROAMENTO ENTRE EMBARCAÇÕES. AFUNDAMENTO DE UMA EMBARCAÇÃO. PEDIDO VISANDO INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E LUCROS CESSANTES. (...) ACIDENTE ENVOLVENDO EMBARCAÇÕES. CAUSA DO ACIDENTE. DEPOIMENTOS CONFLITANTES DURANTE A INSTRUÇÃO. DECISÃO BASEADA NA CONCLUSÃO DO TRIBUNAL MARÍTIMO, QUE ENTENDEU QUE O SINISTRO OCORREU DEVIDO À IMPRUDÊNCIA DO AUTOR. POSSIBILIDADE.”5
Apesar disso, foram encontradas também decisões, concernentes a casos de abalroação, em que não há qualquer referência a decisão do TM. Não se sabe se isso ocorreu em razão de não ter sido instaurado o inquérito correspondente (o que parece pouco provável), ou se, simplesmente, as partes e o Juízo ignoraram aquela instância administrativa, que tem a maior importância.
Mais criticáveis, todavia, são os casos em que o Judiciário simplesmente negou, velada ou indiretamente, a presunção de certeza contida no art. 18 da lei 2.180/54. Veja-se, como exemplo, o seguinte julgado do TJ/RJ, que invoca – equivocadamente, na nossa opinião – o art. 13 da Lei, além de uma despropositada analogia com o Código de Processo Penal:
Incide no mesmo equívoco, a meu juízo, o extenso acórdão proferido pelo mesmo Tribunal (TJRJ), em embargos infringentes, ao apresentar uma visão reducionista do papel do TM, segundo a qual suas funções seriam meramente punitivas (art. 13 da Lei 2.180/54), e não de produção de prova (art. 18 da mesma Lei). O mais curioso, neste julgado, é que o Relator extrai tal entendimento do próprio art. 18, tendo como “desinfluente” a decisão administrativa:
“As provas dos autos conduzem à manutenção do voto-vencido, porque foram produzidas duas perícias técnicas em juízo e ambas convergiram pela culpa exclusiva do comando do navio da embargada “NorSul Tubarão” pelo abalroamento ocorrido, sendo desinfluente aqui a conclusão atingida na esfera administrativa do Tribunal Marítimo a esse respeito, conforme o preceito do art. 18 da Lei que o rege (Lei nº 2.180/1954):”7
Vale dizer: o voto prevalecente fez verdadeira “leitura invertida” do art. 18 da Lei do TM, pois extrai, da ressalva contida em sua parte final, uma “presunção de incerteza” da prova administrativa, bastando a mera existência de uma prova judicial – qualquer prova – para desconstituir a validade da decisão do Colegiado Marítimo. Mais equivocada ainda, com a devida vênia, é a afirmação que se segue, no mesmo acórdão:
“Como se viu do decisum administrativo acima transcrito, nem mesmo o nome das empresas de navegação é referido, o que corrobora o anteriormente afirmado de naquele âmbito o foco é para as pessoas de marinha que comandavam as embarcações ou compunham as respectivas tripulações, enquanto que o aspecto de responsabilização civil é de somenos importância.
Assim, as decisões definitivas do TRIBUNAL MARÍTIMO não têm o condão de produzir a res iudicata, posto que é um órgão para o exame de acidente e fatos de navegação, ainda que judicialiforme, mas com outra perspectiva que não a de atribuir responsabilidades outras que não sejam a de aplicar as punições aos seus “jurisdicionados”, conforme art. 17, da Lei 2.180/54.”8
Portanto, como já afirmado, afigura-se equivocada a linha jurisprudencial que vê nas decisões do Tribunal Marítimo mera função punitiva, sem qualquer grau de vinculação (nem mesmo uma presunção relativa) para o Poder Judiciário.
5 – Prescrição
A questão da prescrição da pretensão indenizatória, nas hipóteses de abalroação, é igualmente controversa.
No Código Civil de 1916, não havendo previsão expressa, as ações de reparação civil eram subsumidas à regra geral da prescrição vintenária, presente em seu art. 1779. No atual Código Civil, há dispositivo expresso, estabelecendo o prazo de 3 anos para a prescrição das pretensões de reparação civil, conforme art. 206 § 3º, IV10. Para os prazos que já estavam em curso no início da vigência do novo Código, foi estabelecida regra de transição, segundo a qual os prazos que ainda não tivessem chegado à metade (10 anos) recomeçariam a correr, por inteiro, na data da vigência do novo Código. Para os prazos que já tivessem corrido por mais que a metade, naquela data, a contagem continuaria na forma do Código anterior.
