Não são raras as vezes em que duas empresas se tornam, a um só tempo, credoras e devedoras uma da outra. Nesses casos, surge o questionamento acerca da possibilidade de a empresa detentora do maior crédito impor uma compensação de valores à outra.
A compensação é disciplinada pelo Código Civil como um mecanismo indireto de pagamento. Em outras palavras, não há pagamento propriamente dito, muito embora o devedor seja liberado de sua obrigação. Nesse sentido, os artigos 368 e 369 do Código Civil elencam alguns pressupostos para que a compensação seja possível:
Art. 368. Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem.
Art. 369. A compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis.
Por sua vez, o art. 375 do referido diploma legal autoriza as partes a, por mútuo acordo, excluir ou, ainda, renunciar previamente à compensação. É dizer: as partes podem afastar, segundo sua vontade, a possibilidade de que seus créditos sejam compensados. Note-se que essa disposição vai ao encontro da lógica que rege as obrigações, uma vez que, em última análise, o devedor não é obrigado a compensar seu crédito, mas sim a pagar o montante devido.
Não à toa, o legislador idealizou a compensação com o intuito de facilitar a relação das partes e, assim, evitar o inconveniente de um contratante pagar ao outro para, logo na sequência, receber um pagamento dessa mesma pessoa.
Para além da compensação convencional, existem outras modalidades de compensação, a saber: i) a compensação judicial (i.e., imposta por decisão judicial) e ii) a compensação legal (i.e., imposta por força de lei). Nesses dois últimos casos, por óbvio, a compensação ocorre independentemente da vontade das partes.
A grande celeuma sobre o tema, contudo, acontece quando um dos contratantes fica à mercê de ver os valores que lhe são devidos em razão do objeto do contrato serem deduzidos ou compensados à força pela outra parte, sobretudo quando esta outra parte exerce posição dominante numa relação contratual que não se mostra, necessariamente, paritária e simétrica.
Os contratos de afretamento típicos do direito marítimo, cujo objeto é a gestão, seja náutica e/ou comercial, de determinada embarcação, são terreno fértil para a discussão teórica proposta acima.
Nos últimos anos, surgiram no Brasil inúmeras disputas relativas a contratos de afretamento onde, em sua maioria, a parte afretadora passou a aplicar unilateralmente determinadas multas às suas contratadas – fretadoras – impondo, ainda, que tais multas seriam de imediato deduzidas dos pagamentos devidos pelo afretamento nos meses subsequentes, numa forma de compensação.
Não raro, tais multas sacadas unilateralmente pela parte afretadora ameaçavam ser compensadas sobre recebíveis futuros devidos à contraparte, mesmo quando sob impugnação administrativa e questionamento da parte contratada.
Por conta disso, diversas empresas fretadoras buscaram – e ainda buscam – tutela jurisdicional objetivando receber integralmente o valor que lhes é devido pelo fretamento da embarcação e, ao mesmo tempo, afastar a controversa penalidade unilateralmente aplicada e auto executada pela contraparte no contrato, buscando o reconhecimento do descabimento da multa contratual questionada.
Esse cenário tem sido comumente enfrentado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro na última década, tendo aquela Corte sido frequentemente instada a se manifestar sobre a legalidade ou não dessas compensações forçadas, considerando, sobretudo, os efeitos econômicos que elas podem ostentar. Ao longo dos anos, tem se consolidado a jurisprudência no sentido de que tais compensações manu militari afrontam o ordenamento jurídico, porquanto os atos de uma das partes contratantes não gozam de autotutela nem autoexecutoriedade.
Em outras palavras, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem firmado posição no sentido de que as compensações de valores, em tais casos, representariam abuso de direito previsto no art. 187 do Código Civil.
A Corte de Justiça do Rio de Janeiro também tem consolidado entendimento no sentido da impossibilidade de compensação de valores objetos de impugnação administrativa, dado que não se trataria de quantia certa e exigível, justamente por ser controvertida, de modo que os pressupostos dos artigos 368 e 369 do Código Civil não restariam atendidos.
Para ilustrar o que se afirma, estima-se que, no período de 2011 a 2023, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tenha julgado pelo menos 133 casos baseados em compensações pretendidas em contratos de afretamento desta natureza. E, desses casos, 109 (ou seja, 81,95%) foram favoráveis ou parcialmente favoráveis aos interesses das fretadoras contratadas. Citando um exemplo, confira-se a ementa abaixo transcrita:
Apelação Cível. Direito Empresarial. Contrato de afretamento de embarcação celebrado entre a Petrobras e as autoras. Pretensão de que a ré se abstenha de aplicar descontos unilaterais sobre os recebíveis das operadoras como compensação pelos valores pagos no período em que as atividades da plataforma da cidade de Santos (FPSO Cidade de Santos) estiveram suspensas por ausência de tripulação mínima em serviço. Paralisação determinada em razão do número de funcionários afastados por COVID-19 bem como dos procedimentos necessários para o completo restabelecimento das atividades, dentre os quais a emissão de autorização pela ANP. Situação que havia ensejado o pagamento da remuneração parcial pela execução dos serviços (intitulada de “Taxa de Espera”), nos termos previstos nos ajustes firmados pelas partes, ante o enquadramento da paralisação como sendo decorrente de evento de força maior. Impossibilidade de a ré, posteriormente, e a manu militari, efetuar compensações nos referidos contratos. Conduta que configura exercício de autotutela, o que é vedado à demandada, submetida que está ao regime jurídico de direito privado. Possibilidade de parada de produção em razão do diagnóstico de casos da doença nessas unidades que foi prevista por entidades fiscalizatórias do setor (MPT, ANP e ANVISA), restando reconhecida a maior vulnerabilidade dos trabalhadores em atividade offshore. Cerceamento de defesa, ante a rejeição da produção de prova oral, consistente na oitiva de testemunhas, que não se reconhece. Suficiência probatória no tocante ao fato de situações como a ocorrida na plataforma em questão estarem classificadas como evento excepcional e de força maior. Inteligência do art. 370 do CPC. Sentença de procedência que se mantém. Recurso ao qual se nega provimento.
(0125258-17.2020.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). HELENO RIBEIRO PEREIRA NUNES - Julgamento: 08/02/2022 - QUINTA CÂMARA CÍVEL)
Na mesma linha, uma coletânea de julgados relativos a contratos de afretamento de embarcações se encontra compilada num capítulo específico dedicado ao tema “Afretamento”, no Livro de Jurisprudência Marítima (link disponível aqui).
Como visto, conquanto existam hipóteses de compensação forçada (judicial ou legal), essa modalidade de compensação somente é verificada em casos específicos. Como resultado, é o consentimento das partes que deve balizar a possibilidade ou não de compensação de créditos em uma relação contratual, sob pena de um dos contratantes ser forçado a compensar determinado valor por abuso de direito do outro.
A lógica, portanto, é que alguém que manifestou discordância com a compensação de seus créditos não deve ser obrigado a compensá-los; caso contrário, legitimar-se-iam a autotutela e autoexecutoriedade, em hipótese incompatível com o ordenamento jurídico vigente.