Em recente ação judicial, um correspondente de Clube de P&I foi incluído no seu polo passivo para responder subsidiariamente pelo pagamento de indenização por danos morais e materiais, bem como verbas trabalhistas, em virtude da morte de um tripulante em consequência do naufrágio da embarcação ocorrido em viagem marítima internacional.
De fato, e como se verá seguir, não há fundamentos jurídicos que justifiquem a inserção de um Clube de P&I no polo passivo de demandas judiciais, cuja origem sejam fatos envolvendo os seus membros, mesmo porque, ao contrário do que ocorre em relação aos contratos de seguro, onde se vislumbra o fenômeno da sub-rogação. Os Clubes de P&I, neste sentido, operam sob o princípio internacionalmente conhecido como “pay to be paid”, isto é, os pagamentos ocorrem por reembolso e em nenhuma hipótese por antecipação e/ou substituição ao membro em referência. Portanto, se o próprio Clube de P&I não está legitimado a figurar no polo passivo nestas hipóteses, não há nem o que se falar em relação aos correspondentes desses clubes.
Assim, outro não poderia ser o resultado neste caso se não o reconhecimento da ausência de responsabilidade subsidiária do correspondente do Clube de P&I, em face da sua natureza jurídica, conforme se observa da transcrição de parte do acórdão proferido pela 7ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região:
“Por fim, observo que a natureza jurídica da ora recorrente, sociedade que tem por objeto a prestação de serviços técnicos, relacionados à navegação marítima (assessoria, consultoria, representação e agenciamento) conforme fls. 353 e ss e não se beneficiou, de nenhuma forma, da força de trabalho do obreiro, o que justificaria a postulada responsabilidade subsidiária.” (processo 1000436-19.2019.5.02.0446 – 7ª Turma – TRT – Relator Des. Gabriel Lopes Coutinho Filho – DEJT 8/2/23)
Esta figura presente no segmento marítimo, deveras importante e muitas vezes pouco conhecida, merece ser analisada pelo seu relevante papel no dia a dia do transporte marítimo, razão pela qual requer uma explanação sobre os limites da sua responsabilidade.
As referidas empresas atuam como correspondentes, o que não pode de forma alguma ser confundido com representação de Clubes de P&I, e esta é uma circunstância de extrema relevância para o correto entendimento da sua atuação. Importante notar, também, que os contratos havidos entre os Clubes de P&I e os seus membros são firmados no exterior, sem qualquer vínculo ou ingerência dos correspondentes espalhados pelo mundo.
Com efeito, a complexidade e a variação das operações relativas ao comércio exterior e ao transporte marítimo implica em muitos riscos, contra os quais as partes buscam proteção. O transportador marítimo, por seu turno, busca a cobertura dos riscos a que está sujeito, participando como membro dos Clubes de P&I (Protection and Indemnity Clubs).
Os primeiros Clubes (Protection Clubs) foram constituídos na Inglaterra na segunda metade do século XIX, quando armadores/proprietários/afretadores de navios, precisavam se proteger em face da responsabilidade por morte de tripulantes dos seus navios e, em particular, dos passageiros, bem como contra a franquia aplicável no risco e colisão. Sua estrutura e organização tinham por base os Mutual Hull Clubs, que existiam desde o início do século XVIII.
Outros clubes, denominados Indemnity Clubs, por seu turno, foram constituídos na década de 70 do século XIX e tinham por objetivo o risco de perda ou danos à carga.
No final do século XIX, houve a fusão das duas espécies de Clubes, surgindo então os Protection and Indemnity Mutual Clubs (P&I Clubs = Clubes de Proteção e Indenização). Desde então, na medida em que a legislação e o direito comum vêm impondo mais responsabilidades aos proprietários, armadores e afretadores de navios, o número de Clubes de P&I aumentou devido à necessidade constante dos seus membros necessitarem de cobertura.
Os Clubes de P&I são, portanto, “associações de mútuo-socorro, sem fins lucrativos, historicamente caracterizada pela autogestão constituídas por armadores ou operadores, e afretadores, denominados "membros", cujo objetivo precípuo consiste na proteção mútua contra prejuízos inerentes à navegação, decorrentes de responsabilidade civil perante terceiros.”1
O vínculo contratual, no entanto, existe somente entre o Clube de P&I e os seus membros, de modo que, somente entre eles existem obrigações. Os correspondentes de Clubes de P&I, por sua vez, são empresas que prestam serviços pontuais de assessoria e consultoria ao mencionados Clubes.
Dentro dos limites da sua atuação e somente se autorizado pelo respectivo Clube de P&I, o correspondente: (i) presta assistência ao Comandante dos navios dos membros do Clube quando, por exemplo, surgem problemas no carregamento ou descarregamento das mercadorias; (ii) providencia peritos e/ou entidades classificadoras de navios para o acompanhamento das operações de carregamento/descarregamento; (iii) solicita atendimento médico/hospitalar aos tripulantes; (iv) fornece orientação em casos de acidentes com a tripulação; (v) providencia advogados, entre outras demandas dos membros dos Clubes de P&I.