Nada obstante, como já assinalado, a Convenção de Bruxelas foi internalizada no Direito Brasileiro e, segundo seu art. 7º, a prescrição em tal situação ocorreria em 2 anos11.
Nada obstante, foram encontrados poucos julgamentos em que esteve em questão alguma discussão sobre a ocorrência de prescrição. Num antigo julgado do extinto Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul (TARS), foi afastada o prazo prescricional de 1 ano, previsto no Código Comercial, conforme acórdão assim ementado:
“REPARAÇÃO DE DANOS. ABALROAMENTO DE NAVIOS. PRESCRIÇÃO. NÃO SE TRATANDO DE AVARIA SIMPLES, MAS DE AÇÃO DE REPARAÇÃO PELO PERECIMENTO TOTAL DO NAVIO ABALROADO, QUE AFUNDOU, NÃO SE APLICA O PRAZO DE PRESCRIÇÃO ÂNUA, PREVISTO NO ART. 449, 3 DO CÓDIGO COMERCIAL. AÇÃO CIVIL.”12 (transcrição parcial)
O dispositivo do Código Comercial, referido na ementa, foi revogado pelo Código Civil, mas vigorava à época do fatos, com o seguinte teor:
Art. 449 - Prescrevem igualmente no fim de 1 (um) ano:
3 - As ações de frete e primagem, estadias e sobreestadias, e as de avaria simples, a contar do dia da entrega da carga.
Assim, entendeu o TARS, a nosso ver corretamente, que a “avaria simples” referida no dispositivo é a avaria ocorrida na relação derivada de um contrato de transporte, ou seja, de uma relação contratual comercial. No caso de abalroação, a relação é extracontratual e, portanto, civil. Cabe ressaltar que o entendimento ora manifestado não está em contradição com a posição assumida no item 1 deste trabalho, com relação à definição de “abalroação”. A ausência de relação contratual, aqui, é importante na determinação do prazo prescricional, mas continua não tendo repercussão, segundo nossa opinião, na definição jurídica do que seja a “abalroação”.
Um ponto interessante, abordado em acórdão do TJRJ, é o que diz respeito ao termo inicial da prescrição, na pendência de processo no Tribunal Marítimo, diante do disposto no art. 20 da Lei 2.180/54:
Art. 20. Não corre a prescrição contra qualquer dos interessados na apuração e nas conseqüências dos acidentes e fatos da navegação por água enquanto não houver decisão definitiva do Tribunal Marítimo.
Dando correta aplicação ao dispositivo, assim decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ)
“A decisão do Tribunal Marítimo foi proferida no dia 16/outubro/2003. A parte ora Apelante ingressou nos autos no dia 29/junho/2006, suprindo sua citação. Assim, não há que se falar em prescrição.13
6 – Matéria técnica: a “culpa” à luz do RIPEAM e a Teoria da “Last Clear Chance”
Por fim, analisou-se em que medida os julgados teriam adentrado à matéria técnica, concernente às regras de navegação, para determinar a culpabilidade.
Inicialmente, foi constatado que, na maioria dos julgados, entendeu-se, ainda que implicitamente (ou às vezes, permita-se dizer, inconscientemente), que essa matéria não era jurídica, mas eminentemente técnica e, portanto, dependente da produção de provas.
Assim, como já analisado em textos anteriores, a decisão do TM tem papel fundamental, pois é tida, por expressa determinação legal, como prova, ou seja, como concernente à matéria de fato, ao determinar a culpa pela ocorrência da abalroação. No caso das decisões que afastaram, ou mitigaram, o valor da decisão do TM, recorreu-se a outras provas, em geral à perícia produzida em juízo, para concluir sobre a culpa.
Ao adotar tal enfoque, o Poder Judiciário deixa de analisar, diretamente, as regras de navegação. Tal postura, todavia, desafia uma reflexão, que deve ser, ao menos, levantada.
O Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar (RIPEAM) foi incorporado pelo Decreto Legislativo 77, de 1974, e promulgado pelo Decreto (Presidencial) 80.068, de 02/08/1977. Constitui, portanto, norma jurídica interna e em vigor. Assim, ao menos em tese, nada impede que seja aplicada diretamente pelo Poder Judiciário, ao apreciar as questões decorrentes de abalroações.
Na verdade, na interpretação que parece mais razoável, tal caráter de norma jurídica do RIPEAM deve ser lido em conjunto com a Lei 2.180/54, ou seja, de que a aplicação e interpretação do RIPEAM, em caso de acidentes da navegação, cabe precipuamente ao TM. Este é mais um motivo pelo qual entendo equivocadas, como já dito acima, as decisões que pura e simplesmente, afastam ou relativizam a importância das decisões do TM. No entanto, não havendo processo administrativo no TM, ou afastadas suas conclusões (sendo infirmado por perícia judicial), o Magistrado pode e deve, no nosso entender, apreciar a aplicação, ao caso concreto, das regras contidas no RIPEAM.
Neste sentido, alguns dos acórdãos analisados, ainda que não fazendo a análise aqui empreendida, de fato adentraram diretamente na aplicação do RIPEAM, como se vê dos excertos abaixo transcritos:
“Após detida análise do feito e notadamente das disposições constantes do RIPEAM – Regulamento Internacional para evitar abalroamento no mar, em especial seu ANEXO III - disposições estas adotadas pelo Brasil em face do Decreto 55/78, estou, na esteira do voto do eminente Relator, provendo em parte o recurso da demandada.
(...)
Neste sentido é o mesmo RIPEAM quem apresenta as regras que estabelecem quais os sinais sonoros e de perigo (Regras 32 a 37), que nada mais constituem do que os sinais que as embarcações, nas mais variadas situações, devem utilizar para contatar, alertar ou avisar as demais embarcações acerca de suas intenções.
O Anexo III do RIPEAM, estabelece as características técnicas que o material de sinalização sonora deve possuir.”14
“APELAÇÃO CÍVEL. REPARATÓRIA A DANOS MATERIAIS (ACIDENTE MARÍTIMO), INACOLHIDA “A QUO”. APELO: AFASTAMENTO DA TESE IMPRIMIDA POR RECORRENTE AO LUME ENCONTRAR-SE A EMBARCAÇÃO “IRACEMA V” REALIZANDO A FAINA DE DESEMBARQUE NA DRAGA “RECREIO DOS BANDEIRANTES” NO MOMENTO DO SINISTRO, ENGAJADA EM OPERAÇÃO DE DRAGAGEM, AO COMANDO DO COMANDANTE DA DRAGA, SOB PROTEÇÃO DOS ARTS. 3.G – 3.G.III E 18.A DO RIPEAM (REGULAMENTO INTERNACIONAL PARA EVITAR ABALROAMENTOS NO MAR), NÃO CONHECIDO SOBRE AVENTO CONTRÁRIO, DIANTE INOVAÇÃO RECURSAL. CULPA DA RECORRENTE NO EVENTO, DIANTE EVIDENCIADO CRUZAMENTO DE SUA EMBARCAÇÃO AO CANAL DE ACESSO AO PORTO, PELA TRANSPOSIÇÃO DE VIA PREFERENCIAL – SENTENÇA MANTIDA NO ASPECTO.”15
Demonstrando, ainda, o alto grau de insegurança jurídica no tema, há interessante – para não dizer espantoso – acórdão prolatado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), no qual, a par de não constar qualquer referência a decisão do Tribunal Marítimo (o que autoriza a presumir que não existiu ou simplesmente não foi considerada), tampouco a prova pericial, o Juiz adentra diretamente na análise técnica do acidente, embora deixando de aplicar, também, o RIPEAM. Veja-se:
“O Juiz que sentenciou o feito demonstrou seu convencimento com fundamento nos seguintes postulados:
a) Havia baixa visibilidade na hora da colisão;
b) A embarcação da União não tinha radar;
c) A embarcação da União não tinha aparelho de ecobatimento;
d) A embarcação estava em sua velocidade máxima, quando deveria tê-la reduzido em face das brumas;
e) A embarcação navegava com apenas 02 tripulantes, quando o mínimo seria 03;
f) A embarcação era equipada apenas com bússola, buzina e holofote como instrumentos de segurança relativos à situação presente;
g) A embarcação não emitiu qualquer sinal sonoro mesmo navegando por vários minutos próximos às margens;
h) A embarcação não tinha vigilante para evitar colisões;
i) A tripulação não apresentava o Cartão de Tripulação de Segurança;
k) A tripulação da embarcação efetivamente não detectou, em nenhum momento, a presença do barco abalroado;
l) A embarcação estava próxima à margem e aos barcos fundeados;
m) A trajetória da embarcação era no sentido centro-margem;
n) O barco Laudson estava próximo à margem em local relativamente raso;
o) O barco Laudson não tinha tripulação habilitada;
p) O barco Laudson não acionou qualquer equipamento sonoro diante da aproximação perigosa da embarcação da União;
q) O barco Laudson não tinha vigia para situações de risco;
r) Todos os tripulantes do barco Laudson dormiam no momento da colisão;”16
Assim, salvo a existência de algum outro elemento não mencionado no acórdão – de cuja existência só se poderia saber com a consulta aos autos – parece que um processo relativo a abalroação foi decidido sem qualquer referência a decisão do Tribunal Marítimo, a prova técnica ou a regras do RIPEAM. Em suma, teria ocorrido uma decisão baseada apenas no que “achou” o Magistrado, sobre a culpabilidade dos envolvidos, a partir da dinâmica dos fatos.
