Migalhas Marítimas

O enquadramento normativo das embarcações empregadas na indústria eólica offshore e o posicionamento da ANTAQ

A energia eólica offshore é considerada uma alternativa sustentável para a diversificação da matriz energética brasileira, com o Brasil possuindo uma extensa plataforma continental. No entanto, o desenvolvimento desse setor levanta questões, incluindo a regulamentação das embarcações usadas na geração de energia eólica offshore.

9/11/2023

A energia eólica offshore tem sido cada vez mais citada no país como uma alternativa eficiente e sustentável para a diversificação da matriz energética brasileira. Com os 7.367 km de costa e 3,5 milhões km² de espaço marítimo sob sua jurisdição, o Brasil possui uma plataforma continental extensa que confere características favoráveis para a geração de energia renovável utilizando a força do vento em alto-mar.

Com o desenvolvimento do tema no País – em especial, com as discussões sobre a regulamentação da atividade pelo Congresso Nacional – outras questões também vêm surgindo e despertando debates entre players e autoridades. Dentre tais questões, e especialmente no setor marítimo, que interessa diretamente ao leitor desta coluna, destaca-se a regulamentação e o enquadramento regulatório das embarcações especiais que são empregadas na indústria offshore para a geração de energia eólica.

Como anteriormente mencionado na coluna, tais embarcações estão diretamente relacionadas à instalação, operação, manutenção e descomissionamento das megaestruturas flutuantes utilizadas para geração de energia, executando tarefas complexas que permitem que o parque eólico funcione adequadamente – no que se inclui, por exemplo, o auxílio na instalação das próprias turbinas das torres eólicas.

Muito embora o tema não tenha sido especificamente abordado pela legislação vigente, a jurisprudência da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (“ANTAQ”) tem se debruçado, cada vez mais, sobre a questão referente ao enquadramento normativo de tais embarcações especiais. É oportuno, assim, tratar do tema brevemente na presente coluna, em especial pelas relevantes discussões que ele deverá ensejar nos próximos anos.  

II. O desenvolvimento do assunto na ANTAQ – enquadramento das embarcações que atuarão nos projetos de parques eólicos offshore

No ano de 2022, a ANTAQ instaurou processo administrativo com o objetivo da elaboração de estudo sobre a geração de energia eólica offshore – em especial, “em forma de manifestação técnica, contendo aspectos regulatórios de navegação e portuários, bem como questões operacionais no Brasil e em outros países, visando subsidiar posicionamento superior a respeito” (Processo nº 50300.020618/2022-01).

De acordo com a Nota Técnica 196 produzida no âmbito do Processo, haveria diversos tipos de embarcações que atuariam na fase de desenvolvimento dos parques eólicos offshore. A Nota cita particularmente as seguintes embarcações: off shore jack up installation vessels or wind turbine installation vessel (WTIV); heavy lift vessels; cable instalation vessels; multi-purpose vessels; e rock installation DP fall pipe.

Ainda de acordo com a Nota, o corpo técnico da ANTAQ esclareceu que os desafios enfrentados para o desenvolvimento da indústria eólica offshore no Brasil seriam semelhantes àqueles enfrentados nos Estados Unidos. Isso porque a política mercante americana – denominada Jones Act – também seria uma política que privilegia utilização de embarcações de bandeira nacional, tal como ocorre no Brasil.

Desse modo, um dos desafios para o crescimento dos parques eólicos residiria justamente no fato de que, tanto nos EUA quanto no Brasil, existirem poucas embarcações nacionais efetivamente aptas a atuarem na fase de desenvolvimento, operação e descomissionamento dos parques eólicos.

Nessa linha, a Nota Técnica também pontuou que o ciclo de vida das usinas eólicas offshore seria similar às etapas da exploração offshore de petróleo e gás natural. Por essa razão, e considerando que as embarcações especiais que atuam no setor de óleo e gás estariam enquadradas na navegação de apoio marítimo – o que tem sido objeto de questionamento, como se verá adiante -- a Nota Técnica concluiu que as embarcações empregadas nos parques eólicos offshore também deveriam ser enquadradas como apoio marítimo.

O processo, então, seguiu para a análise da Diretoria Colegiada, ocasião na qual a Agência proferiu o Acórdão nº 434/2023 no sentido de equiparar as embarcações utilizadas na operação dos parques eólicos offshore às embarcações empregadas na indústria de exploração de óleo e gás – firmando o entendimento de que as primeiras, a exemplo das segundas, também deveriam ser enquadradas no conceito de navegação de apoio marítimo.