A orientação rápida e especializada do correspondente local é realizada em qualquer lugar do mundo e mediante remuneração feita pelo próprio Clube de P&I solicitante, em geral com base na medição das horas trabalhadas no serviço prestado.
A relevância do Correspondente foi muito bem pontuada no estudo realizado por Cabral2:
“Os correspondentes locais dos clubes de P&I são de extrema valia, pois possuem profissionais experientes para dar todo o suporte para os associados desses clubes, uma vez que conhecem os entraves burocráticos e o modus operandi das autoridades, no local em que efetivamente ocorreu um acidente ou sinistro envolvendo um associado do clube. Por estarem próximos à necessidade de seus clientes e convivendo na mesma realidade que eles enfrentam, tem ampla chance de solucionar positivamente os problemas apresentados, o que possivelmente resultará na minimização de prejuízos e possibilitará dessa forma a satisfação de seus associados.”
Os correspondentes são vistos como “solucionadores de problemas”, cujo trabalho é gerenciar a contingência do dia a dia marítimo. Estão estabelecidos nos principais portos do mundo, inclusive no Brasil e atuam como consultores independentes e oferecem assessoria pontual, sem que haja algum vínculo de representação com os Clubes de P&I e nem qualquer tipo de exclusividade.
Em razão de um fato e/ou acidente de navegação, o correspondente assessora e auxilia o Clube de P&I, aconselha acerca das melhores opções para a demanda do membro (proprietários da embarcação, armadores e afretadores), buscando instruir sobre as medidas necessárias para auxiliar na respectiva solução.
Contudo, as eventuais demandas judiciais serão exclusivamente resolvidas pelos Clubes de P&I e seus respectivos membros, razão pela qual a responsabilidade do correspondente está limitada às obrigações assumidas durante a assessoria prestada, o que deve ser feito com diligência e competência.
Assim sendo, indiscutível a ausência vínculo, não devendo o correspondente ser confundido com representante dos Clube de P&I ou dos seus respectivos membros, não podendo, portanto, responder solidariamente e/ou subsidiariamente por quaisquer obrigações destes atores atuantes no transporte marítimo.
O Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu decisão reconhecendo a inequívoca ausência de responsabilidade do correspondente e a consequente ilegitimidade para responder solidariamente pelos compromissos assumidos pelo Clube de P&I e os seus membros, como se vê3:
“(...) Ilegitimidade para a causa da empresa representante da companhia seguradora, P&I Club. Inexistência de responsabilidade solidária. Ausência da apólice de seguros comprovando a relação jurídica com a seguradora. Qualidade de mera intermediária e correspondente comercial dos clubes seguradores para indenização e proteção aos seguros de transporte marítimo (...)”.
No corpo deste venerando aresto restou assentado:
“E a ilegitimidade para a causa da empresa Representações Proinde Ltda. (P&I Club Protect and Indemnity Club) proveio da inexistência da apólice de seguros, apta e necessária para demonstrar a relação jurídica entre a contratante e a seguradora, ou da apresentação do documento comprovando ser integrante da associação de seguradoras.
De modo que a eventual responsabilidade pelo pagamento da indenização, aqui, deve ser eventualmente imputada tão somente à companhia de seguros, na medida em que a referida empresa agiu na qualidade de intermediária e de mero correspondente comercial dos clubes de seguradoras para complementação da indenização e de proteção aos seguros de transporte marítimo, nos casos de frete, detenção e demurrage, não tendo se sub-rogado nos direitos e obrigações do segurado, tampouco havendo imputação ou a demonstração de que a recusa da cobertura pela seguradora decorreu de eventual conduta culposa.”
Nesta mesma direção decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que igualmente declarou que o correspondente de Clube de P&I não responde pelos eventuais danos causados4:
ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. IBAMA. EXPLOSÃO NAVIO VICUÑA. OBRIGAÇÃO DE CONTER OS DANOS AMBIENTAIS. INEXISTÊNCIA. MERO CORRESPONDENTE. CLUBE DE PROTEÇÃO PARA ARMADORES. DANO AMBIENTAL. IRRESPONSABILIDADE. AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL ANULADO.
1. Os Clubes de P&I são associações formadas pelos próprios armadores/operadores e afretadores que têm como escopo o seguro mútuo dos riscos não abrangidos pelas apólices securitárias convencionais. Para fornecer a seus membros orientação rápida e especializada em qualquer lugar do mundo, os clubes costumam utilizar os serviços de correspondentes.
2. O correspondente internacional de Clubes de P&I por ser mero interlocutor, ou no máximo representante do clube, não responde por eventual dano ambiental oriundo da explosão do navio Vicuña.
