Migalhas Marítimas

Reflexões sobre o julgamento do Recurso Especial 1.988.894/SP. Parte 1: Conhecimento marítimo - Contrato tipo ou contrato de adesão?

O amplo debate promovido pelos Ministros durante o julgamento aqui analisado carrega a expectativa de pacificação do tema em futuro próximo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.

29/6/2023

Recentemente, em maio de 2023, a 4ª turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu julgamento emblemático, que demandou a análise pormenorizada de vários temas relativos a sinistros marítimos e ainda controvertidos na jurisprudência brasileira.

Trata-se do julgamento do Recurso Especial 1.988.894/SP, realizado pela 4ª turma do STJ sob a relatoria da eminente Ministra Isabel Gallotti, tendo por origem uma ação de ressarcimento decorrente de perdas e danos de carga durante a execução de transporte marítimo internacional, movida por seguradora sub-rogada nos direitos do contratante do transporte em face do armador-proprietário do navio, do afretador e do agente de cargas.

Dentre os diversos temas enfrentados no julgamento, destacam-se, em especial, a natureza jurídica do contrato de transporte evidenciado pelo conhecimento marítimo; o efeito e alcance da sub-rogação operada entre segurador e proprietário da carga; e a eficácia da cláusula de arbitragem inserida no Bill of Lading perante o segurador sub-rogado nos direitos do contratante do transporte marítimo.

Considerando o alcance e a multiplicidade de temas importantes tratados no referido julgamento, inauguramos, neste arrazoado, uma série de três artigos para análise de cada uma das teses discutidas no respectivo acórdão, bem como o possível impacto na jurisprudência nacional.

Neste primeiro artigo, nos debruçaremos sobre o item do acórdão que tratou de analisar especificamente a natureza jurídica dos contratos de transporte quando representados e regidos pelas cláusulas expressas no conhecimento emitido pelo provedor do transporte marítimo. Neste caso, em particular, a autora da ação, seguradora sub-rogada nos direitos do contratante do transporte, defendeu que as cláusulas inseridas no conhecimento de carga não teriam aplicabilidade por representar, ao seu ver, um contrato de adesão e, consequentemente, não carregando em si a efetiva manifestação de vontade do contratante, o que levou a uma ampla discussão nos autos sobre a higidez das cláusulas estabelecidas neste documento.

Nesse aspecto, o acórdão faz menção ao entendimento doutrinário mais moderno no sentido de que a presença de condições gerais, cláusulas padronizadas ou “pré-redigidas” isoladamente não caracterizam um contrato de adesão. A este respeito, o voto-relator conduzido pela Ministra Isabel Gallotti repercutiu as lições dos autores Caio Mário da Silva Pereira e Maria Helena Diniz no tocante à caraterização dos contratos de adesão:

“O contrato de/por adesão, portanto, traz consigo ideia oposta aos contratos paritários, justamente em razão da ausência de liberdade plena de convenção, em que há exclusão da possibilidade “de qualquer debate e transigência entre as partes, uma vez que um dos contratantes se limita a aceitar as cláusulas e condições previamente redigidas e impressas por outro” (DINIZ, Maria Helena. “Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais – v.3”. 39ª edição. São Paulo: Saraivajur, 2023. Pág. 86).

Depreende-se, com efeito, que a totalidade ou ao menos a parte mais relevante da substância do contrato de adesão seja composta por cláusulas contratuais gerais, aplicáveis indistintamente a qualquer aderente em razão da predisposição de seu conteúdo”. 

Seguindo essa linha de raciocínio pautada na doutrina especializada, os Ministros da 4ª turma do STJ consideraram, ainda, por analogia, o conceito de contrato de adesão fixado no artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece a impossibilidade de discutir ou modificar o conteúdo das respectivas cláusulas. Adicionalmente, foi analisada eventual hipossuficiência técnica e econômica dos contratantes.

No caso vertente, estavam reunidas todas as particularidades clássicas de sinistros marítimos de grandes proporções: empresas estrangeiras de grande porte econômico e plenamente habituadas com as dinâmicas do comércio e transporte marítimo de mercadorias, carga transportada de elevado valor agregado e apólice de seguro com limite de cobertura milionário.

Diante dessas características, que se repetem com alguma frequência nas ações de ressarcimento embasadas em seguros marítimos, a 4ª turma Superior Tribunal de Justiça entendeu que a paridade entre as partes contratantes do transporte marítimo descaracteriza a condição de adesão, inclusive quando o contrato de transporte se encontra amparado no Bill of Lading.  

A conclusão é de extrema relevância, na medida em que afasta, tanto do ponto de vista fático quanto jurídico, a alegação de que empresas de grande porte econômico, muitas vezes afretadoras de embarcações inteiras, sejam hipossuficientes nos aspectos técnico e econômico de modo a ensejar a proteção típica e especial de um consumidor comum.

