Migalhas Marítimas

Em busca de rotas para a descarbonização do setor de navegação: os navios à vela modernos e combustíveis alternativos

Para que mais iniciativas como essas dos navios à vela modernos surjam no setor, faz-se necessário o avanço da regulação internacional e nacional, com a criação de obrigações concretas, específicas e mandatórias para a redução da emissão de CO2.

16/3/2023

Navios à vela são embarcações milenares datadas por volta de 1000 a.C. Utilizadas inicialmente pelos fenícios para percorrer o Mediterrâneo, até as grandes navegações e o imperialismo europeu, essas embarcações foram responsáveis por moldar o mundo da forma como conhecemos hoje.

A partir dos avanços tecnológicos, o navio à vapor tomou lugar dos navios à vela e, com advento da Segunda Revolução Industrial, o carvão foi substituído pela utilização de combustíveis fósseis derivados do petróleo, como o bunker, com objetivo de tornar as longas viagens cada vez mais rápidas.

O problema dessa evolução surge, porém, quando os navios passam a ser uma fonte relevante de emissão de dióxido de carbono (CO2). Atualmente, o transporte marítimo é responsável pelo movimento de mais de 90% do comércio internacional e corresponde a 3% da emissão de gases de efeito estufa (GEE), incluindo o CO2, segundo dados da Organização Marítima Internacional (OMI) e da Comissão Europeia. Esses números correspondem aos 50 mil navios mercantes de mais de 150 países em funcionamento ao redor do mundo e, caso nenhuma mudança ocorra, a porcentagem de emissão de poluentes poderá aumentar para 10-13% da emissão de GEE em algumas décadas.

Na atualidade, esses números geram cada vez mais preocupação. Afinal, o meio ambiente há muito deixou de ser um fator acessório ou de menor relevância para se tornar, frequentemente, central em muitos negócios. E o impacto que as emissões de GEE têm no comércio internacional pode afetar negativamente os produtos transportados e a cadeia de consumo em um mundo cada vez mais ligado à abordagem ESG.

A emissão de GEE e a sua redução é pauta atual relevante. No Brasil, o tema é tratado pela lei 12.187/2009, que instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima, que busca, dentre outros objetivos, compatibilizar o desenvolvimento econômico-social com a proteção do sistema climático e reduzir as emissões antrópicas de gases de efeito estufa.

O decreto 8.874/2017, ao seu turno, trata do incentivo ao financiamento de projetos de infraestrutura com benefícios ambientais e sociais, listando como prioritários os projetos de investimentos nos setores de logística e transporte, energia, dentre outros.

Também nessa esteira, o PL 327/2021 prevê a criação de política para regular transição energética no Brasil. Dentre as diretrizes do PL, estão a promoção do uso eficiente da energia por meio de projetos sustentáveis e a mitigação do aquecimento global.

Especificamente sobre a descarbonização no transporte marítimo, o Acordo de Paris abrangeu o tema, visando o atingimento das metas de redução de emissões globais. A questão também é objeto da agenda de 2023 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas – ONU, por meio da promoção de tecnologias de energia limpa e eficiência energética para combater as mudanças climáticas.

No entanto, certo é que o setor de transporte marítimo ainda não tem metas estabelecidas e obrigações concretas para a redução das emissões de GEE, o que não gera demanda suficiente para o desenvolvimento de medidas de mitigação das emissões. Mesmo a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL), que tem como objetivo principal minimizar a poluição do meio ambiente marinho, incluindo a água e o ar, causada pelas atividades dos navios, estabelecendo padrões obrigatórios para o controle da poluição gerada pelo lixo, substâncias perigosas, óleo e outras substâncias nocivas transportadas pelos navios, ainda não traz metas específicas para a redução de emissões de GEE para o setor.

Mais recentemente, em 2021, a Organização Marítima Internacional – IMO aprovou uma emenda ao Anexo VI da Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL) exigindo que os navios reduzam as suas emissões de gases de efeito estufa (MEPC 76). Essas alterações, que entraram em vigor em novembro de 2022, buscam incentivar a melhoria da eficiência energética dos navios e, ao mesmo tempo, obter dados importantes para futuras medidas de redução dos GEE.

Nesse contexto, em um interessante movimento de retorno aos primórdios da navegação, algumas empresas especializadas têm dado início à modernização dos navios à vela como uma possível solução para a redução das emissões de CO2. Essa atualização (ou retorno ao passado) parte da ideia das caravelas, ou seja, utilizar os ventos como fonte motora dos navios, em conjunto com as tecnologias atuais, resultando na redução do consumo de combustíveis fósseis e, consequentemente, da emissão de CO2 no setor de transporte marítimo. A ilustração abaixo de um projeto desses navios é bastante surpreendente:

(Imagem: IWSA)

A corrida em busca do lançamento do primeiro grande navio à vela moderno tem se dado, inicialmente, entre as empresas Veer Voyage, que obteve autorização do American Burreau of Shipping (ABS) para a construção da embarcação no fim de 2022, e Windcoop, que já planeja o início das operações do seu novo navio à vela na rota entre França e Madagascar no ano de 2025.