Vale dizer que essa não foi a primeira vez que a ANTAQ se posicionou dessa forma. No âmbito do Processo nº 50300.002301/2022-85, oriundo de consulta formulada por empresa de navegação, a Agência já havia proferido o Acórdão nº 499/22, por meio do qual concluiu que (i)não há disciplina específica nas normas que tratam do Registro Especial Brasileiro – REB para o enquadramento do tipo de navegação realizado pelas embarcações que operam na exploração ou no desenvolvimento de atividade eólica, e (ii)no caso concreto, para fins de enquadramento no REB, a navegação pretendida se enquadra como apoio marítimo”.

Ademais, a ANTAQ também tem adotado a interpretação extensiva do conceito de apoio marítimo para casos além dos relativos às embarcações empregadas em parques eólicos. Na realidade, tal entendimento da Agência também foi verificado no caso das embarcações de engenharia offshore, empregadas no setor de óleo e gás e que também foram enquadradas na categoria de apoio marítimo, por ocasião do Acórdão 604/22 e do Acórdão 472/23.

III. Comentários sobre o entendimento adotado pela ANTAQ

Considerando as repercussões desse enquadramento normativo, o que será abordado em maior detalhe adiante, é cabível e até mesmo necessária uma avaliação mais aprofundada e cuidadosa acerca do entendimento adotado pela ANTAQ em assunto tão relevante quanto o desenvolvimento de parques eólicos offshore. Afinal, existem questionamentos relevantes, tanto pelas empresas que atuam no setor de óleo e gás, quanto de energia eólica, exprimindo discordância quanto ao enquadramento normativo conferido pela Agência às embarcações especiais.

Neste ponto, o que os agentes do setor contrários ao entendimento firmado pela ANTAQ defendem é que, seja pelas características inerentes às embarcações especiais, seja por força das diferentes atividades que desempenham, elas não poderiam ser enquadradas, simplesmente, na categoria de navegação de apoio marítimo, na forma do artigo 2º, VIII, da lei 9.432/971.

Em apertada síntese, as embarcações especiais não atuariam realizando o “apoio logístico” a outras embarcações, tal como previsto na norma acima citada. Ao contrário, desempenhariam atividades específicas e mais complexas, tais como obras de engenharia submarinas sujeitas a contratos de EPCI e outras atividades que tornariam inviável o seu enquadramento na estreita categoria de apoio marítimo. Nesta classificação, deveriam estar incluídas apenas embarcações mais simples, fungíveis e similares entre si, que não se confundem com as complexas e sofisticadas embarcações especiais, em sua grande maioria de bandeira estrangeira.  

A discussão quanto ao enquadramento normativo das embarcações especiais abrange efeitos práticos imediatos, que preocupam as empresas interessadas em investir no setor de geração de energia eólica do País.

Isso porque o enquadramento das embarcações especiais como apoio marítimo acarretará, automaticamente, na sua sujeição ao procedimento de circularização para afretamento, nos termos da Resolução ANTAQ 01/15 – também já abordada anteriormente na coluna. Como se sabe, tal procedimento materializa a preferência de afretamento de embarcações de bandeira nacional (tal como esclarecido pela Nota Técnica 196 supramencionada) e implica em custos e procedimentos adicionais às empresas afretadoras de embarcações especiais.

Em se tratando de embarcações tradicionalmente associadas ao apoio marítimo (como aquelas que fornecem apoio logístico a outras embarcações e instalações em alto-mar), a submissão ao procedimento de circularização é bastante conhecida e objeto de pouca controvérsia. Afinal, as embarcações de apoio marítimo de bandeira brasileira são mais numerosas, facilitando sua contratação pelas empresas afretadoras.

Contudo, é no âmbito do afretamento das embarcações especiais, que realizam atividades complexas, como as que serão necessárias para o desenvolvimento de parques eólicos, que a submissão à circularização para afretamento mostra-se questionável de forma mais enfática. Especificamente, as empresas que necessitam afretar essas embarcações, em sua maioria de bandeira estrangeira, criticam a exigência de circularização – decorrente do enquadramento dessas embarcações na categoria de apoio marítimo, tal como decidido pela ANTAQ no acórdão anteriormente citado.

Argumentam que a incerteza jurídica decorrente da necessidade de realização do procedimento de circularização poderá, a exemplo do que ocorre no âmbito da exploração offshore, acabar impactando projetos de implementação de usinas eólicas em alto mar, gerando custos adicionais e dificuldades operacionais para substituir a embarcação estrangeira originalmente contratada por uma embarcação brasileira.

