Migalhas Marítimas

Desafios regulatórios no descomissionamento de instalações offshore

O descomissionamento offshore é uma atividade que apresenta muito potencial para fomentar a economia no país, sendo uma opção eficiente para o desmantelamento de embarcações e plataformas do ramo do O&G.

2/2/2023

“Descomissionamento” é uma palavra que tem ganhado relevância nos últimos anos, sobretudo nos setores Marítimo e de Óleo e Gás (O&G), por representar uma alternativa viável e geralmente eficiente para a desmobilização de megaestruturas produtivas localizadas no mar.1

Tratando-se inicialmente da sua etimologia, a palavra descomissionamento vem da junção do prefixo negativo des e do verbo comissionar, do francês antigo, commission, o qual, por sua vez, advém do latim commissiõ, que significa enviar em conjunto/juntar. Em resumo, o termo “descomissionamento” traz a ideia de desmantelamento ou desativação de alguma coisa.

No setor de O&G, de acordo com a resolução 817, de 24 de abril de 2020, da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP (“RANP 817/20”), que trata do descomissionamento de instalações de exploração e produção de petróleo e gás natural, a expressão é definida como o “conjunto de atividades associadas à interrupção definitiva da operação das instalações, ao abandono permanente e arrasamento de poços, à remoção de instalações, à destinação adequada de materiais, resíduos e rejeitos e à recuperação ambiental da área.” Assim, percebe-se uma relação com o sentido literal da palavra no que tange à (des)atribuição de uma função.

Com efeito, o descomissionamento de plataformas de petróleo é uma operação realizada ao final da vida útil de tais infraestruturas – quando se diz que atingiram sua “fase de maturidade” – e que consiste no processo de retirada e destinação final das instalações, até então, utilizadas para a exploração e a produção de petróleo. Também é possível que haja o descomissionamento de embarcações empregadas no setor de O&G, hipótese na qual, igualmente, deverá haver um cuidado com o desmantelamento do navio.

A complexidade da operação reside, justamente, quando tratamos do destino que será dado à estrutura offshore que, agora, não cumpre mais a sua função. Caso recente sobre esse tema, que ilustra a questão, foi o da embarcação São Luiz, que colidiu com a Ponte Rio-Niterói, no Rio de Janeiro – assunto sobre o qual tratamos na coluna de 1º de dezembro de 2022. Com o acidente, cresceram os alertas a respeito de navios abandonados, seja pelos perigos e danos que a colisão de tais estruturas pode gerar, de modo similar ou até mais grave do que o ocorrido na Ponte Rio-Niterói, seja pelos potenciais danos ambientais que o descarte de tais instalações pode acarretar, considerando a significativa quantidade de materiais perigosos que compõe tais estruturas e o risco de derramamento de óleo.

Assim, se corretamente executado, o descomissionamento surge como uma possível alternativa a mitigar e até a evitar danos causados pela desativação de tais embarcações e plataformas offshore de petróleo. O processo completo de descomissionamento engloba desde a identificação das embarcações, seguida da verificação das condições nas quais estas se encontram, para compreender quais materiais constituem essas estruturas, e, assim, ser possível realizar a sua reciclagem e reutilização, garantindo que o ambiente marinho possa voltar à condição que se encontrava antes da plataforma ou embarcação se instalar no local.

Essa operação de descomissionamento pode ser realizada de três maneiras distintas: por remoção total da estrutura, remoção parcial ou tombamento. No primeiro caso, a plataforma/embarcação é fracionada em partes, de modo a facilitar seu transporte e destinação final. Aqui, é comum o uso de navios heavy-lift e platform supply vessel (PSV). Já no segundo caso, a plataforma/embarcação é desmobilizada parcialmente, de modo que partes de suas estruturas formem ecossistemas subaquáticos – como os ditos “corais-sol”, espécie de coral exótico que, se reproduzido em larga escala, causa sérios impactos a comunidades marinhas nativas. Por fim, no tombamento, modalidade de descomissionamento similar à remoção parcial, a totalidade da plataforma/embarcação é afundada no local, observando a existência de uma coluna d’água livre. Aqui, também podem ser utilizados navios rebocadores como força extra para o tombamento.

Como visto, a logística por trás do descomissionamento também aponta para sinergias entre esta operação e o mercado de apoio marítimo e outras modalidades de navegação que se façam necessárias para essas operações. Na prática, as operadoras têm procurado, com alguma frequência, PSVs, heavy lifts e rebocadores para auxílio nesses procedimentos.

Contudo, nada obstante os potenciais do descomissionamento para a economia nacional (conforme informado pela Marinha, somente em 2020, havia 80 plataformas de petróleo fora de operação), a regulamentação da atividade ainda é um impasse no país. Não há, no Brasil, uma legislação uniformizada, organizada e clara sobre o tema, principalmente do ponto de vista ambiental, fazendo com que a regulação do assunto fique restrita a parcas normas infralegais. É o que se verá resumidamente a seguir.