Finalmente, há dois acórdãos do TJ/RJ, relativos ao mesmo processo (apelação e embargos infringentes), em que também foi abordado o RIPEAM. Quanto a estes, porém, optou-se por analisar este aspecto em conjunto com a Teoria da “Last Clear Chance”, que bem denota as peculiaridades do Direito Marítimo. É o que se passa a fazer.
Assim dispõem os itens II e III da Regra 8 do RIPEAM:
“(II) Uma embarcação que estiver obrigada a não interferir com a passagem ou a passagem em segurança de outra embarcação, não estará dispensada dessa obrigação se, ao aproximar-se da outra embarcação, houver risco de abalroamento e deverá ao manobrar, respeitar integralmente as Regras desta parte.
(III) Uma embarcação cuja passagem não deva ser impedida, continua plenamente obrigada a cumprir as Regras desta parte quando as duas embarcações se aproximam uma da outra, de modo a envolver risco de abalroamento.”
Estas regras veiculam um conceito bastante conhecido dos navegantes, mas que causa certa perplexidade para os leigos, e que poderia ser resumido da seguinte forma: no tráfego marítimo, não importa quem tem razão ou preferência; todos devem agir, com o seu máximo empenho, para evitar os acidentes.
Assim, o fato de uma embarcação ter preferência, não significa que poderá simplesmente negligenciar o perigo da situação, confiando até o último minuto que a outra embarcação manobrará para lhe dar passagem. O RIPEAM prevê procedimentos de aviso, sonoro, luminoso ou por rádio, e ainda, numa situação limite, que a embarcação faça uma manobra, ainda que tenha a preferência naquela situação.
Esta circunstância guarda relação com a Teoria da “last clear chance”, que é assim definida: “The last clear chance rule was a common law rule which was developed to ameliorate the effects of the contributory negligence bar. Under this rule the plaintiff could recover notwithstanding his own negligence if the defendant had the last clear chance to avoid the accident but failed to do so.”17
Assim, num acidente da navegação, se a embarcação com preferência teve uma última e nítida chance de evitá-lo, há que se reconhecer que terá uma parcela de culpa, ainda que menor e a ser apurada em cada caso concreto. Não cabe aqui, portanto, o raciocínio comum da responsabilidade civil, largamente empregado, por exemplo, nos acidentes de trânsito terrestre, em que o descumprimento das regras por um dos envolvidos é suficiente para atribuir-lhe integralmente a culpa. No Direito Marítimo, repita-se, um dos princípios gerais é de que todos os navegantes têm igual responsabilidade em evitar acidentes, empregando todos os meios possíveis e razoavelmente esperados no caso concreto.
Feita esta brevíssima explicação, passa-se à análise do caso específico, envolvendo a abalroação entre os navios “Norsul Tubarão” e “Global Rio”.