É que, dentro da lógica do procedimento de circularização, as empresas que desejem afretar embarcações especiais (em sua grande maioria, embarcações de bandeira estrangeira) devem, primeiro, lançar uma ordem de circularização por meio do sistema “SAMA” disponibilizado pela ANTAQ, para, então, verificar se há embarcação de bandeira brasileira disponível no mercado que preencha os requisitos para o afretamento. Em havendo essa disponibilidade, a embarcação brasileira irá lançar um bloqueio à circularização da embarcação de engenharia estrangeira, a fim de que a primeira, e não a última, seja a embarcação afretada pela empresa.

Ocorre que, como tem se verificado no âmbito da exploração de óleo e gás offshore, a embarcação brasileira bloqueante nem sempre preenche os requisitos técnicos necessários para a execução do projeto para o qual será afretada, como argumentam as empresas do setor. Tal situação, para além de gerar atrasos no projeto com bloqueios que nem sempre se efetivam, também implica em custos para os armadores das embarcações especiais, que se veem obrigados a manter a embarcação inoperante – às vezes, por meses – até que a análise do bloqueio seja concluída pela ANTAQ.

Ademais, a submissão do afretamento das embarcações especiais ao procedimento de circularização deveria também considerar particularidades operacionais que são verificadas especialmente no âmbito da implementação de projetos de geração de energia eólica offshore. A título de exemplo, é preciso avaliar se (i) tais embarcações especiais serão contratadas por meio de licitações, públicas ou privadas; (ii) se tal contratação envolverá uma análise prévia acerca da tecnologia e das especificidades da embarcação que vier a ser afretada; e (iii) se a embarcação especial será elemento essencial do projeto, não podendo ser substituída facilmente por embarcação de bandeira brasileira sem que haja impactos significativos, os quais podem até mesmo inviabilizar a execução da instalação e desenvolvimento do parque eólico.

Como se não bastasse, é importante considerar se a mera possibilidade de paralisação dos projetos dos parques eólicos offshore em virtude de tais bloqueios, poderá comprometer a própria viabilidade da obra que se pretende executar. Afinal, trata-se de projeto complexos e específicos, não sendo recomendável que a sua execução seja interrompida para que outra embarcação, com características distintas, seja adaptada ao projeto, o que costuma gerar entraves e prejuízos operacionais, além da insegurança jurídica.

No cerne de todas essas considerações, encontra-se, em última análise, a atratividade do País para investimentos e proprietários de embarcações estrangeiras. Nesse contexto, é preciso avaliar se o enquadramento das embarcações especiais que atuarão em parques eólicos na categoria de apoio marítimo, sujeitando-as consequentemente ao procedimento de circularização, não poderá criar obstáculos desnecessários ao desenvolvimento de tais projetos gerando desestímulo aos investimentos estrangeiros para geração de energia limpa no País.

Por fim, ainda vale destacar que o entendimento prevalecente da ANTAQ, até o ano de 2013, era o de que as embarcações especiais não poderiam ser incluídas na categoria de apoio marítimo. Como formalizado por meio do Formulário de Proposição Normativa 05872812, a Agência entendia até aquele momento que, em razão de realizarem empreitadas e não serem empregadas em atividade de transporte aquaviário (muito menos de apoio marítimo/logístico), tais embarcações não dependeriam de prévia autorização para seu afretamento – não se sujeitando, portanto, ao procedimento de circularização.

IV. Conclusão

Em resumo, caso o entendimento atual seja mantido e não haja futuras alterações normativas, as embarcações especiais que atuarão nos projetos de implementação dos parques eólicos offshore poderão ficar sujeitas aos mesmos procedimentos de circularização e bloqueio aplicáveis às embarcações de apoio marítimo – com todas as consequências decorrentes dessa exigência, que é vista por diversas empresas do setor como fonte de custos adicionais e insegurança jurídica em relação a prazos, preços e execução de projetos complexos. O tema, assim, demanda reflexão aprofundada e sugere que o entendimento da ANTAQ sobre a classificação dessas embarcações seja revisitado para se alcançar um ponto de equilíbrio que atenda as demandas do setor e preserve a atratividade dos investimentos no país.  

____________

Art. 2º Para os efeitos desta Lei, são estabelecidas as seguintes definições:

VIII - navegação de apoio marítimo: a realizada para o apoio logístico a embarcações e instalações em águas territoriais nacionais e na Zona Econômica, que atuem nas atividades de pesquisa e lavra de minerais e hidrocarbonetos;

2 SEI/ANTAQ - 0587281 - Formulário para Proposição de Ato Normativo: “Considerando tratar-se de obra de engenharia submarina de grande porte (...) não cabe a esta Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ autorizar os afretamentos de embarcações para este tipo de serviço, não sendo, portanto, necessária a emissão do Certificado de Autorização de Afretamento.”

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.