Migalhas Marítimas

Impactos da inteligência artificial no setor marítimo e portuário

Desde a comunicação via rádio e telégrafo, o desenvolvimento de radares, satélites, GPS, câmeras e sensores, até o reconhecimento de imagem, análise de dados e machine learning, a navegação esteve e ainda está em constante processo de inovação e evolução.

1/6/2023

Os primeiros grandes navegadores da história, como se sabe, guiavam-se nos mares utilizando instrumentos que, embora bastante funcionais e avançados para a época, possuíam as funções mais elementares à atividade da navegação. Bússolas, astrolábios e cartas náuticas, que permitiam uma estimativa da latitude e da direção, muitas vezes aproximada, em mares ainda inexplorados, eram os instrumentos indispensáveis à expansão das rotas comerciais e marítimas.

Os avanços tecnológicos ocorridos especialmente a partir da revolução industrial transformaram drasticamente a relação humana com as embarcações. Desde a comunicação via rádio e telégrafo, o desenvolvimento de radares, satélites, GPS, câmeras e sensores, até o reconhecimento de imagem, análise de dados e machine learning, a navegação esteve e ainda está em constante processo de inovação e evolução.

Nesse contexto, um dos mais surpreendentes avanços nesse campo, assim como em tantos outros, tem sido o desenvolvimento da inteligência artificial ("IA"). Em diversos setores da indústria, a IA vem promovendo alterações nas relações de trabalho e jurídicas. O setor marítimo não é exceção, o que justifica uma breve análise dos avanços da IA nessa área.

Dentre os diversos exemplos que já podem ser citados, possivelmente os projetos de navios autônomos são um dos mais ou o mais impactante exemplo da inteligência artificial aplicada ao setor da navegação, sendo necessário iniciar um debate sobre as repercussões que as novas tecnologias possuem no campo jurídico. Esse tema já foi, inclusive, objeto de artigo anterior nesta coluna1.

Os navios autônomos, em sua maioria ainda em fase de testes, são considerados como potenciais criadores de um novo mercado competitivo no setor de transporte marítimo, em especial de curta distância. Essas embarcações, que podem prescindir inteiramente de tripulação, tem potencial para inaugurar uma nova era da navegação, mais eficiente, tecnológica e com menor impacto ambiental, ao mesmo tempo em que podem reduzir a dependência de outros modais, em especial o rodoviário, mais suscetível a atrasos e mais poluente2.

No momento, cabem mais questionamentos do que respostas. Essa "navegação do futuro", já não tão distante assim, será capaz de otimizar viagens especialmente no que tange aos custos e segurança? A dispensa de tripulação diminuirá significativamente a quantidade de investimentos necessários em mão de obra, recursos esses que poderão ser realocados ao aprimoramento das tecnologias utilizadas na própria embarcação, por exemplo3?

Em relação à segurança, estimativas apontam que mais de 75% dos acidentes com embarcações decorrem de erro humano4, de modo que o emprego de embarcações autônomas, em tese, tenderá a reduzir sensivelmente o custo com seguros, caso a redução de incidentes se torne uma realidade em uma futura indústria de navios com tripulação reduzida ou até mesmo completamente autônomos. Já a dispensa da tripulação pode não ser possível em extensão tão ampla como se imagina, uma vez que, ainda que a navegação seja realizada de forma autônoma, em diversas outras atividades a embarcação ainda requererá a atuação de tripulantes.

Há de se questionar, ainda, se essa nova realidade pode alterar a forma de responsabilização dos agentes envolvidos em um eventual acidente da navegação de uma embarcação sem tripulação, bem como a reparação dos danos causados por algoritmos, e de que forma a regulamentação da Marinha, e a atuação do Tribunal Marítimo, seria adaptada para acompanhar e absorver essas mudanças. As normas atualmente existentes são suficientes ou estão adequadas a essa nova realidade? Novamente, há mais questionamentos do que respostas no momento.

Notadamente, apenas a título de exemplo, pode-se antever a necessidade de desenvolvimento de novas normas ou a revisão, por exemplo, das Normas da Autoridade Marítima Para Inquéritos Administrativos Sobre Acidentes e Fatos da Navegação ("IAFN" – NORMAM 09) e de outras normas que regulam acidentes e fatos da navegação para contemplar essa nova realidade.

Não por acaso, essas preocupações já são alvo de discussão no Poder Legislativo. Em 06.12.2022, o Senado Federal recebeu o relatório final da comissão de juristas constituída para elaboração de proposta de regulação da inteligência artificial no Brasil – um substitutivo aos projetos de lei 5.051/2019, 21/2020 e 872/20215. O texto substituto proposto, ainda sob avaliação, possui considerações interessantes e relevantes ao direito marítimo, a exemplo da classificação de inteligência artificial de alto risco aos sistemas de veículos autônomos (com potencial de gerar riscos à integridade física de pessoas), além de disposições específicas quanto à responsabilidade civil dos fornecedores e operadores de sistema de inteligência artificial que causem dano, com previsão de responsabilidade objetiva para os sistemas de alto risco (e também aos classificados como risco excessivo).  

Essa proposta de legislação brasileira segue em linha com a iniciativa da União Europeia de criar um marco legal aplicável a diversos setores6. Há, todavia, intensa crítica na literatura sobre os desafios enfrentados na aplicação de uma norma geral a setores específicos, detendo cada um suas particularidades, como o comércio marítimo, cujas especificidades passam também por discussões variadas, tais como questões regulatórias locais, coleta e armazenamento de dados, combate a ameaças de cibersegurança7, dentre outras.

Outro aspecto relevante refere-se à infraestrutura dos portos, que precisará evoluir de forma concomitante para estar apta a receber essas embarcações de forma integrada – o conceito de smart ports8.

A tecnologia do setor portuário vem avançando com a introdução de plataformas digitais e com a coordenação de logística portuária para transporte multimodal de carga, podendo evoluir ainda além com a inteligência artificial. Para citar algumas possibilidades, as seguintes tecnologias são atualmente discutidas:

A inteligência artificial, ao que tudo indica, tem um potencial enorme para otimizar as capacidades tanto do setor portuário como marítimo, sendo uma ferramenta capaz de melhorar a eficiência e eficácia dos processos logísticos, decisórios, fiscalizatórios e outros, para todas as partes envolvidas na cadeia de suprimento.

O tema é novo e certamente complexo. É importante, assim, que o setor de navegação esteja a par das discussões e os stakeholders envolvidos, especialmente a Marinha do Brasil, o Tribunal Marítimo e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários, participem do debate público para fomentar estratégias regulatórias aptas a acompanhar os avanços tecnológicos, especialmente da inteligência artificial, no setor de navegação e portuário.

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1 Disponível aqui. Acesso em 30.05.2023.

2 Disponível aqui. Acesso em 29.05.2023

3 Ibid.

4 Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023.

5 Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023.

6 Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023.

7 Chuah, J. C. T. (2022). Forward Planning – Regulation of Artificial Intelligence and Maritime Trade (City Law School Research Paper 2022/04). London, UK: City Law School. Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023.

8 el Makhloufi, A. (2023). AI Application in Transport and Logistics: Opportunities and Challenges. (2023 ed.) CoE City Net Zero, Faculty of Technology, Amsterdam Univeristy of Applied Sciences.

9 Ibid.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.