Segundo se depreende da leitura dos acórdãos, o “Global Rio” tinha a preferência de passagem. Todavia, a tripulação do “Norsul Tubarão” não percebeu a situação de rumos cruzados, vindo a ocorrer rápida aproximação entre as embarcações. Com isso, numa situação de risco iminente, o “Global Rio”, apesar de ter a preferência, teria tentado uma última manobra, mas, por fazê-lo tardiamente e para o bordo errado, falhou em evitar a abalroação. É o que sobressai de trecho da conclusão do IAFN, transcrito no acórdão da apelação:
“Com base nisso, e em vários elementos subsidiários, o dito tribunal administrativo chegou à conclusão de que houve grave deficiência, acerca do navio Norsul Tubarão, por ter seu piloto permitido, que o barco seguisse por quase duas milhas marítimas, na velocidade de 11 nós, sem qualquer tipo de vigilância; constando que um “oficial de quarto” se ausentou do passadiço por cerca de 10 minutos, sem convocar o vigia, permanecendo no camarim de cartas (onde é redigido o diário de bordo).
Chegou à outra conclusão, acerca do navio Global Rio, de ter seu piloto agido de forma correta, no rumo e na velocidade, buscando contato com a outra embarcação, quando a distância entre as duas era superior a três milhas. Mas teria havido falha, ao ser feita a manobra referida, quando a distância fora reduzida para meia milha. Teria seu piloto, destarte, por imperícia, também dado causa à colisão.”18
A sentença teria reconhecido a culpa exclusiva da “Norsul Tubarão”, em razão da violação às regras de preferência e à negligência da sua tripulação.
Ao julgar a apelação, a 3ª Câmara Cível do TJ/RJ, todavia, reconheceu a existência de culpas concorrentes, em maior proporção para a embarcação que desrespeitou as regras de preferência, mas – e este é o ponto relevante – sem descurar da culpa, ainda que menor, da embarcação que, mesmo tendo a preferência, teve a chance de evitar o acidente, mas não o fez. Confira-se:
“Os dois navios navegavam em rumos opostos, nos sentidos setentrional e meridional, ao longo do litoral bandeirante. Um deles, o da empresa ré e ora insurgente, desrespeitou a preferência de passagem do outro, da empresa autora e recorrida. Esta foi a causa principal da colisão. Mas o navio da empresa demandante, ao ser manobrado, o foi de modo imperito, no tempo retardado, em distância que não mais o permitia com segurança. Esta foi a causa secundária.
Houve, sim, concorrência de culpas. Mas não em igual proporção. A não ser o afirmado pelos assistentes técnicos, e autores de pareceres, ligados à proprietária do “Norsul Tubarão”, as expertises de primeiro e segundo grau, como também os fundamentos e as conclusões do Tribunal Marítimo e da Capitania dos Portos de São Paulo, convencem, a todas as luzes, que a responsabilidade, por culpa presumida, da ré e recorrente, foi mais intensa do que a responsabilidade, por semelhante culpa, da autora e apelada.”19
Assim, ainda que não fazendo referência direta ao conceito, é certo que o acórdão prestigiou o que se poderia chamar de “princípio geral” do RIPEAM, que é a responsabilidade de todos os envolvidos que tinham a chance de evitar o acidente, e que, de certo modo, equivale à doutrina da last clear chance.
Como houve um voto vencido (que, em linhas gerais, prestigiou a sentença), foram opostos embargos infringentes, julgados pela 10ª Câmara Cível. O acórdão, já criticado acima (no que tange à valoração da prova produzida pelo Tribunal Marítimo), abordou, em linhas gerais, a questão da culpa concorrente, afastando expressamente as particularidades do Direito Marítimo e aplicando, ao acidente da navegação, soluções genéricas da Teoria da Responsabilidade Civil.
Veja-se o que o voto condutor afirmou sobre a alegação da empresa proprietária do “Norsul Tubarão”:
“Por outro lado, argumentar, como faz a ora embargada NORSUL, desde a contestação (fls. 312 - 339 – vol. 2) que o navio “Global Rio”, posto em situação de perigo pela negligência de preposto na condução de seu navio “NorSul Rio”, teria a responsabilidade pelo abalroamento ocorrido porque não conseguiu safar-se a tempo de evitar o choque, é totalmente despropositado e, sem dúvida, completamente irrazoável, máxime em nosso País em que é francamente prevalente a já clássica doutrina da causalidade adequada, em detrimento da referida doutrina americana - the last clear chance -, conforme o grande mestre da responsabilidade civil – José de Aguiar Dias -, que de há muito nos ensina que prevalece entre nós a doutrina da causalidade adequada em detrimento daqueloutra que é prestigiada, mas nos Estados Unidos da América do Norte (...)”