Há, ainda, um número considerável de outros projetos em andamento. A Wallenius, por exemplo, vem desenvolvendo, desde 2020, o OceanBird, que pretende diminuir as emissões de gás carbônico em até 90%. O projeto da empresa, que ainda está em fase de testes, ganhou o apoio do fundo Horizonte Europa com uma quantia de 9 milhões de euros. A previsão é que o início das operações se dê entre 2026 e 2027.

Por sua vez, a empresa japonesa Mitsui O.S.K. Lines (MOL) pretende utilizar um navio com velas capazes de absorver energia dos ventos fortes para a produção de hidrogênio. Já as empresas Berge Bulk, BAR Technologies e Yara Marine Technologies pretenderiam instalar as chamadas WindWings, velas de asa grande e sólidas, capazes de reduzir as emissões de CO2 em até 30% por meio de uma combinação de propulsão eólica e otimização de rotas, a bordo do graneleiro 210 DWT Berge Olympus.

No cenário brasileiro, existe a expectativa de que o navio mineraleiro Newcastlemax, da Vale, por meio de uma parceria com a MOL, será equipado com um sistema de propulsão eólica. A expectativa é que as velas rotativas reduzam o consumo de combustível e as emissões de CO2 em cerca de 6 a 10%, e que as instalações sejam concluídas no primeiro semestre de 2024. A empresa já havia realizado testes, em 2021, com o navio mineraleiro da categoria Guaibamax e obteve aprovação da Approval in Principle – AIP – no que tange à viabilidade técnica do projeto, com a indicação de que não existem obstáculos significativos à sua realização, sendo possível a implementação deste sistema em outras embarcações, como a Newcastlemax.

Considerando que os navios à vela modernos ainda estão em fase de projeto ou experimental, fica a pergunta se a sua utilização em maior escala no setor de transporte será, de fato, viável. De qualquer forma, os projetos mostram que, algumas empresas do setor marítimo já estão se preocupando com o tema. E o que se espera é que os navios à vela modernos sirvam de inspiração ou sejam o primeiro passo para o desenvolvimento de novas tecnologias para a descarbonização do setor.

Sem dúvida, para que mais iniciativas como essas dos navios à vela modernos surjam no setor, faz-se necessário o avanço da regulação internacional e nacional, com a criação de obrigações concretas, específicas e mandatórias para a redução da emissão de CO2. Apenas assim, será possível criar uma demanda efetiva e, consequentemente, espaço para o desenvolvimento de novas tecnologias em substituição aos navios atuais, movidos a combustível fóssil.

Referências

European Comission. “Emissions-free sailing is full steam ahead for ocean-going shipping”. Disponível aqui.

Full Energy. "Pesquisa aponta soluções para reduzir emissões de CO2 no transporte marítimo". Disponível aqui.

IMO. "International Convention for the Prevention of Pollution from Ships (MARPOL)". Disponível aqui.

IMO. "Prevention of Air Pollution from Ships". Disponível aqui.

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Jornal da USP. "Fontes complementares de energia reduzem emissões de gás carbônico no transporte marítimo". Disponível aqui.

Jornal da USP. "O transporte marítimo e o uso sustentável do oceano". Disponível aqui.

Life of Sailing. "History of Sailing & Boat Types". Disponível aqui.

Marina Industry News. "Navio Berge Bulk vai navegar com WindWings em 2023". Disponível aqui.

Marinha do Brasil. "MARPOL". Disponível aqui.

Notícias de Mineração Brasil. "Vale e armador japonês Mol usarão vento para impulsionar navio mineraleiro". Disponível aqui.

Parlamento Europeu. "Reduzir as emissões dos aviões e navios: as ações da UE explicadas". Disponível aqui.

Portos e Navios. "Os benefícios dos navios de carga à vela para a descarbonização prevista no acordo de Paris". Disponível aqui.

Proinde. "IMO 2020: more about scrubbers in Brazil". Disponível aqui.

RFI. "Transporte marítimo tem longo caminho até zerar as emissões de CO2". Disponível aqui.

Safety 4 Sea. "MOL, Vale agree to install rotor sails on bulk carrier". Disponível aqui.

The Maritime Executive. "Oceanbird Prepares for Full Scale Tests of Rigid Sail" Disponível aqui.

Vale. "Vale avança em projeto pioneiro para a adoção de combustíveis de baixo carbono na navegação". Disponível aqui.

Yara Marine. "Berge Bulk vessel to sail with WindWings in 2023". Disponível aqui.

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.