Migalhas Marítimas

O naufrágio hipotético

Contribuição para uma explicação aos não maritimistas da parte conceitual, de forma direta, da ocorrência de um acidente específico da navegação, para que assim, seja possível entender como acontece, o que acarreta e como é tratado em nossa legislação.

6/4/2023

Diante do convite para contribuir com a nobre coluna Migalhas Marítimas, que manifesto ser leitor ávido de todas as publicações, venho agradecer ao Dr. Sergio Ferrari por proporcionar espaço aos maritimistas, assim como, dedico momento para agradecer aos meus gestores drs. Franklin Barreto e sra. Elaine Nazareth que não poupam esforços para garantir o avanço da advocacia e aos membros da Comissão de Direito Marítimo ao qual presido com muita dedicação.

Honrado, venho apresentar como contribuição para uma explicação aos não maritimistas da parte conceitual, de forma direta, a ocorrência de um acidente específico da navegação, para que assim, seja possível entender como acontece, o que acarreta e como é tratado em nossa legislação.

Como ponto inicial elenco quais eventos a legislação brasileira indica como acidentes da navegação com base na lei 2180/541, temos em seu artigo 14:

Art. 142. Consideram-se acidentes da navegação:

a) naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e alijamento;

b) avaria ou defeito no navio nas suas instalações, que ponha em risco a embarcação, as vidas e fazendas de bordo.

Dentre os mencionados, o acidente da navegação a ser conceituado e exemplificado hoje será o naufrágio, com destaque ao fato de que o naufrágio pode afetar tanto a pequena embarcação quanto a um navio de grande porte, contudo, além dos envolvidos, é muito comum que haja comoção social para tentar entender o que esta acontecendo e o que vai acontecer, pois aos olhos do publico sempre clama atenção a presença e envolvimento da marinha, no caso, com a figura da capitania dos portos e delegacias, que ocorre nos locais de acidente noticiados mesmo nos casos que não tenham a ocorrência de vítimas.

Assim, temos no artigo 14 da lei 2180/543 a inclusão do naufrágio como acidente da navegação que será julgado pelo Tribunal Marítimo, mas é na NORMAN 09 que encontraremos a definição do Naufrágio conceitualmente.

Segundo a NORMAN 094 em seu item 0106, a, 1, alinha I, temos a definição de naufrágio como sendo:

I) naufrágio – afundamento total ou parcial da embarcação por perda de flutuabilidade, decorrente de embarque de água em seus espaços internos devido a adernamento, emborcamento ou alagamento;

Caracterizada a perda da flutuabilidade chegamos ao evento naufrágio, então, veremos a quem compete, a quem afeta e qual o devido processo legal ao julgamento do naufrágio.

Em uma situação hipotética, uma traineira que passava comunicou à capitania dos portos o avistamento de uma embarcação de lazer adernando, assim, buscou-se imediatamente resgatar os tripulantes e passageiros que clamavam por socorro, contudo, nada pode ser feito para evitar o naufrágio da embarcação.

No caso exemplificado temos algo muito comum, que é ocorrência da observação de outras embarcações que podem auxiliar ou as vezes somente buscar socorro via rádio, cabendo providencias à Capitania dos Portos e Delegacias por atribuição dada pela Marinha do Brasil para iniciar processo inquisitório de investigação do acidente da navegação para verificar as razões do ocorrido para que posteriormente o Tribunal Marítimo venha a julgar quais sanções serão aplicadas ou se cabe absolvição.

O direito marítimo no Brasil é regulamentado pela Constituição Federal Brasileira, bem como por uma série de leis e regulamentos nacionais. A legislação Marítima Brasileira, por exemplo, é um quadro legal abrangente que governa todos os aspectos do direito marítimo no país, desde o registro de embarcações e a certificação de marinheiros até a segurança marítima e a proteção ambiental.

A jurisdição marítima do Brasil se estende até 200 milhas náuticas a partir de sua costa, de acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS5). Dentro dessa zona, o Brasil tem direitos exclusivos para explorar os recursos naturais e regular as atividades marítimas que ocorrem.

