Migalhas Marítimas

O caso Baden e a criação do Tribunal Marítimo brasileiro

Em um breve deslinde do Caso Baden, o fato ocorreu em 24 de outubro de 1930, quando o navio alemão deixava o porto da cidade do Rio de Janeiro.

19/1/2023

Em 1808, o Príncipe Regente de Portugal, D. João VI, aportou em Salvador/BA, junto com a família real portuguesa. Neste mesmo ano, D. João VI exarou por meio de Carta Régia a abertura dos portos brasileiros às nações amigas. Assim, os portos brasileiros ficaram desimpedidos de comercializar com outras nações além de Portugal. E em 1850, o Código Comercial promulgado, deixa claro em alguns de seus dispositivos, o interesse do legislador em estimular a vinda de embarcações estrangeiras ao Brasil, incentivando o comércio internacional. Mesmo diante do crescimento estarrecedor do tráfego marítimo, a criação do Tribunal Marítimo Brasileiro ocorreu somente no século seguinte, após o trágico acontecimento na saída do navio alemão, “BADEN”, do porto do Rio de Janeiro, em 1930, o qual serviu como elemento crucial às autoridades brasileiras sobre a necessidade de se criar Cortes Marítimas especializadas no país.

Em um breve deslinde do Caso Baden, o fato ocorreu em 24 de outubro de 1930, quando o navio alemão deixava o porto da cidade do Rio de Janeiro. O incidente se deu quando, ao passar entre o Pão de Açúcar e a Fortaleza de Santa Cruz, o comandante da embarcação não teria obedecido a sinalização específica da autoridade Brasileira que visava impedir a saída da embarcação sem a licença necessária. A Fortaleza de Santa Cruz, em tentativa de alerta à embarcação quanto ao impedimento de saída, lançou um tiro de advertência nas águas próximas à embarcação. Diante da inércia do comandante, foi realizado um segundo tiro, seguido de um terceiro tiro de aviso. O comandante ignorou os três avisos e, com isso, o Forte do Vigia (atual Fortaleza Duque de Caxias), situado na Ponta do Leme, abriu fogo contra o navio alemão, deixando 22 vítimas fatais, entre 55 feridos.

Segundo Matusalém Pimenta1, diante da tragédia ocorrida, a situação diplomática do Brasil com a Alemanha, bem como com a Espanha – visto que a embarcação possuía passageiros espanhóis – ficou prejudicada. Assim, tanto a Alemanha quanto a Espanha pressionaram o Brasil para que realizasse uma averiguação rápida e precisa, visando identificar os responsáveis pelo ocorrido. Ocorre que, em razão do Brasil não possuir uma corte marítima à época dos fatos, foi elaborado apenas um inquérito administrativo, sem auferir decisão acerca do acidente. Acabou ficando a cargo do Tribunal Marítimo Alemão, situado em Hamburgo, país de bandeira da embarcação, julgar e processar o feito.

Em 1931, ocorreu o julgamento do caso Baden no Tribunal Marítimo Alemão, que decidiu que parte da responsabilidade do incidente deveria ser atribuída à Fortaleza de Santa Cruz, por supostamente não ter feito o uso da sinalização internacional, provocando possível confusão. Acusou também o Forte do Vigia por ter atirado diretamente contra o navio ao invés de proceder disparos de advertência a uma distância de 200 metros da embarcação. Posteriormente, o Tribunal repreendeu o Comandante que não tomou as devidas precauções ao deixar o porto e não observou o sinal recebido da Fortaleza de Santa Cruz.

Devido ao ocorrido e diante da necessidade de que o Brasil não permanecesse à mercê de decisões de órgãos estrangeiros, em 1931 foi apresentado um anteprojeto de lei que propunha a criação de seis tribunais marítimos, sendo um em Belém (PA), um em Recife (PE), um na Bahia, outro no Distrito Federal (RJ), em Santos (SP) e, por fim, no Rio Grande do Sul (RS). Um mês depois, com o intuito de o Brasil poder realizar a avaliação das causas e circunstâncias dos acidentes da navegação de embarcações nacionais ou embarcações estrangeiras em águas nacionais, foi publicado o Decreto nº 20.829, o qual criou a Diretoria de Marinha Mercante e instituiu em seu artigo 5º a criação dos seis Tribunais Marítimos Administrativos, com função administrativa e judiciária, sob jurisdição do Ministério da Marinha, vinculados à Diretoria da Marinha Mercante.

Destaca-se que o decreto apenas autorizou a implementação e o funcionamento do Tribunal Marítimo Administrativo do Distrito Federal (Rio de Janeiro), até que fosse demonstrada a necessidade da implementação dos demais tribunais. Ainda na década de 1930, diversos decretos foram criados visando aperfeiçoar a criação do Tribunal Marítimo Administrativo, dentre eles o Decreto nº 22.900/1933, que desincorporou o Tribunal Marítimo dos serviços da Diretoria da Marinha Mercante, ficando o Tribunal subordinado diretamente ao Ministro da Marinha. Assim, em 1934, através do decreto 22.585, foi aprovado o Regulamento do Tribunal Marítimo Administrativo, passando esta data a ser considerada como a criação do Tribunal Marítimo, composto pelo Colegiado que, inicialmente, possuía cinco juízes e um presidente. Vale destacar que, no primeiro ano de atividade do Tribunal, foram submetidos 67 processos, envolvendo diferentes espécies de acidentes e fatos da navegação.

Com o decreto 7.676/1945, o Tribunal Marítimo Administrativo passou a ser apenas Tribunal Marítimo, contudo ainda sem nenhum encargo jurisdicional. Apesar dos esforços para a criação e adequação do Tribunal Marítimo Brasileiro, ainda carecia de regulamentação a respeito das competências privativas da Corte Marítima visando proferir decisões definitivas referentes às causas dos acidentes de navegação, bem como sua natureza e extensão. Isso fez com que ressaltasse a dificuldade em definir a competência do Tribunal Marítimo sem intervir com o poder judiciário.

Foi através da lei 2.180/1954 que o Tribunal Marítimo se tornou efetivamente autônomo, situado no Rio de Janeiro, com jurisdição em todo o território nacional, vinculado ao Comando da Marinha. A citada Lei regulou – e regula até hoje - a estrutura e o funcionamento do Tribunal Marítimo, assim como conferiu o status de órgão auxiliar do Poder Judiciário. Criado há exatos 88 anos, o Tribunal Marítimo exerce função administrativa e julga com elevado grau de competência técnica as matérias de diversas espécies de acidentes e fatos da navegação.

Referências

MARTINS, Eliane Maria Octaviano. (2008) Curso de direito marítimo. Volume I. 3º ed. ver., ampl. e atual. Barueri, SP: MANOLE.

PIMENTA, Matusalém Gonçalves. (2013) Processo Marítimo: formalidades e tramitação. 2. Ed. Barueri-SP. Manole.

Tribunal Marítimo (Brasil). (2014) 80 anos do Tribunal Marítimo, 1934-2014. / Tribunal Marítimo. Rio de Janeiro: O Tribunal.

(2022) Tribunal Marítimo: Sob o olhar dos especialistas / Wilson Pereira de Lima Filho (coordenador); apresentação: Almir Garnier Santos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. 484.

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1 PIMENTA, Matusalém Gonçalves. (2013) Processo Marítimo: formalidades e tramitação. 2. Ed. Barueri-SP. Manole.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.