1. Considerações Preliminares
O incremento da atividade comercial globalizada, com intensas relações empresariais de caráter internacional, consolidou o direito marítimo como ramo do direito de inegável importância no contexto econômico mundial.
Tratando-se de ramo do direito de alta especialidade, a arbitragem revela-se opção constante dos seus atores, havendo instituições de relevo que atuam em arbitragens institucionais, valendo citar, apenas a título de exemplo, o CBMA, CAM-CCBC, CIESP-FIESP, FGV CÂMARA, CBAM e CBAr.
É por todos sabido que, assim como a justiça estatal, a arbitragem é forma heterocompositiva de resolução de conflitos, na medida em que as partes outorgam a um terceiro o poder de decidir uma determinada controvérsia, já não sendo mais controvertido que ambos os sistemas representam o exercício da jurisdição1.
Na arbitragem, fundada na autonomia privada, às partes é conferido o direito de escolher o árbitro, escolha que é sempre inspirada na confiança2. A confiança depositada na pessoa do árbitro cria a expectativa legítima de um julgamento independente e imparcial.
A imparcialidade do árbitro é princípio da arbitragem3. O árbitro possui o dever legal de agir com imparcialidade e independência4.
A imparcialidade costuma ser vista sob a perspectiva subjetiva, no sentido de que um julgador não está predisposto a decidir em favor ou desfavor de uma parte. Já a independência tende a ser percebida sob uma perspectiva mais objetiva, no sentido de não haver relações ou conexões entre o árbitro e a parte e seus advogados, ou, ainda, entre o árbitro e o objeto da disputa em si5.
É no contexto da garantia do princípio da imparcialidade/independência que surgem as causas de impedimento para ser árbitro, com remessa expressa às causas que se aplicam aos juízes, e o chamado dever de revelação6.
Aqui, penso ser necessária uma breve reflexão sobre as causas de impedimento para ser árbitro, no que, por óbvio, ao mencionar "juízes", a lei de arbitragem somente pode estar a fazer referência às causas de impedimento e suspeição previstas no Código de Processo Civil7.
Ocorre, porém, que, diferentemente do juiz estatal, para quem há vedação expressa para o exercício de outra função, salvo o magistério, o árbitro é escolhido apenas para a missão definida na convenção de arbitragem, no que permanece, sem vedação, a atuar no mercado empresarial, com conexões que são próprias desse mundo, a exigir-se um olhar sob essa perspectiva para as causas de impedimento e suspeição do juízes elencadas no Código de Processo Civil.
A abstração dos conceitos de imparcialidade e independência, a multiplicidade de interpretações possíveis para ambos, exige que se busque um mínimo de concretude, o que a figura do chamado "observado razoável", aquele que possui conhecimento do fato e das relações do mercado, representa a solução viável para resolver controvérsias sobre a independência/imparcialidade do árbitro.
A indagação a ser feita é a seguinte: O que a figura do "observador razoável" interpretaria a partir de um fato alegadamente comprometedor da imparcialidade/ independência do árbitro?
Portanto, é possível dizer que a interpretação das circunstâncias que podem dar ensejo a perda da imparcialidade do árbitro deve ser feita de acordo com o que comumente se espera do comportamento de agentes de um mercado regulado de julgadores, que são escolhidos por suas características e crenças pessoais, mas que, ao receberem um caso para julgamento, não podem estar fechados a serem convencidos e persuadidos pelos argumentos de qualquer das partes ou desconsiderá-los ab initio8.
É justamente visando a concretude dos conceitos indeterminados de imparcialidade e independência que a maioria das câmaras de arbitragem estabelecem standards direcionados aos árbitros, seja por meio de listas de fatos, seja por meio de questionários, em ambos casos sobre possíveis situações reveladoras de eventual comprometimento da imparcialidade/independência.