Entendemos equivocada tal fundamentação, na medida em que não se pode tomar, simplesmente, conceitos e princípios genéricos da responsabilidade civil e aplicá-los em ramo tão específico como o Direito Marítimo. Aliás, sequer nos parece que se trate de uma contraposição entre a “Teoria da Causalidade Adequada” e a “Last Clear Chance Rule”. Na verdade, a solução seria muito mais simples: o dever de empregar todos os meios ao seu alcance, para evitar o acidente, pode ser extraído da Regra 8 do RIPEAM, acima transcrita, e que, como também já demonstrado, é direito positivo vigente no Brasil.
Neste passo, é ainda mais criticável que o acórdão tenha invocado justamente o RIPEAM, em outra passagem, para fundamentar sua conclusão, como se vê:
“Assim, penso, que a conduta do comando do n/t “Global Rio” ao continuar a sua trajetória depois de avisar por meios de sinal sonoro e rádio ao graneleiro “NorSul Tubarão” a rota de rumo cruzado foi inteiramente legítima, atendendo, inclusive ao comando da regra nº 17, (a) (I):
“Quando uma embarcação for obrigada a manobrar, a outra deverá manter seu rumo e sua velocidade.” (Sublinhei agora)
Ora, doutos Colegas, pretender, como quer a ora embargada COMPANHIA DE NAVEGAÇÃO NORSUL imputar à parte contrária (GLOBAL TRANSPORTE OCEÂNICO S/A), neste episódio, até mesmo a exclusiva responsabilidade pela abalroação ocorrida é o mesmo que dizer: -“o outro navio se houve com culpa porque foi imperito ao tentar se safar da situação de perigo criada por mim!”” (os destaques são do original, assim como a observação entre parênteses, após a citação do RIPEAM)
Levando ao limite o raciocínio subjacente a essa fundamentação, uma embarcação com preferência poderia assistir, impassível, à aproximação de outra, apenas esperando que o acidente se concretizasse, já que não teria mesmo nenhuma culpa. Trata-se de conclusão absurda, que causa perplexidade em qualquer um que tenha um mínimo de vivência na navegação.
Ora, se o Relator invoca o RIPEAM e se põe a interpretá-lo, como fundamento de sua decisão – o que, por si só, é uma atitude louvável, pelo que já defendemos acima – deveria ler o Regulamento em sua inteireza, como um sistema de normas que é. Neste contexto, a citada regra nº 17 não poderia ser lida de maneira isolada, ou descontextualizada, mas de acordo com as diretrizes da já citada Regra nº 8 (parcialmente transcrita acima), que deve informar a interpretação de todo o restante do Regulamento.
Por estas razões, enteno que o acórdão dos embargos infringentes não deu a melhor solução à lide. Segundo a situação retratada nos autos, nos parece inadequada uma solução que atribua 100% da culpa a uma das embarcações (como, aliás, seria inadequado na maioria das abalroações, em que ambas as embarcações têm, em algum momento, como evitar o acidente). A determinação do peso da culpa de cada embarcação, certamente, só poderá ser feita com profundo conhecimento do caso concreto, o que não é possível analisando-se apenas os acórdãos. Nada obstante, a solução dada na primeira decisão do TM, assim como no acórdão da apelação, que distribui a culpa na proporção de 2/3 para uma embarcação e 1/3 para outra, aparenta estar mais próxima de uma solução justa, do que a sua atribuição integral à embarcação que violou às regras de preferência.
7 – Conclusão
Pelo que foi visto brevemente neste artigo, o Judiciário brasileiro encontra-se despreparado para solucionar lides concernentes a abalroações, o que, aliás, ocorre com todas as matérias do Direito Marítimo.
Temas que não deveriam gerar maiores discussões, como o valor da decisão do TM, ainda geram preocupantes controvérsias. Isso, sem falar no puro e simples esquecimento de conjuntos normativos inteiros, como o Código Comercial, a Convenção de Bruxelas e o próprio RIPEAM.
