Migalhas Marítimas

Interferência judicial e os desafios ao desenvolvimento portuário e aquaviário

A natureza jurídica e os serviços prestados pelas autoridades portuárias não se enquadram ou resumem à divisão dicotômica público-privado – mas sim em um regime jurídico híbrido e atípico, caracterizado pela soma de elementos de ambos.

22/12/2022

Desde a década de 1990, a Constituição Federal sofreu uma série de alterações significativas, notadamente em relação à implementação do programa nacional de desestatização. E é exatamente a partir desta época que surgiram as agências reguladoras e todo aparato normativo, eminentemente técnico, para reger e regulamentar a prestação dos serviços públicos.

Após três décadas, o assunto se mostra relevante como política pública, especialmente para o desenvolvimento do setor de infraestrutura, cuja oportunidade e investimentos seguem aquecendo o mercado nacional.

Ocorre, porém, que se por um lado espera-se das empresas públicas a prestação de um serviço adequado, tendo como parâmetros a eficiência, segurança e modicidade tarifária, de outro se exige também, a sua modernização, o seu desenvolvimento e a sua expansão.

No que concerne às diretrizes públicas ligadas ao setor logístico, destaca-se o transporte marítimo. Especificamente o setor portuário nacional (portos públicos e terminais autorizados), o qual, segundo dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ1, movimentou 218,2 milhões de toneladas entre os meses de julho e agosto deste ano, com saldo negativo de 0,12%. No acumulado do ano, os portos registraram 799,7 milhões de toneladas. Nos dois primeiros meses deste semestre (julho e agosto), os portos públicos registraram crescimento de 10,3%.

Diversas são as normas que regulamentam o segmento, e inúmeros são, também, os desafios enfrentados pelas autoridades portuárias na tentativa de referendar a autonomia de sua agenda regulatória frente às constantes judicializações e interferências em sua atuação que atrasam a modernização do setor.

A divisão dos poderes, enquanto norma constitucional, não caracteriza um isolamento de suas funções típicas, mas sim a instituição de um sistema que impede o predomínio e o abuso por parte de seus representantes. Cada poder, isto é, cada ente da administração pública é responsável pelo exercício de uma determinada função, com independência em relação aos demais.

Vale dizer, ao Poder Legislativo cabe a elaboração e a edição de normas gerais e abstratas para regular tanto os atos estatais, como a vida dos cidadãos. O Executivo, por sua vez, é responsável pela função administrativa, concernente à aplicação das leis, prestação de serviços, dentre outras, enquanto ao Poder Judiciário é atribuída a função jurisdicional para pacificação de conflitos pela aplicação das leis, quando acionado.

Embora essa divisão administrativa pareça intuitiva e óbvia, observa-se, nos setores portuário e aquaviário, que tem se intensificado a busca de soluções de conflitos pela via judicial, com fito de fugir à competência normativa e regulatória das agências reguladoras. Diversos são os casos de judicializações que esvaziam e usurpam a competência desses entes técnicos.

A título exemplificativo, se destaca as ações em que, a despeito da discricionaridade da União, enquanto Poder Concedente, para firmar contratos de arrendamento e prorrogá-los, acabam por compelir o ente federal a manter em áreas portuárias empresas a título precário, permitindo que se sobreponha o interesse privado ao interesse público. Sob o fundamento genérico de preservação de atividade econômica da empresa, discussões e decisões proferidas na Justiça Estadual autorizam a permanência em áreas públicas, violando a competência de avaliação da conveniência pelo detentor do direito, e os limites da jurisdição para conhecimento, apreciação e julgamento da matéria – precipuamente destacados na Constituição Federal como de competência da Justiça Federal.

E embora as competências legais e a separação de poderes pareçam evidentes, tribunal de justiça estadual precisou de seis longos meses para reconhecer que a área deve ser imediatamente desocupada, conforme já havia sido determinado pela justiça federal. Após indeferir pedidos de efeito ativo e tutela antecipatória, o caso, ao final, foi considerado de extrema relevância e ser indicado à formação de jurisprudência da Corte.

A ofensa às funções legais das agências e do planejamento do próprio Poder Concedente também ocorre no âmbito federal, em que mais uma vez, empresas privadas em patente abuso da sua capacidade econômica seguem distribuindo ações para permanecer em área pública sem amparo contratual, legal e em desrespeito aos princípios de direito público, especialmente à licitação. Recentemente, foi  concedida recomposição de reequilíbrio econômico-financeiro de contrato encerrado há mais de seis anos, e cuja prorrogação não é de interesse da Administração Pública, e em sentido contrário ao quanto já decidido pela ANTAQ na análise do caso. No processo judicial, sequer foi citada a Autoridade Portuária que administra a área.

Ainda sobre a interferência do Poder Judiciário, mostra-se de relevância à análise, a revisão tarifária promovida pela ANTAQ, que após a promoção de audiências públicas e de décadas de estudos técnicos, dos quais participaram dezenas de profissionais das mais variadas áreas científicas, autorizou a alteração na forma de cobrança de tarifas portuárias.

Para surpresa de poucos, diversas ações cautelares foram distribuídas em todo o território nacional, por entidades associativas sem fins lucrativos, para defender interesses das empresas associadas – as quais, por terem perdido parte significativa do subsídio com a vigência da nova política, se opõem à sua implementação, e desta forma, buscam seguir na prática de sub-remunerar as administradoras dos portos para preservação de vantagem comercial.

Em muitos casos, foram concedidas liminares para impedir a alteração da forma de cobrança, sob o fundamento de que não traria prejuízo às empresas públicas a sua postergação, por se tratar de manutenção de regime vigente há décadas, ou ainda, que não teria sido dada a devida publicidade aos estudos que fundamentaram sua alteração.

Ainda assim, se exige das administradoras deste tipo de ativo público, investimentos e melhorias, sem que lhes sejam garantidos os meios apropriados para promovê-los – qual seja a arrecadação, que remunere de forma adequada a sua utilização e exploração, respeitado o princípio da modicidade.

A natureza jurídica e os serviços prestados pelas autoridades portuárias não se enquadram ou resumem à divisão dicotômica público-privado – mas sim em um regime jurídico híbrido e atípico, caracterizado pela soma de elementos de ambos. E não se cuida discutir qual o caráter do serviço ou contrato, mas sim identificar de que forma são regulados pelo Estado.

Nesse sentido, é essencial defender, promover e referendar a competência da Agência Reguladora como foro pertinente e adequado para referidas discussões e análises, na medida em que a própria legislação houve por bem estabelecer os limites e atribuições para sua atuação. É justamente esse o ambiente em que devem ocorrer os debates e a solução dos conflitos, e embora esse seja o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, é constantemente desrespeitado pelas instâncias inferiores, o que invariavelmente se traduz em instabilidade e insegurança jurídica para os setores.

Como consequência de se respeitar as atribuições legais desses órgãos, garante-se a adequada avaliação das controvérsias e permite-se sejam efetivamente incentivados o desenvolvimento e modernização da cadeia logística para exploração desses bens públicos, garantindo-se a segurança necessária aos interessados em investir no ramo, promovendo a aceleração da economia nacional.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.