Eventos de naufrágio podem ser devastadores para qualquer embarcação, tripulação e carga envolvidas. O Brasil, sendo uma das maiores nações marítimas do mundo, com larga extensão de costa, possui um abrangente conjunto de leis em vigor para lidar com eventos de naufrágio que ocorram em suas águas territoriais.

Se uma embarcação afundar em águas territoriais brasileiras, a primeira prioridade sempre será garantir a segurança da tripulação e dos passageiros. A Marinha do Brasil, como autoridade marítima, tem o poder de tomar todas as medidas necessárias para resgatar e ajudar os afetados pelo evento de naufrágio. Uma vez concluída a operação de resgate, o próximo passo é investigar a causa do naufrágio.

No direito brasileiro se prevê dois tipos de responsabilidade em caso de evento de naufrágio, sendo, objetiva e subjetiva mediante apuração de dolo ou culpa. A responsabilidade objetiva é imposta ao proprietário do navio, independentemente de ele ter sido ou não responsável pelo naufrágio. Esse tipo de responsabilidade é limitado ao valor do navio e sua carga no momento do naufrágio. Como é possível verificar no Art. 750 do Código Civil:

Art. 750. A responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele não for encontrado.

A responsabilidade baseada em culpa, por outro lado, é imposta à parte ou partes responsáveis pelo evento de naufrágio. Esse tipo de responsabilidade pode se estender além do valor do navio e sua carga e pode incluir compensação por lesões pessoais, perda de vida e danos ao meio ambiente.

Voltando ao acidente da navegação, no processo inquisitório serão apuradas violações previstas na LESTA6 e RLESTA7 que podem ter dado causa ao naufrágio, como da mesma forma, será aferido se houve poluição causada pelo acidente. Durante esta parte do procedimento poderão ser colhidos depoimentos dos envolvidos, observadores e até mesmo perícia da embarcação por profissionais altamente qualificados. Os procedimentos seguidos pela Capitania dos Portos e Delegacias terão base nas NORMAM-09 em sua última atualização.

O procedimento descrito é nomeado como Inquérito Administrativo sobre Acidentes e Fatos da Navegação (IAFN), que, compete as Delegacias e Capitanias dos portos por atribuição do Art. 33 da lei 2180/548, que define:

Art. 33. Sempre que chegar ao conhecimento de uma capitania de portos qualquer acidente ou fato da navegação será instaurado inquérito.

§ 1º Será competente para o inquérito:

a) a capitania em cuja jurisdição tiver ocorrido o acidente ou fato da navegação;

b) a capitania do primeiro porto de escala ou arribada da embarcação;

c) a capitania do porto de inscrição da embarcação;

d) qualquer outra capitania designada pelo Tribunal.

§ 2º Se qualquer das capitanias a que se referem as alíneas a, b e c, do parágrafo precedente não abrir inquérito dentro de cinco dias contados daquele em que houver tomado conhecimento do acidente ou fato da navegação, a providência será determinada pelo Ministro da Marinha ou pelo Tribunal Marítimo, sendo a decisão deste adotada mediante provocação da Procuradoria, dos interessados ou de qualquer dos juízes.

Conforme determinação da NORMAM em seu item 0209, teremos ao final a elaboração da minuta do Relatório da Investigação de segurança Marítima, onde, em um resumo, por se tratar de documento complexo, será formado relatório que pretende indicar provas obtidas na fase inquisitória.

Logo, é possível indicar que a investigação terá o resultado, mas não significará o final das apurações do naufrágio, pois o procedimento sairá de sua fase inquisitório para o procedimento administrativo no Tribunal Marítimo.

Com procedimento regulado pela Lei 2180/54, teremos, a pedido da Procuradoria Especial da Marinha, a distribuição do procedimento administrativo que poderá culminar no recebimento da denúncia, que no ponto indicado neste artigo, tratar-se-á de apuração das causas de um naufrágio com aplicação de agravantes e atenuantes.