2. Interação entre jurisdição arbitral e estatal
Dito isso, no prosseguimento do raciocínio, convém relevar que jurisdição estatal e arbitral constituem métodos complementares de resolução de conflitos, não há entre eles qualquer antinomia ou hierarquia.
Há, pois, entre as jurisdições arbitral e estatal, interação no sentido de influência mútua de organismos inter-relacionados, com hipóteses que são de cooperação e outras que são de intervenção, justificando para cada uma delas uma interpretação conforme a sua respectiva natureza.
É preciso deixar claro que cooperação e intervenção não são a mesma coisa.
Um exemplo de cooperação entre as jurisdições é o das chamadas medidas cautelares e de urgência, tratadas nos Artigos 22-A e 22-B, da Lei de Arbitragem9.
Nesses casos, antes de instituída a arbitragem e não havendo disponibilidade de árbitro próprio para esse fim nas arbitragens reguladas, é possível recorrer ao Poder Judiciário para concessão de uma medida cautelar ou de urgência, que atuará em nítida cooperação com a jurisdição arbitral, na medida em que a decisão do juiz estatal poderá ser revista pelo árbitro.
A Carta Arbitral é outro exemplo de cooperação.10
Aqui, na cooperação, há apenas um auxílio do juiz estatal, com absoluto respeito ao que decidido pelo árbitro. Não existe um ato de imposição.
3. Ação Anulatória
Por outro lado, no que interessa aos limites deste artigo, no campo do regime da intervenção, está a ação anulatória da decisão arbitral.
Sobre esse ponto, ao discorrer sobre o cumprimento voluntário da decisão arbitral, o que considera o regime de normalidade, Flávio Luiz Yarshell afirma que o não cumprimento está no campo da excepcionalidade, pois consiste na resistência ao comando contido na decisão, o que se traduz em alguma forma de impugnação, total ou parcial do decidido. É nesse contexto, portanto, que se encontra a assim denominada ação anulatória da decisão arbitral11.
É conveniente ressaltar que a jurisdição arbitral, fundada na autonomia privada, a permitir a escolha do julgador e do próprio procedimento, pressupõe a legitima expectativa do cumprimento voluntário da decisão arbitral pelas partes, na medida em que, considerado nível de influência que elas exercem, estejam prontas para aceitar o seu resultado e lhe dar o devido cumprimento.
Mas, como diz o dito popular, "nem tudo são flores".
A ação anulatória da decisão arbitral está tratada no artigo 33 da Lei de Arbitragem, com as hipóteses de nulidade listadas no artigo 32, da mesma Lei12.
Diferentemente do regime de cooperação, no regime de intervenção próprio da ação anulatória, não há apenas um auxílio do juiz estatal, mas verdadeira imposição ao procedimento arbitral, revelando a sua evidente natureza excepcional.
É sabido que na arbitragem não há revisão do mérito da decisão pelo poder judiciário, o que evidencia a ideia de definitividade da decisão arbitral e o respeito da vontade soberana do árbitro no tocante ao decidido.
Não há, portanto, revisão da decisão arbitral por erro de julgamento.
Parece-nos, portanto, que a ratio da lei é no sentido de afastar intervenções do poder judiciário quanto ao decidido pelo árbitro, reveladoras de atos de imposição estatal em jurisdição privada, conferindo importância ao seu cumprimento espontâneo pelas partes, estabelecendo a excepcionalidade da sua impugnação por meio da ação anulatória.
Em outras palavras, é possível afirmar que, nas hipóteses de intervenção, a atuação do juiz estatal haverá de ser comedida e atenta à natureza excepcional da sua ação intervencionista no procedimento arbitral. O juiz estatal não deve sucumbir à tentação de, por meio da ação anulatória, pretender, de forma indireta, a revisão do mérito da decisão arbitral, a pretexto de sua convicção subjetiva quanto ao erro ou injustiça do que decidido.