Em trecho destacado da decisão, não restam dúvidas acerca da atuação do correspondente de Clubes de P&I:
Desse modo, está claro o papel que a empresa do autor exercia para o Clube de P&I Britannia: como qualquer outro correspondente desse Clube, sua obrigação era "fazer contato com o Club Managers na primeira oportunidade para aconselhá-los sobre os problemas que o Membro enfrenta e buscar instruções sobre as medidas necessárias para resolver o problema. A partir deste momento, o problema estará sob o controle da Managers em Londres, com os correspondentes locais agindo no local."
Em outros termos, entendo que o autor provou que sua empresa atuou no caso como correspondente do Clube de P&I Britannia, de modo que não detinha responsabilidade, perante as autoridades brasileiras, pela adoção de medidas tendentes a minimizar os danos ambientais causados pelo vazamento oriundo da explosão do navio Vicuña. Caso tenha falhado em sua atuação e, com isso, aumentado o prejuízo a ser suportado pelo armador do navio ou pelo Clube de P&I, essa é uma questão privada, ou seja, a ser resolvida entre o Clube de P&I e seu correspondente no Porto de Paranaguá.
Vale dizer, eventual falha na atuação da empresa do autor não a transformou em responsável pelos indigitados danos ambientais, eis que ela agiu apenas como correspondente do Clube de P&I Britannia. Os responsáveis pelos danos ambientais continuaram sendo aqueles definidos pelo art. 3º, IV, da lei 6.938/81, dentre os quais não se incluem correspondentes de Clube de P&I.
De outro vértice, penso que as participações do autor nas reuniões que se seguiram à explosão do navio Vicuña também não o tornaram pessoalmente responsável pelo cumprimento de qualquer obrigação nelas definida, pois tais participações foram feitas sempre na condição de correspondente do Clube de P&I Britannia, com o escopo, repise-se, de auxiliar o membro desse Clube envolvido no sinistro: o armador do navio Vicuña. Logo, qualquer descumprimento de medidas definidas pelas entidades de proteção ao meio ambiente, tratadas nas reuniões mencionadas pelo IBAMA, e atribuídas ao armador do navio Vicuña, deveriam ter ensejado a sua própria responsabilização, nunca a do correspondente do Clube de P&I ao qual ele estava filiado, haja vista a impossibilidade de enquadrá-lo na definição legal de poluidor. E se ele não pode ser legalmente tido por poluidor, a ele não se podia carrear qualquer responsabilidade pessoal pelo descumprimento daquelas obrigações.
Em resumo, o auto de infração em tela foi lavrado em face de quem não ostentava qualquer responsabilidade pela violação nele descrita: deixar de adotar medidas necessárias para cessação, contenção e remoção das fontes de poluição por produtos químicos inflamáveis, cf. exigido pelas autoridades ambientais (evento 1, OUT10, p. 1). Sendo assim, outra alternativa não resta senão a declaração de sua nulidade, forte na ausência de lastro na legislação ambiental que possibilitasse a responsabilização de um correspondente do Clube de P&I pela adoção daquelas medidas.
Outrossim, também não prospera a assertiva do IBAMA de que a multa continuaria sendo devida, mesmo que reconhecido que a empresa do autor era apenas correspondente do clube de P&I, porque ela não cumpriu as obrigações que assumira para minorar os danos ambientais causados pelo vazamento. Com efeito, não há qualquer prova de que a empresa do autor tenha assumido, como própria, qualquer obrigação originalmente a cargo do membro (armador do navio Vicuña) do Clube de P&I (Britannia) de que ela era mera correspondente.
Inegável, portanto, que os correspondentes de Clubes de P&I não podem responder por obrigação à qual não estão vinculados, caso contrário estaríamos frente a uma verdadeira extensão indevida dos direitos subjetivos daqueles que buscam a reparação civil e/ou trabalhista.
Desta feita, seja qual for o prisma pelo qual se observe o correspondente, seja na seara Trabalhista, bem como pela responsabilidade civil contratual ou extracontratual, este não responde pelas obrigações assumidas pelo armador, proprietário do navio, afretadores, bem como pelos próprios Clubes de P&I.
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1 Disponível aqui.
2 Cabral, Luiz José dos Santos: Convenções Internacionais sobre Poluição do Mar por Navios e a Posição do Estado Brasileiro / Luiz José dos Santos Cabral – Rio de Janeiro: UFRJ/ COPPE, 2010.
3 Apelação 0120913-85.2012.8.26.0100, rel. CÉSAR PEIXOTO, j. 16/9/15.
4 TRF4 – APL. 50012328120134047008 PR 5001232-81.2013.4.04.7008, Relator: Sergio Renato Tejada Garcia, Data do Julgamento: 15/10/19, Terceira Turma.