Neste tocante, cabe citar, pelo brilhantismo, trecho do voto convergente proferido pelo eminente Desembargador Antonio Figliolia, do Tribunal de Justiça de São Paulo, quando do julgamento da apelação proferido neste mesmo caso:

“Nesse contexto, ninguém era forçado a contratar. Todos tinham opções. Muitas opções. Os interesses econômicos de todos os envolvidos na contratação era enorme. Transportadores, importadores, fabricantes, adquirente e a seguradora de tudo isso. Não havia indefesos, nem hipossuficientes, por mais que se distenda o alcance do conceito.

Não houve imposição. Tudo foi negociado.

Destarte, no caso dos autos, a forma do contrato de transporte pode parecer a de um contrato de adesão em sentido lato – aquele destinado ao consumo massivo ou imposto por uma das partes em detrimento da outra, presumidamente mais fraca, mas o conteúdo não é”.

Seguindo essa mesma linha, o voto-relator proferido pela Ministra Isabel Gallotti, seguido unanimemente pelos demais pares e refletido na própria ementa do acórdão, ao analisar as características particulares de um Bill of Lading, assentou o seguinte entendimento:

“(...) a circunstância de o contrato ser materializado por formulário e a existência de cláusulas padronizadas não implica a necessária conclusão de se tratar de contrato de adesão. Para tanto, cumpre esteja presente a característica de contratualidade meramente formal, vale dizer, que a parte não responsável pela prévia determinação uniforme do conteúdo do contrato tenha meramente aderido ao instrumento, sem aceitar efetivamente as suas cláusulas”.     

Sobre esse ponto específico, o voto condutor do acórdão proferido no caso em análise também fez menção ao entendimento já estabelecido no âmbito do STJ acerca das características dos contratos de adesão:

“Não é diferente o entendimento desta Corte, de que “o contrato de adesão tem como principal característica o fato de ser desprovido de fase pré-negocial, porquanto é elaborado unilateralmente, cabendo à outra parte contratante, que figura na condição de aderente, apenas aceitar as cláusulas padronizadas ali contidas, de modo que não lhe é assegurada interferência no conteúdo do ajuste” (REsp 1.424.074/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe de 16/11/2015.)”

Dessa forma, emprestando o conceito fixado no artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor, e com arrimo nos preceitos da doutrina aqui já mencionada, os Ministros da 4ª turma do STJ concluíram que a caracterização de um contrato de adesão depende do preenchimento dos seguintes requisitos: uniformidade, imutabilidade e rigidez. Além disso, também levaram em consideração eventual hipossuficiência técnica e econômica do contratante do transporte.

Nesse ponto, concluiu a turma julgadora que, embora as cláusulas tenham sido estabelecidas em formulário, ou seja, no Bill of Lading, isto não necessariamente representava um impedimento de negociá-las, com possibilidade, por exemplo, de alteração ou exclusão de cláusulas de jurisdição, arbitragem ou mesmo limitação por perdas e danos de carga durante a execução do transporte. 

Tal conclusão foi extraída das particularidades do caso, notadamente pelo fato de que a contratante do transporte e respectiva seguradora eram empresas integrantes de conglomerados econômicos multinacionais de grande porte e que operam regularmente no transporte internacional de mercadorias, afastando qualquer presunção de hipossuficiência técnica ou econômica diante do transportador contratado para fins de negociação, modificação ou exclusão de cláusulas. 

Especialmente neste aspecto, o acórdão proferido pelo STJ fez menção expressa ao conteúdo do julgamento realizado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo ainda na fase de apelação, que observou atentamente a condição das partes contratantes no caso concreto:

(...) Retomando o caso em debate, observo que a Corte estadual inferiu do contexto fático-contratual que houve possibilidade de discussão a respeito das cláusulas contratuais, notadamente a arbitral, visto que “o segurado da Apelada, E. S. P. EPM, não pode ser considerado economicamente hipossuficiente frente às transportadoras, pois se trata de sociedade de grande porte controlada pelo Município de Medelín e integrante um dos maiores conglomerados empresariais da América Latina, com atuação em 6 (seis) países (Colômbia, Chile, México, Guatemala, El Salvador e Panamá) na geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, fornecimento de água, gestão de águas residuais, gestão de resíduos sólidos e gás natural

Dessa forma, não haveria que se falar em “hipossuficiência do segurado da Apelada que certamente sabia da cláusula compromissória e anuiu com a submissão de eventuais conflitos decorrentes do contrato à arbitragem”. A referida conclusão é reforçada não somente pela parte aderente, empresa estadual da Colombiana, mas também pelo objeto da avença: “transporte marítimo internacional entre os portos de Santos(Brasil) e Barranquilla (Colômbia) de componentes de turbinas e geradores de usina hidroelétrica exportados por Alstom Energias Renováveis Ltda.”, que perfaziam a quantia de “US$ 4.217.345,72 (quatro milhões, duzentos e dezessete mil, trezentos e quarenta e cinco reais e setenta e dois centavos), valor equivalente a R$14.141.603,67 (quatorze milhões, cento e quarenta e um mil, seiscentos e três reais e sessenta e sete centavos) na data do pagamento da indenização” (fl. 1.854). Dessa forma, o Tribunal de origem, a partir do contexto fático, entendeu tratar-se de contrato paritário, com cujas cláusulas ambas as partes anuíram, o que o descarateriza, em sua essência, como contrato de adesão”.

