Imagine-se, caro leitor, diante de uma complexa causa envolvendo apuração de responsabilidades no Direito Marítimo e você tendo que se preparar psicologicamente para atuar nela; seja como advogado ou juiz.
Tomemos agora como exemplo desta causa complexa o encalhe do Navio Ever Given no Canal de Suez, caso exaustivamente citado e explicado nesta mesma coluna pelos doutores Lucas Marques, Marcelo Muniz e Wellington Camacho1.
No momento que você é profissional do Direito destacado para atuar num caso deste naipe, antes mesmo da análise dos autos, é importante você esperar que um acidente desta envergadura terá várias causas a culminar no infausto.
O aparato tecnológico dos navios modernos, o cuidado com o volume de carga e cifras envolvidas, o profissionalismo das pessoas imiscuídas no deslocamento de milhares de contêineres, o custo da utilização de vias de navegação importantes como é o Canal de Suez e a consequente influencia mundial do tráfego de comodities, pressupõem que várias causas tenham que estar consorciadas para que a teia de segurança seja superada e o acidente ocorra.
Para o Direito, quando várias causas estão envolvidas no evento danoso, deve-se considerar a utilização da teoria das concausas para deslinde jurídico da questão.
Na Apelação nº 1029615-59.2015.8.26.0562, o Desembargador Franciso Giaquinto, do Tribunal de Justiça de São Paulo assim procedeu quando - ao julgar um caso concreto - considerou que “(...) a inicial é clara ao estabelecer concausas para o evento danoso noticiado pela autora, consignando que os danos poderiam advir não apenas de erro durante a operação de ova das bobinas, mas também de provável alocação inadequada do contêiner dentro do navio.”
Se a teoria das concausas é utilizada para danos menores em acidentes e fatos da navegação, vale também para casos de monta monstruosa, como é o do Even Given no Canal de Suez.
Relatório recente capitaneado pela autoridade marítima do Canal do Panamá sobre o acidente ocorrido no Canal de Suez com o N/V Even Given2, identificou as (con)causas do acidente da navegação em comento, concluiu que várias circunstâncias estiveram ligadas ao encalhe do navio e aos prejuízos que vieram dele.
Aliás, para ser mais preciso, cabe notar que referido relatório indicou que vários fatores e eventos foram os causadores do encalhe.
O relatorio indica que ‘durante a navegação do M/V Ever Given no Canal de Suez, em 23 de março de 2021, uma série de eventos e fatores influenciaram para o encalhe do navio’3, todos eles desaguando na causa principal que foi a perda de manobrabilidade da embarcação.
Fatores como velocidade e direção do vento e efeitos hidrodinâmicos da navegação do canal se consorciaram a fatores como babelismo entre Práticos, Tripulantes e Capitão na torre de comando do navio, que dificultou a comunicação entre eles e, por consequência, a compreensão de ordens, além da má avaliação das condições climáticas e dimensionamento da embarcação no momento da travessia do canal e ausência de equipamentos preventivos do navio contra condições climáticas adversas, entre outras.
Pontes de Miranda, se vivo fosse, talvez dissesse que o encalhe do Ever Given tenha se dado por uma confluência de atos, fatos e atos-fatos jurídicos.
As autoridades marítimas deram a atribuição de eventos e fatores, linguagem que deve ser traduzida para termo unívoco nos argumentos e fundamentos jurídicos; seja nas razões das partes, seja na fundamentação do julgamento.
E nesta altura do artigo, o leitor deve estar se preguntando o que o queijo suíço tem a ver com tudo isso.
A ciência da segurança[4] procura informar a tomada geral de decisões e neste processo apresenta o Modelo do Queijo Suíço como ferramental para a boa decisão. Segundo este modelo, os buracos de uma fatia de queijo suíço são os eventos e fatores que se podem encontrar numa situação potencialmente danosa.
O container enferrujado que pode causar dano à carga, a peação indevida do container, a falta de equipamentos para enfrentar uma tempestade, enfim cada uma dessas causas significa um buraco em uma fatia de queijo suíço.
Para que se atinja a segurança da navegação não se espera que a aventura no mar seja sem furos – aliás, se assim fosse não seria uma aventura. O que se espera no Modelo do Queijo Suíço é que ao colocar várias dessas fatias, uma ao lado da outra, os furos não vão estar na mesma posição, a ponto de se poder ver entre todas as fatias sobrepostas. Sempre haverá um pedaço maciço de queijo a garantir o vácuo do buraco da fatia anterior.
Muitas cargas e passageiros chegam a seu destino depois de uma fatia de queijo ter resguardado a segurança que outra fatia falhou em garantir, por ter nascido com um buraco. É a previsibilidade humana tomando em conta a falibilidade humana ou ocorrência de fatos da natureza.
Para que um sinistro ocorra depois de um processo de segurança tão grande, há que se pressupor uma infeliz confluência de sobreposição de todos os buracos, de todas as fatias de queijo, a ponto de uma linha reta passar, ao mesmo tempo, entre todos eles. Como se fosse uma haste de madeira da desventura passando por todos os buracos, sem encontrar barreiras.
Eis a teoria das concausas explicada pela ciência da segurança.
E como o jurista estará preparado para lidar com tudo isso?
Entendendo de antemão que o advogado pretenderá indicar que o furo da fatia de queijo de seu cliente deve ser analisado sem que se perca de vista o furo da fatia de queijo de outro player da aventura marítima; entendendo ainda que compete ao Juiz dar a cada fatia de queijo o que é seu e responsabilizar cada fatia de queijo pelo furo que lhe pertence, será atingido o julgamento a contento da questão.
A complexidade e a vultuosidade econômica das causas marítimas não permitem a credulidade dos juristas de que haverá facilidade de provar a causa única do sinistro ou chance de sentenciar o processo de forma simplória, condenando apenas a fatia detentora de um dos furos.
Se a infeliz coincidência da sobreposição de furos houve, a sintonia fina de encontrar as várias causas do fastidioso evento é que mostrará o profissional do direito preparado para o deslinde justo da questão.
Em momentos de lazer, naqueles que supostamente queremos fazer tudo que não seja pensar em trabalho, talvez nos puséssemos a ler The Perfect Storm5de Sebastian Junger sem nos darmos conta de que a tempestade perfeita em questão foi também uma confluência de fatores naturais que geraram uma das mais devastadoras tragédias naturais da América do Norte.
Ora, se até mesmo as forças da natureza confluem seus infaustos, por que o Direito não deveria considerar tais confluências para um julgamento justo?
O Direito mimetiza a vida de forma muito parecida com a arte.
Deste modo, a justiça de se trazer para as barras dos tribunais as Desventuras em Série6 de uma aventura marítima e a fineza de toque de considerar as minúcias e sutilizas dessas questões faz descortinar o preparo psicológico e jurídico do jurista destacado para um caso desta envergadura.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Tradução livre e sem destaques o original
4 STOOP, John; DE KROES, Jan; HALE, Andrew in Safety Science, a fouding father's retrospection. Consultado aos 18 de julho de 2023. S0925753517300589.
5 Em português: A Tormenta
6 Referência à obra de Daniel Handler.