Primeiramente, a responsabilidade por essa regulamentação, em tese, é compartilhada entre ANP, IBAMA e Marinha – autoridades que devem fiscalizar o processo de descomissionamento. Contudo, até o momento, apenas a ANP possui resoluções específicas para tratar do assunto. Dessa forma, o cenário atual é de insegurança jurídica no que diz respeito ao regime jurídico do descomissionamento, sendo certo que as empresas operadoras devem ficar atentas às exigências emanadas por todas as três autoridades mencionadas, mesmo aquelas exigências que representem apenas diretrizes gerais do órgão.

A RANP 817/20 é, hoje, a principal norma que regulamenta o descomissionamento no país, dispondo acerca das exigências que precisam ser observadas, sobretudo no que diz respeito à apresentação de documentos e estudos específicos, submissão de relatórios, atendimento aos prazos estipulados e cumprimento de requisitos. A título de exemplo, no Anexo I da resolução os interessados encontrarão o “Regulamento Técnico de Descomissionamento de Instalações de Exploração e de Produção”, altamente detalhado e interdisciplinar que dispõe sobre diversos requisitos que precisam ser observados, por exemplo, por profissionais da área ambiental.

Nos termos da referida resolução, para que o concessionário (ou contratado, dependendo do regime de contratação) possa dar início ao descomissionamento, ele deverá antes explorar todas as opções econômicas e ambientalmente viáveis de desenvolvimento do projeto para maximizar a recuperação dos reservatórios e evitar o descomissionamento prematuro das instalações de produção. Nesse sentido, cabe notar que os descomissionamentos que levarem à interrupção prematura da produção de uma jazida ou que prejudicarem a sua recuperação só serão permitidos com a devolução da área ou com a apresentação de outras soluções de desenvolvimento que substituam as instalações de produção a serem descomissionadas.

Igualmente importante é a apresentação de certos documentos perante a ANP, absolutamente necessários para o início do descomissionamento, como (i) os Planos de Descomissionamento de Instalações (PDI), tanto o Executivo quanto o Conceitual, ambos sujeitos à aprovação da Agência e que devem conter informações, projetos e estudos necessários ao planejamento e à execução do descomissionamento das instalações; (ii) um Estudo de Justificativas para o Descomissionamento (EJD), que deverá conter a descrição da área a ser devolvida considerando aspectos de reservatório, poços e instalações, acompanhado de justificativas sobre a decisão pelo descomissionamento de instalações; e (iii) um Relatório de Descomissionamento de Instalações (RDI), que descreve todas as atividades executadas durante o descomissionamento de instalações. Nos anexos à Resolução os interessados poderão encontrar roteiros para a elaboração dos documentos acima referidos, através de um passo-a-passo bem detalhado.

Também é válida a menção aos processos de cessão de ativos de Exploração e Produção, em que a regulamentação também estabelece que as partes deverão acordar quais instalações serão descomissionadas pelo cedente e quais serão aproveitadas pelo cessionário. Assim, no caso de já existir um PDI aprovado, ao solicitar a aprovação da cessão, a parte também deverá submeter à ANP nova versão do PDI com atualizações.

Além da RANP 817/20, a ANP também inovou por meio da publicação da resolução 854, de 27 de setembro de 2021 (“RANP 854/21”), que regulamenta os procedimentos para apresentação de garantias financeiras que devem assegurar os recursos financeiros para o descomissionamento das instalações. A RANP 854/21 complementa a regulamentação do assunto, uma vez que traz maior previsibilidade e segurança jurídica para um aspecto sensível como o das garantias e sua execução, contribuindo com o estabelecimento das modalidades, prazos e condições em que as garantias de descomissionamento deverão ser apresentadas à ANP, nos termos da referida resolução.

Com o prazo para que as petroleiras contratem certificações independentes para verificar previsão do custo de descomissionamento de instalações terminando em junho de 2023, a previsão, segundo dados da ANP, é que os trabalhos de descomissionamento previstos para acontecer esse ano no país devem receber investimentos vultosos, na ordem de R$ 9,8 bilhões. Para 2024, o valor previsto seria menor, de R$ 8,1 bilhões, mas segundo previsões da agência deve aumentar novamente em 2025, quando alcançará cerca de R$ 10,2 bilhões, e em 2026, quando podem chegar a R$ 17,4 bilhões. Além disso, até janeiro de 2023, quase 80% dos planos apresentados com atividade prevista até 2026 já foram aprovados pela ANP, segundo reportagem do Valor Econômico.

