Migalhas Marítimas

Primeiros impactos das novas regras de descarbonização da IMO nos contratos de afretamentos de embarcações

Na prática, não vislumbramos como se dará a imposição das “penalidades” acima previstas, pois a norma não detalhou o assunto.

6/7/2023

Introdução: os GEE e a mudança climática

Na condição de espectadores, que hoje somos, de grandes tragédias ambientais – dentre as mais evidentes, o derretimento das calotas polares, o aumento do nível dos oceanos e a inundação permanente de áreas outrora secas – torna-se impossível negar o impacto negativo das atividades humanas no nosso planeta.

Desde a revolução industrial, a civilização vem produzindo um volume cada vez maior de gases do efeito estufa (GEE), seja por meio do desmatamento de florestas, ou da queima de combustíveis fósseis.  A alta concentração desses gases na atmosfera afeta a forma como a radiação solar deveria ser naturalmente retida, aumentando o efeito estufa e elevando a temperatura média global, causando mudanças no clima.

Assim, o excesso de chuva ou a seca prolongada há muito deixaram de ser obra da divina providência: as estações do ano vêm sendo afetadas pelo aquecimento global.  Cientistas vêm registrando um aumento na frequência de eventos climáticos extremos, tais como tempestades, enchentes, ondas de calor, secas, nevascas, furacões etc.

A ONU e a IMO

Em 2015, durante a COP-21, foi firmado o Acordo de Paris, no qual os países signatários estabeleceram uma série de compromissos, dentre eles a redução da emissão de gases do efeito estufa, de modo a limitar o aquecimento global. A tarefa de aplicar esses compromissos à indústria marítima ficou a encargo da IMO.

Em 2018, foi publicada a Estratégia Inicial da IMO para Redução das Emissões de GEE por Navios, cujo texto propõe, dentre outras, metas de redução de emissões anuais de GEE em 50% até 2050 (comparadas aos níveis de 2008). Em 1° de novembro de 2022, entrou em vigor o Capítulo 4 ao Anexo VI da MARPOL, que já tratava de emissões de gases prejudiciais a camada de ozônio.

Novas regras da MARPOL

O Capítulo 4 estabeleceu alterações técnicas e operacionais para que os navios melhorem a sua eficiência energética e, assim, reduzam as emissões de GEE. Dentre as alterações, inclui-se a exigência de redução da intensidade de carbono, que tem como base índices técnicos e operacionais, mais precisamente, o Índice de Eficiência Energética de Navios Existentes (Energy Efficiency Existing Ships Index - EEXI); e o Índice de Intensidade de Carbono Operacional (Carbon Intensity Indicator - CII).

Neste contexto, desde 1º de janeiro de 2023 tornou-se obrigatória a medição, por todos os navios, do EEXI e do CII, cujo objetivo é a redução da intensidade de carbono da navegação internacional, trabalhando para atingir os níveis estabelecidos na Estratégia Inicial da IMO.

O EEXI tem por base fatores técnicos do navio, como o tipo de combustível comportado e até mesmo detalhes do design da embarcação. Este índice é calculado a partir do equacionamento da potência e consumo do motor principal, consumo dos motores auxiliares e o fator de conversão entre o combustível e a massa de dióxido de carbono correspondente.

A partir do cálculo do EEXI – obrigatório para embarcações com arqueação bruta a partir de 400 toneladas – sua classificação se dará a partir de um valor de referência estabelecido pela IMO com base nas características do navio e expresso como uma percentagem relativa à linha de base do Índice de Eficiência Energética de Projeto (EEDI).

Em outras palavras, o EEXI indica a eficiência energética de um navio em comparação com uma linha de base, a partir da relação entre a quantidade de emissões do projeto da embarcação e a sua capacidade de transporte e velocidade de serviço.

O valor EEXI calculado para cada navio individual deve estar abaixo do EEXI exigido – cujos limites serão reduzidos a cada 5 anos – para garantir que o navio atenda a um padrão mínimo de eficiência energética. De outra via, caso esteja acima do limite, será necessária a implementação de um plano de melhorias, que pode redundar na limitação da potência do motor e, consequentemente, gerar uma redução na velocidade operação do navio.

O CII (Indicador de Intensidade de Carbono), por sua vez, está vinculado à operação do navio e determina o fator de redução anual necessário para que a intensidade de carbono operacional de um navio seja continuamente aprimorada dentro de um nível de classificação concreto. Seu cálculo é obrigatório para as embarcações com arqueação bruta acima de 5000 toneladas e o valor efetivamente alcançado deverá ser registrado e comparado à intensidade anual exigida para que se seja feita a classificação.

A partir da CII anual alcançada, os navios serão classificados dentro de uma escala alfabética de A a E, sendo “A” a melhor classificação. Caso um navio seja classificado na categoria “D” por três anos consecutivos ou na categoria “E”, deverá desenvolver um plano de ações corretivas para atingir a um nível que seja equivalente, ao menos, à classificação “C”, definida como ponto médio.