4. Anulação da decisão arbitral por violação do dever de revelação
É nesse contexto de excepcionalidade, decorrente de ato de intervenção da justiça estatal na arbitragem, que deve ser analisada a problemática da anulação da decisão arbitral por violação do dever de revelação.
A ação anulatória, fundada na violação do dever de revelação, está contida no inciso II, do artigo 32, da Lei de Arbitragem, ao prescrever como causa da anulação a decisão pronunciada por "quem não podia ser árbitro".
O dever de revelação é imposição legal ao árbitro, conforme disposto no artigo 14, §1º, da Lei de Arbitragem13.
Segundo Ricardo Dalmaso Marques, o dever de revelação é o dever do escolhido árbitro, devido logo após a sua indicação e durante todo o processo, de revelar fatos que, provavelmente desconhecidos ou mesmo oculto às partes, podem comprometer sua atuação como julgador privado naquele específico caso14.
É conhecido o adágio "a arbitragem vale o que vale o árbitro".
É dever, pois, do árbitro, durante todo o procedimento arbitral, revelar fatos capazes de afetar a independência e imparcialidade do seu julgamento, gerando nas partes uma dúvida razoável sobre sua isenção. O dever de revelação é, portanto, mecanismo objetivo de garantia da verificação dos atributos da independência e imparcialidade do árbitro.
Importante o destaque quanto à expressão “dúvida justificada” contida na lei, a indicar que não é qualquer fato, revelado ou não, que compromete a imparcialidade/independência do árbitro, mas somente aqueles que possam gerar no espírito das partes uma dúvida relevante quanto ao comprometimento da sua independência/imparcialidade no ato de julgar.
Assim, repito, não é qualquer fato, revelado ou não pelo árbitro, que é capaz de ensejar a quebra da confiança15 na relação parte/árbitro, mas somente aquele tido por relevante e com nexo de causalidade lógico com o ato de julgar.
Exige-se, no caso concreto, uma conexão direta entre o fato e o julgamento.
A subjetividade do conceito legal (dúvida justificada) impõe que se o concretize, no que surge como indispensável o teste por meio do "observador razoável", implementando-se consulta hipotética a ser respondida por quem, não integrante da arbitragem, tem atuação e conhecimento nesse ramo, capaz de indicar se existe ou não dúvida razoável capaz de conduzir à quebra de isenção.
Há, na visão de Gilberto Giusti, uma legítima preocupação com o rigorismo da interpretação dada por alguns magistrados a esse dispositivo, a ponto de considerar a revelação do árbitro como um dever absoluto cuja violação restaria configurada pela posterior constatação de um fato, independentemente de sua relevância intrínseca e/ou de seu impacto na resolução da disputa, que poderia dar ensejo a dúvida sobre sua imparcialidade e independência16.
Por essa razão, no momento de apreciação pelo juiz estatal da ação anulatória proposta, o que está em análise não é propriamente o fato não revelado, mas a sua influência na imparcialidade/independência por ocasião do julgamento do árbitro, a permitir a conclusão no sentido de que somente se deve anular a decisão arbitral se o fato não revelado tiver conexão imediata e direta com o julgamento, revelando parcialidade ou falta de independência.
Em outras palavras, não há anulação automática da decisão arbitral por violação do dever de revelação.
E, nesse ponto, voltamos ao início, para reafirmar que, nas hipóteses de intervenção estatal na arbitragem, como é a hipótese da ação anulatória, a atuação do juiz haverá de ser consentânea, primeiro, com a sua natureza excepcional, e, segundo, com a ideia de que a violação do dever de revelação não deve conduzir automaticamente à anulação da decisão arbitral, senão quanto o fato não revelado houver influenciado de forma direta o julgamento, sendo capaz de, a partir do teste do observador razoável, comprometer a imparcialidade/independência.