Por fim, vale ainda destacar que, de acordo com a orientação do IBAMA, é necessária uma licença ambiental (“Licença de Operação”), a qual só é obtida depois de previamente entregue, pela empresa operadora, o chamado “projeto de desativação”, que é um dos projetos que compõem o Estudo de Impacto Ambiental (“EIA”). Tal projeto, como o nome sugere, compreende a avaliação de desmantelamento da estrutura, considerando, dentre outros, a sua remoção ou abandono no mar.  

Contudo, essa é uma exigência que não encontra previsão legal ou normativa, constando tão somente da informação técnica 3/19 COPROD/CGMAC/DILIC do órgão. Ademais, o referido projeto de desativação tem conteúdo e formato que remetem, justamente, à resolução da ANP sobre descomissionamento, reforçando a carência de uma regulação interinstitucional sobre o assunto.

O documento do IBAMA também menciona a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), instituída através da lei 6.938/81, mas que fornece apenas diretrizes gerais para “[...] a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana [...]” (art. 2º).

Assim, o aspecto ambiental da operação, que deveria ser merecedor de maior destaque, acaba sendo o mais afetado pela insegurança jurídica mencionada, em virtude da ausência de uma norma específica do IBAMA sobre o tema.

Já no âmbito da Marinha, por exemplo, as bases legais utilizadas estão inseridas nas diversas normas que regem as atribuições do órgão. A Diretoria de Portos e Costa (DPC), responsável por autorizar os projetos de descomissionamento offshore, se pauta, sobretudo, nas regras gerais estabelecidas pela Organização Marítima Internacional (IMO, em inglês) e as Normas da Autoridade Marítima (NORMAM).

Merece destaque a NORMAN16 11/DPC, que estabelece que, uma vez a instalação sendo retirada do campo de petróleo e colocada em deck seco, e o processo de descomissionamento iniciado, a Autoridade Marítima passaria a considerá-la como uma obra.  A mudança em classificação poderá influenciar na competência do Tribunal Marítimo, por exemplo, já que de acordo com a lei 2.180/54, o Tribunal Marítimo tem competência para julgar apenas acidentes e fatos da navegação.

Além disso, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar também fornece bases para a atuação da DPC, em especial, em seu art. 60, segundo o qual, a fim de garantir a segurança da navegação, as instalações ou estruturas desativadas devem preferencialmente ser retiradas do mar, mas para os casos de estruturas que não tenham sido removidas completamente (ilhas artificiais e outras estruturas), desde que justificada a inviabilidade técnica deste processo, estas deverão ser formalmente sinalizadas, dando assim publicidade de sua localização, dimensão e profundidade – sinalização esta que deverá ser direcionada à Marinha.

Nesse contexto, caminhando no sentido de resolver a insegurança jurídica que permeia o tema, o Congresso Nacional estuda a possibilidade de agregar a aprimorar todas as exigências sobre o assunto em uma única norma que sirva de marco regulatório para o descomissionamento. Tramita atualmente na Câmara dos Deputados o projeto de lei 1.584/21, que tem com o objetivo de regulamentar as regras para o desmonte e a reciclagem de unidades e instalações removidas dos campos de petróleo.

O texto define as responsabilidades dos gestores da reciclagem e do Poder Público, além de também dispor sobre os instrumentos econômicos aplicáveis à espécie.  Por exemplo, para preparar uma embarcação para envio à reciclagem, o responsável deverá fornecer ao operador de estaleiro de reciclagem todas as informações necessárias para a elaboração do plano de reciclagem e notificar, por escrito, a Marinha sobre a intenção de reciclar a embarcação em determinado estaleiro.

Com base em todo exposto, o que se percebe é que o tema do descomissionamento offshore enfrenta alguns desafios regulatórios no Brasil, sobretudo no que diz respeito (i) às fragilidades de coordenação interinstitucional entre ANP, IBAMA e Marinha e, mais especificamente, (ii) à insegurança jurídica relativa às análises ambientais que subsidiam a autorização do processo de descomissionamento. Até mesmo pelos montantes envolvidos, é necessária e valiosa a atuação dos entes anteriormente citados e sua contribuição para trazer maior segurança jurídica para esse tema no Brasil, contribuindo para a atração de investimentos em serviços atrelados à desativação dessas instalações.

O descomissionamento offshore é uma atividade que apresenta muito potencial para fomentar a economia no país, sendo uma opção eficiente para o desmantelamento de embarcações e plataformas do ramo do O&G, além de também movimentar outros setores, como o mercado de apoio marítimo e outras embarcações. Assim, a centralização e elucidação das exigências sobre a operação em uma única norma será muito bem-vinda em um cenário no qual várias instalações, já na iminência de atingirem sua fase de maturidade, aguardam o procedimento para pôr fim à sua estrutura. Prosseguiremos acompanhando essa evolução, tão necessária para o setor marítimo e de óleo e gás.

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1 O tema do descomissionamento já foi abordado nessa Coluna anteriormente, em artigo publicado em 19/8/21, por Maria Carolina França, disponível aqui.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.