Outra importante previsão obrigatória é a elaboração do Plano de Gestão da Eficiência Energética do Navio (Ship Energy Efficiency Management Plan - SEEMP). O SEEMP é uma ferramenta voltada à gestão do desempenho do navio quanto à eficiência energética ao longo do tempo e deve ser desenvolvido sempre visando as melhores práticas de uma operação eficiente, sendo de fundamental importância para que fretador e afretador possam monitorar e aprimorar constantemente tecnologias e práticas para otimizar o desempenho do navio.

Impactos Operacionais

Para atendimento das novas regras da MARPOL, os navios deverão observar limites cada vez mais rigorosos de emissão de gases de efeito estufa, com especial atenção ao dióxido de carbono (CO2). Consequentemente, será necessário adequar as embarcações existentes para atendimentos dos limites fixados, como motores mais eficientes e combustíveis verdes, sistemas de recuperação de calor, otimização do design das hélices, dentre outros.

A título ilustrativo, pensemos que para um melhor rendimento com relação ao índice EEXI, é possível a instalação de dispositivos que reduzam a potência dos motores de combustão ou do eixo de propulsão; ou ainda a equipagem do navio com baterias, auxílio alternativo de propulsão, dentre outros dos quais da utilização não resulta a emissão de gases. Como mencionado, o EEXI está relacionado a características técnicas dos navios e as adaptações principais, em suma, estão relacionadas à potência dos motores e sistemas que auxiliem a contornar a necessidade de sua limitação a fim de evitar que a velocidade de operacional do navio seja afetada.

Belo exemplo é o graneleiro “Sea Zhoushan”, pioneiro na utilização de velas rotativas e que passou recentemente pelo porto do Rio de Janeiro.  O sistema de propulsão auxiliar é composto por cinco rotores cilíndricos, as velas, que permitem a utilização da força do vento para impulsionar o navio, aumentando a eficiência da embarcação, com a consequente redução nas emissões de carbono.

Partindo-se para possíveis adequações operacionais e alternativas para a manutenção de adequados índices de CII, temos a utilização de combustível com baixo teor de carbono, otimização das programações de viagem dos navios, ou instalação de geradores de energia e combustíveis alternativos. Muito importante também, para este fim, a correta manutenção dos cascos para melhor desempenho hidrodinâmico, dentre outros.

Impactos nos Contratos de Afretamento

Evidentemente, tecnologias e adequações para redução de emissões poderão demandar investimentos significativos, e por consequência, aumentar os custos operacionais dos navios, impactando não apenas os contratos em curso como também os futuros. E aqui chegamos ao cerne de nossa reflexão, qual seja, como estas regulações impactam os contratos de afretamento – já existentes e futuros.

É preciso considerar, por exemplo, que nos casos em que a redução da propulsão for necessária para atingimento das metas, as viagens podem ser tornar mais demoradas, assim como em decorrência da necessidade constante de ajuste das programações para controle do CII.

Ilustra bem o presente cenário o fato de que, recentemente foram publicadas pela BIMCO as cláusulas EEXI e CII, que tratam da alocação de responsabilidades e custos paras implementação das modificações para adequação às novas regras. A Cláusula EEXI é recomendada para os casos de redução da potência dos motores de combustão do eixo de propulsão.  Já a Cláusula CII prevê a definição de um limite para o CII por meio da programação das viagens pelo afretador.

Neste ponto, cabe frisar que, de acordo com as disposições atuais, a responsabilidade pelo atingimento das metas de eficiência adequadas recai sobre o operador do navio, de modo que a transparência no compartilhamento de dados entre fretador e afretador torna-se primordial, sendo mesmo possível o estabelecimento de cláusulas indenizatórias como ônus ao afretador que deixar de observar os limites fixados.

Possíveis Penalidades

Vale ressaltar, no entanto, que o descumprimento destas novas determinações pode resultar em ações corretivas, que incluem a possibilidade de exigência de redução da potência e velocidade do motor a fim de cumprir o EEXI, como mencionado acima, ou mesmo a obrigatoriedade de redução da quantidade de carga dos navios.

Na prática, não vislumbramos como se dará a imposição das “penalidades” acima previstas, pois a norma não detalhou o assunto.  Notamos, todavia, que há previsão de revisão da nova regulamentação em 2026, quando será analisada, dentre outros aspectos, a necessidade de reforço das medidas corretivas e do próprio mecanismo de execução do regulamento.

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*Flavia Melo tem mais de 20 anos de experiência em Direito Marítimo, atuando para clientes brasileiros e estrangeiros, em acidentes de navegação, disputas de carga, arresto de navios, poluição ambiental, reclamações de terceiros e questões de seguro decorrentes.

*Iasmim de Oliveira é advogada especializada em Direito Processual, e com relevante experiência nas áreas de Direito Marítimo e de Seguros.

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.