Nas lides de origem contratual, exatamente por isso, é muito comum a existência de cláusula compromissória, de modo a submeter o conflito à arbitragem, que terá muito melhores condições técnicas de dar uma solução justa. Todavia, em tema de abalroação, é praticamente impossível a existência de cláusula compromissória, já que não existe relação contratual prévia entre as partes. Nada obstante, ainda em tais situações, parece ser muito mais recomendável que as partes celebrem um compromisso arbitral, para uma solução mais rápida e tecnicamente aparelhada, do que deixar a solução a cargo do Judiciário, já que, como se viu nos acórdãos analisados, será muito mais demorada e com pouquíssimo conhecimento específico do Direito Marítimo.
De todos os processos analisados, apenas o do TJRJ, discutido no item anterior, aprofundou o exame e as discussões sobre matérias essenciais ao deslinde de questões de abalroação, como o processo no TM e a aplicação do RIPEAM. Ainda que não tenha dado a solução que me pareceu a mais correta (e por isso criticadas acima), aquele acórdão merece encômios por ter utilizado o instrumental correto para análise dos fatos.
______________
[1] TJAM, autos nº 0248677-43.2010.8.04.0001, apelação cível, Relator Desembargador Aristóteles Lima Thury, j. em 30/04/2015.
[2] TJAM, Apelação Cível nº 0260745-59.2009.8.04.0001, Relatora Desembargadora Maria do Perpétuo Socorro Guedes Moura, j. em 28/07/2014, não destacado no original.
[3] TJRJ, apelação cível 0322085-50.2010.8.19.0001, Relator Desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, j. em 31/07/2012.
[4] TJRJ, apelação cível 0106898-98.2001.8.19.0001, Relator Desembargador Galdino Siqueira Netto, j. em 20/07/2010.
[5] TJSC, apelação cível 1999.018323-8, Relator Desembargador Jorge Schaefer Martins, j. em 04/11/2004. Fonte: VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite, op. cit., p. 27.
[6] TJRJ, apelação cível 15144/99, Relator Desembargador Antônio Lindberg Montenegro, j. em 29/02/2000.
[7] TJRJ, embargos infringentes 0169888-62.2000.8.19.0001, Relator Desembargador Pedro Saraiva de Andrade Lemos, j. em 03/09/2010.
[8] idem.
[9] Art. 177. As ações pessoais prescrevem, ordinàriamente, em vinte anos, as reais em dez, entre presentes e entre ausentes, em quinze, contados da data em que poderiam ter sido propostas.
[10] Art. 206. Prescreve:
§ 3o Em três anos:
V - a pretensão de reparação civil
[11] Art. 7º, 1ª parte: “As acções de indemnização prescrevem no prazo de dois anos a contar do evento”. (http://bo.io.gov.mo/bo/i/35/19/out01.asp#ptg)
[12] TARS, apelação cível 184021665, Relator Juiz Luiz Fernando Koch, j. em 05/09/1984. Fonte: VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite. op. cit., p. 27.
[13] TJRJ, apelação cível 0106898-98.2001.8.19.0001, Relator Desembargador Galdino Siqueira Netto, j. em 20/07/2010.
[14] TJRS (Primeira Turma Recursal Cível), recurso inominado 71003062445, Relator Juiz Ricardo Torres Hermann, j. em 25/08/2011.
[15] Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR), apelação cível 4043876, Relator Desembargador Arno Gustavo Knoerr, j. em 20/08/2009. Fonte: VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite, op. cit., p. 26.
[16] TRF-1, apelação cível 1999.39.02.001093-7/PA, Relator Juiz Federal Convocado Osmane Antônio dos Santos, j. em 18/06/2013.
[17] http://www.admiraltylaw.com/papers/MLA.pdf
[18] TJRJ, apelação cível 56.146/2006, Relator Desembargador Luiz Felipe Haddad, julgado em 15/12/2009.
[19] Idem. Vale observar que, nesta passagem, mesmo este esmerado e minucioso acórdão não escapou do uso incorreto da palavra “colisão”, como destacado no item 2.1 deste trabalho.
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CAMPOS, Ingrid Zanella Andrade. Direito Constitucional Marítimo. Curitiba: Juruá, 2011.
LACERDA, J. C. Sampaio de. Curso de Direito Comercial Marítimo e Aeronáutico, 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos.
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RIPERT, Georges. Compendio de Derecho Maritimo. Tradução de Pegro G. San Martin. Buenos Aires: Tipografia Editora Argentina, 1954.
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito: situação atual. São Paulo: Saraiva, 1994.
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