Finalmente, a 4ª turma do STJ considerou a diferenciação entre contrato de adesão e contrato tipo, afastando o mito de que Conhecimentos Marítimos são formas de contratação por adesão. Nesse sentido, o acórdão faz menção aos ensinamentos de Caio Mario da Silva Pereira:

(...) “A título elucidativo, visto que não é objeto do presente recurso a distinção do contrato de adesão com suas figuras correlatas, pontuo que a mera previsão de “cláusulas padrões” ou “pré-redigidas” não é suficiente para reconhecer a natureza jurídica de uma avença como de adesão, tendo em vista a necessidade de verificação dos seus elementos distintivos: “Sem nos referirmos a outras classificações de contratos, que não nos parece mereçam a honra de uma especial menção, aludimos em derradeira voz ao chamado contrato-tipo ou por formulário, que se aproxima do contrato coletivo e do contrato por adesão, deles distinguindo-se contudo. Dá-se quando uma das partes já tem, em fórmula impressa, policopiada ou datilografada, o padrão contratual que a outra se limita a subscrever, aceitando-lhe as cláusulas previamente redigidas. Distingue-se do coletivo, em que já constitui o esquema concreto de contrato, gerador de efeitos diretos, enquanto o coletivo formula as condições abstratas, a que o contratante individual deve obediência. Do contrato de adesão a separação é mais sutil, e a doutrina não a formula com segurança. A nós, parece-nos mais simples dizer que o contrato-tipo não resulta de cláusulas impostas, mas simplesmente pré-redigidas, às quais a outra parte não se limita a aderir, mas que efetivamente aceita, conhecendo-as, as quais, por isso mesmo, são suscetíveis de alteração ou cancelamento, por via de outras cláusulas substitutivas, que venham manuscritas, datilografadas ou carimbadas. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. “Instituições de direito civil: contratos”. 25ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2022. Pág. 71)

Ainda mais esclarecedora é a doutrina de Orlando Gomes, que diferencia contratos de adesão e contratos tipos, apontando para a conclusão de que os Conhecimentos Marítimos ou Bill of Ladings se encaixam na categoria de contratos tipos, o que reforça a validade e eficácia das respectivas cláusulas:

“(...) O contrato de adesão distingue-se do contrato-tipo, quer este se considere subespécie do contrato normativo, quer seja o contrato cujo instrumento é um módulo ou formulário. Na última conceituação "não é mais do que a expressão de uma fórmula externa e puramente formal da técnica contratual". Esse modo de formalizar o contrato não é incompatível com o contrato de adesão, constituindo antes a forma usual de alguns, como o seguro, o transporte e contratos bancários. A circunstância de ser impresso, incorporando-se no instrumento todas as cláusulas do contrato, carece de transcendência jurídica”.

 

Em conclusão, a 4ª turma do Superior Tribunal de Justiça afastou a tese de que o conhecimento marítimo se equipara a um contrato de adesão e firmou entendimento de que se trata de contrato tipo e paritário, o que torna plenamente válidas e aplicáveis as respectivas cláusulas, às quais os contratantes plenamente anuíram previamente.

Nestes termos, o julgamento proferido no recurso especial aqui destacado constitui importante precedente no sentido de que o simples fato de o contrato de transporte estar amparado em Conhecimento Marítimo, por sua vez materializado em formulário, não o caracteriza como instrumento de adesão e não retira a validade das cláusulas nele inseridas, exceto nas hipóteses excepcionais em que houver comprovação de hipossuficiência técnica e econômica do contratante que lhe possa restringir ou impedir a condição de negociação para modificação ou exclusão de cláusulas junto ao provedor do serviço.

Este entendimento confere novos contornos no tocante à interpretação de regras contratuais estabelecidas nos Bill of Ladings, especialmente cláusulas típicas de operações de transporte internacional de cargas, como cláusula de jurisdição, arbitragem e limitação de responsabilidade.

O amplo debate promovido pelos Ministros durante o julgamento aqui analisado carrega a expectativa de pacificação do tema em futuro próximo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.

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Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraivajur, v. 3

Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, v. 2

Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, Poder Executivo.

Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 1011916-50.2018.8.26.0562

Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 9108101-03.2008.8.26.0000

Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1988894/SP

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Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp 2214857/CE

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.