Somente a consciência de uma necessária convivência harmônica entre as jurisdições arbitral e estatal conduzirá ao fortalecimento de ambas, respeitados os legítimos espaços de atuação, permitindo às partes, segundo suas próprias conveniências, a opção por uma delas na solução dos seus conflitos.
Ao final, releva repetir, que o direito marítimo e suas ramificações estão a exigir soluções especializadas em prol da segurança jurídica. Judiciário e Arbitragem poderão, juntos, consolidar o Brasil em destaque no cenário do direito internacional, fomentando o crescimento econômico.
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1 Veja-se, a respeito, o disposto nos Artigos 18 e 31, da Lei de Arbitragem e o Artigo 515, inciso VII, do Código de Processo Civil.
2 Art. 13. Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes.
3 Art. 21...§ 2º Serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento.
4 § 6º No desempenho de sua função, o árbitro deverá proceder com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição.
5 LAMAS, Natália Mizrahi, Introdução e Princípios Aplicáveis à Arbitragem, Curso de Arbitragem, 2018, Ed. Thomson Reuters Brasil.
6 Art. 14. Estão impedidos de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes, aplicando-se lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil.§ 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência.
7 Ver artigos 144 e 145 do Código de Processo Civil.
8 ELIAS, Carlos, O Árbitro, Curso de Arbitragem, 2018, Ed. Thomson Reuters Brasil.
9 Art. 22-A. Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência. Parágrafo único. Cessa a eficácia da medida cautelar ou de urgência se a parte interessada não requerer a instituição da arbitragem no prazo de 30 (trinta) dias, contado da data de efetivação da respectiva decisão. Art. 22-B. Instituída a arbitragem, caberá aos árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário. Parágrafo único. Estando já instituída a arbitragem, a medida cautelar ou de urgência será requerida diretamente aos árbitros.
10 Art. 22-C. O árbitro ou o tribunal arbitral poderá expedir carta arbitral para que o órgão jurisdicional nacional pratique ou determine o cumprimento, na área de sua competência territorial, de ato solicitado pelo árbitro.
11 Yarshell, Flávio Luiz, Ação Anulatória, Curso de Arbitragem, 2018, Ed. Thomson Reuters Brasil.
12 Art. 33. A parte interessada poderá pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a declaração de nulidade da sentença arbitral, nos casos previstos nesta lei. § 1o A demanda para a declaração de nulidade da sentença arbitral, parcial ou final, seguirá as regras do procedimento comum, previstas na lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), e deverá ser proposta no prazo de até 90 (noventa) dias após o recebimento da notificação da respectiva sentença, parcial ou final, ou da decisão do pedido de esclarecimentos.§ 2o A sentença que julgar procedente o pedido declarará a nulidade da sentença arbitral, nos casos do art. 32, e determinará, se for o caso, que o árbitro ou o tribunal profira nova sentença arbitral. § 3o A decretação da nulidade da sentença arbitral também poderá ser requerida na impugnação ao cumprimento da sentença, nos termos dos arts. 525 e seguintes do Código de Processo Civil, se houver execução judicial. Art. 32. É nula a sentença arbitral se: I - for nula a convenção de arbitragem; II - emanou de quem não podia ser árbitro; III - não contiver os requisitos do art. 26 desta Lei; IV - for proferida fora dos limites da convenção de arbitragem; VI - comprovado que foi proferida por prevaricação, concussão ou corrupção passiva; VII - proferida fora do prazo, respeitado o disposto no art. 12, inciso III, desta lei; e VIII - forem desrespeitados os princípios de que trata o art. 21, § 2º, desta lei.
13 Art. 14. § 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência.
14 MARQUES, Ricardo Dalmaso. O Dever de Revelação do Árbitro. São Paulo: Almedina, 2018.
15 Art. 13 – Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha confiança da parte.
16 GIUSTI, Gilberto. 25 Anos da Lei de Arbitragem, Anulação e outras intervenções judiciais na arbitragem. 2021. Revista dos Tribunais.