O processo de apuração e julgamento de acidentes e fatos da navegação (AFN), de competência do Tribunal Marítimo (TM), é ainda pouco conhecido da comunidade jurídica brasileira. Num esforço para difundir este conhecimento para além da comunidade marítima, o tema já foi objeto de vários textos desta Coluna, que permitem ter uma visão geral dessa relevante função exercida pela Corte do Mar.
Neste contexto, e como forma de manter os leitores atualizados, o texto de hoje tratará de duas alterações recentes no procedimento do processo marítimo, com alguns comentários do ponto de vista de quem advoga junto àquela Corte.
A Resolução TM nº 61/2023, de 13/04/2023 (entrou em vigor em 02/05/2023) alterou dispositivos do Regimento Interno Processual do Tribunal Marítimo (RIPTM), na parte que trata das sessões de julgamento, enquanto a Resolução 62/2023, de 01/06/2023 (entrará em vigor em 03/07/2023) instituiu a possibilidade de julgamento em plenário virtual, por ora, apenas da admissibilidade das representações.
Para melhor contextualizar o tema, para o leitor menos familiarizado com o processo marítimo, este se inicia com o oferecimento de uma representação, que é uma peça de natureza acusatória, em regra pela Procuradoria Especial da Marinha (PEM) e, excepcionalmente, por terceiros interessados (a representação privada ou de parte, objeto de texto específico desta Coluna1). A representação é incluída em pauta para apreciação de sua admissibilidade, pelo Colegiado do TM (sete juízes). Se recebida, o processo prossegue com a fase probatória e as alegações finais das partes, sendo então incluído em pauta para nova sessão de julgamento, agora para decisão sobre o mérito.
As alterações recentes tratam dos procedimentos específicos a serem seguidos nessas sessões. A Resolução 62, como já dito, teve por objeto a instituição do plenário virtual, para a apreciação da admissibilidade, como dispõe seu art. 1º2. Os parágrafos do mesmo dispositivo tratam da sessão virtual de modo muito semelhante ao já existente em Tribunais judiciais (em especial o Supremo Tribunal Federal), especialmente quanto à inserção de relatório e voto, ao prazo de cinco dias para manifestação dos demais Juízes, e à retirada automática do plenário virtual em caso de “destaque”, isto é, de manifestação de possível divergência, quanto ao voto do Relator, por um dos demais juízes3. O mesmo não ocorre, todavia, no caso de pedido de vista, em que o processo poderá ser devolvido para julgamento no próprio plenário virtual, sem o envio necessário para sessão presencial4.
É digno de nota, ainda, que o julgamento virtual pode ser adotado tanto nas representações da PEM quanto nas oferecidas por parte (representação privada). De fato, parece não se justificar qualquer distinção entre as duas espécies, já que, em ambas, há o exercício da função pública do munus acusatório.
A Resolução 62, portanto, teve por escopo adaptar o processo marítimo ao que dispõe o Código de Processo Civil (CPC) sobre a prática eletrônica de atos processuais, com o consequente ganho de eficiência, celeridade e duração razoável do processo, todos princípios referidos nos consideranda do ato.
Entendo que, de fato, a medida é benéfica, e não traz prejuízos ao direito de defesa. No julgamento da admissibilidade da representação, não há sustentação oral, de modo que a presença dos advogados ocorre apenas para fins de acompanhamento, sem a possibilidade de intervenção. Nada obstante, tempo substancial das sessões é consumido com a leitura integral do relatório, manifestações dos juízes, voto e proclamação do resultado. Passar estas providências para o ambiente virtual pode contribuir para um andamento mais rápido de todos os processos do TM, pois o tempo de cada Juiz é único, e tem que ser dividido entre a participação nas sessões e audiências e a apreciação, em seus gabinetes, dos processos.
Sobre possíveis prejuízos à defesa, como já antecipado, também me parece que não ocorrem. Eventuais questões de fato que mereçam explicação mais detalhada, ou mesmo a apresentação de elementos não-textuais (vídeos, cartas náuticas ou croquis de situação) sempre poderão ser objeto de memoriais e de despachos com os Juízes do Tribunal. E, como os advogados que militam junto ao TM bem sabem, os Juízes recebem os advogados sem dificuldades ou maiores formalidades, sempre com grande cortesia e atenção.