Por ser considerado como acidente gravíssimo da navegação o Tribunal Marítimo abrirá ao denunciado para que exerça ampla defesa e contraditório antes da aplicação das penalidades diante do naufrágio noticiado.

Com Jurisdição que abrange todo território brasileiro, o Tribunal Marítimo será responsável por julgar o naufrágio hipotético que poderá resultar em multas, reparações a vítimas, suspensão de habilitação e cancelamento da habilitação, sem prejuízo de sanções cíveis na esfera do Poder Judiciário.

Cabe salientar que o procedimento no Tribunal Marítimo suspenderá o andamento do processo Judicial até o seu término por força do Art. 313, VII, do CPC, onde vemos:

Art. 313. Suspende-se o processo:

VII - quando se discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos da navegação de competência do Tribunal Marítimo;

Assim, será oportunizada a ampla defesa e produção de provas em exercício do contraditório para após se sentenciar o caso por voto colegiado com 7 magistrados, sendo, a composição definida pelo Art. 2 da lei 2180/54:

Art. 2º O Tribunal Marítimo compor-se-á de sete juízes a saber: (Redação dada pelo decreto-lei 25, de 1966)

a) um Presidente, Oficial-General do Corpo da Armada da ativa ou na inatividade; (Redação dada pela lei 8.391, de 1991)

b) dois Juízes Militares, Oficiais de Marinha, na inatividade; e (Redação dada pela lei 8.391, de 1991)

c) quatro Juízes Civis. (Redação dada pelo decreto-lei 25, de 1966)

Diante da sentença caberá, em fase recursal, a interposição de embargos de nulidade ou infringentes, agravo e embargos de declaração, conforme Art. 105 da lei 2180/54.

Art. 105. Os recursos admitidos são os seguintes:

a) embargos de nulidade ou infringentes;

b) agravo;

c) embargos de declaração.

Ao condutor da embarcação hipotética que naufragou ou dono desta caso o naufrágio tenha ocorrido por problemas de manutenção, quando considerado culpado, ultrapassados os recursos administrativos, poderá recorrer de sua condenação no Poder Judiciário, contudo, deve se considerar que deve ser feita a juntada da sentença dos autos que correram em competência do Tribunal Marítimo, como versa o Art. 19 da lei 2180/54:

Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva. (Redação dada pela lei 5.056, de 1966)

Em conclusão, o tribunal marítimo é um tribunal especializado que desempenha um papel crucial na resolução de disputas legais relacionadas ao direito marítimo. O tribunal tem uma história rica que remonta ao antigo direito marítimo com seus princípios legais que regem o funcionamento do tribunal marítimo derivados de uma base com origem na combinação de direito nacional e internacional.

Finalizada a simplificação do andamento de um naufrágio hipotético, logo, sem a necessidade de preocupação com possível exposição de caso concreto e informações privadas de envolvidos, com limitação das possibilidades, tanto de penalizações indicadas, quanto para opções de andamento, sem necessitar de maiores complexidades, foi permitido dar um panorama do início ao fim de um caso muito comum na esfera marítima para o leitor que inicialmente se pergunta como funciona o Direito Marítimo.

Porém, se faz necessário esclarecer que este andamento é uma mera gota no mar de atribuições do cotidiano do advogado Maritimista, vez que, a matéria legal possui aderência e procedimentos que dariam espaço para mais de uma dezena de artigos, onde, geralmente o profissional cria um nicho e se especializa no tema ou a ele é exigido ser atuante de forma multidisciplinar para ocupar vagas em conglomerados empresariais do setor que precisam de liderança ágil diante do arcabouço legal complexo do mercado brasil

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Lei 9.537, de 11 de dezembro de 1997. Dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional e dá outras providências. 

7 Decreto 2.596, de 18 de maio de 1998 regulamenta a lei 9.537, de 11 de dezembro de 1997, que dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional.

8 Disponível aqui

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.