A Resolução 61, por sua vez, revoga o art. 140 do RITPM, ao mesmo tempo em que insere o art. 140-A, dando novo tratamento para os procedimentos nas sessões de julgamento do mérito das representações, isto é, daquelas que decidem, efetivamente pela absolvição (“exculpação”, no vocabulário próprio do processo marítimo) ou pela condenação dos representados, atribuindo-lhes culpa pelo acidente ou fato da navegação.
A principal alteração da Resolução 61 foi a redução do tempo de sustentação oral pelas partes, de 30 (trinta) para 15 (quinze) minutos, com o declarado intuito – explicitado em um dos seus consideranda – de harmonizar esta disposição com o CPC.
Entendo que, embora seja sempre positiva a harmonização dos procedimentos do TM com o processo civil comum, a questão merece apreciação mais detida.
O tempo de 30 minutos para a peroração de cada parte, de fato, pode parecer excessivo para um observador externo. Na verdade, mesmo colegas experientes na advocacia costumam se espantar quando comento sobre esse “longo tempo” que um advogado pode (na verdade, podia) ter a palavra na tribuna da Corte do Mar. Na maioria dos casos, que envolvem acidentes mais corriqueiros, realmente os 15 minutos podem ser suficientes, ou até excessivos.
Todavia, alguns acidentes da navegação são bastante complexos do ponto de vista fático e técnico, especialmente quando envolvem múltiplas causas ou múltiplos agentes envolvidos na operação. Nestes casos, a explicação de cada um destes aspectos pode demandar um tempo maior, mesmo que o relatório tenha se esmerado na sua exposição. O advogado tem a difícil tarefa, nestes casos, de correlacionar – ou dissociar – cada um destes conceitos técnicos com a causalidade do fato que está em julgamento.
Apesar dessa ressalva, entendo que há soluções, relativamente simples, compatíveis com a lei processual. A primeira delas, inspirada na arbitragem, seria a possibilidade de, a requerimento das partes ou por determinação do Juiz relator, de ofício, ser designada uma audiência de exposição do caso, em que os advogados das partes – e eventualmente assistentes técnicos – pudessem explicar, ao relator, estas peculiaridades, inclusive com o uso de recursos de mídia, como vídeos ou apresentações. Obviamente, tal iniciativa deveria observar fielmente a igualdade entre as partes, inclusive quanto à possibilidade técnica e material de participarem desta audiência em condições similares (“paridade de armas”).
Uma segunda possibilidade, inspirada no instituto do negócio jurídico processual (art. 190 do CPC5), seria o acordo entre as partes para que um tempo maior de sustentação oral (20 ou 30 minutos, mas obviamente igual para ambas as partes) fosse admitido, mediante requerimento conjunto e fundamentado ao Juiz relator, que poderia deferi-lo, desde que convencido da fundamentação.
Em conclusão, estas recentes alterações parecem bastante positivas para maior celeridade processual no Tribunal Marítimo, beneficiando os jurisdicionados e advogados que militam junto àquela Corte.
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1 "Representação privada no processo do tribunal marítimo: uma leitura à luz da Constituição". Migalhas Marítimas, 08/12/2022.
2 Art. 1º. As representações da Procuradoria Especial da Marinha (PEM) e as representações de parte poderão ser apreciadas, a critério do Juiz Relator e com a concordância do Juiz Revisor, no plenário virtual, no Sistema Eletrônico de Informações do Tribunal Marítimo (SEI-TM).
3 Art. 1º. (...)
§ 1º. O Juiz Relator inserirá o relatório e o voto no ambiente do plenário virtual e encaminhará os autos ao Juiz Revisor com pedido para ser apreciado em plenário virtual. Concordando com o Juiz Relator, o Juiz Revisor inserirá o seu voto e encaminhará os autos à Secretaria-Geral para inclusão em pauta de plenário virtual.
§ 2º. Os relatórios e os votos inseridos no ambiente do plenário virtual serão disponibilizados no sistema durante a sessão virtual e os demais juízes terão até cinco dias corridos para se manifestarem.
Art. 4º. Não serão apreciadas em sessão do plenário virtual as representações com pedido de destaque feito por qualquer juiz de forma justificada.
Parágrafo único. No caso previsto neste artigo, o Juiz Relator solicitará a retirada do processo da pauta da sessão do plenário virtual e o encaminhará à Secretaria-Geral para inclusão em pauta da sessão presencial.
4 Art. 5º. A apreciação de representação com pedido de vista será suspensa e, a critério do juiz que pediu vista, poderá ser devolvido para prosseguimento em plenário virtual, oportunidade em que os demais juízes poderão manter ou alterar os votos já proferidos.
5 Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.