Migalhas Marítimas

Multimodalidade dos transportes, logística em pauta e breve análise do transporte marítimo e transporte aéreo de cargas

A multimodalidade e a intermodalidade dos transportes são uma realidade crescente no Brasil e no mundo e, dessa forma, temas de estudos jurídicos mais modernos.

15/12/2022

A multimodalidade e a intermodalidade1 dos transportes são uma realidade crescente no Brasil e no mundo e, dessa forma, temas de estudos jurídicos mais modernos. Um modal de transporte é o modo escolhido para o deslocamento de pessoas ou cargas, o que hoje inclui os segmentos rodoviário, ferroviário, aquaviário, aéreo e dutoviário.

Em que pese esta coluna ser voltada para assuntos relacionados ao direito marítimo, estando esta disciplina inserida no macro sistema do Direito dos Transportes2, destaca-se que, em adição ao transporte de carga marítima, o transporte de carga pela modalidade aérea vem ganhando destaque, impulsionado pelo seu crescimento vertiginoso durante a pandemia, já que foi de extrema importância para o abastecimento dos países durante a pandemia, tendo garantido que as vacinas, equipamentos médicos e demais medicamentos e insumos chegassem aos seus destinos com a brevidade e segurança necessárias na situação caótica vivida.

Além disso, o transporte aéreo de carga foi visto também como uma alternativa econômica para o mercado da aviação comercial, haja vista que foi um dos mais afetados pela cessão total ou parcial do transporte de passageiros no referido período.

Sabe-se que o transporte marítimo de cargas tem tradição milenar e os agentes deste mercado possuem vasta experiência, tendo sua base legal inspirado os demais modais, principalmente o aéreo. Apesar disso, ainda existem diversos entraves jurídicos e divergências doutrinárias e jurisprudenciais envolvendo o transporte marítimo.

No tocante ao transporte de carga aérea, os estudos jurídicos não são tão vastos e o mercado tem enfrentado a revisão de discussões, regulamentos e certificações em vista da importância que este tipo de transporte tem tomado.

Inclusive, ainda em 2020, uma das primeiras medidas tomadas pela Agência Nacional de Aviação Civil (“ANAC”) foi a permissão para que as empresas operadoras de táxi aéreo pudessem transportar cargas biológicas (Portaria nº 880/2020), além de facilitação para o transporte de cargas na cabine das aeronaves, tendo ambas as flexibilizações ocorrido em caráter temporário.

Relevante apontar que, enquanto o mundo vem enfrentando quedas na demanda de carga aérea, em razão da recessão econômica pós pandemia, somada aos efeitos da guerra na Ucrânia, a América do Sul - principalmente o Brasil - tem sido destaque no aumento do volume transportado de carga, em comparação com o mesmo período em 2021.

Os números divulgados pela International Air Transport Association (“IATA”) mostram que, em agosto de 2022, houve aumento do volume de carga aérea transportada na América Latina em 9%, assim como a capacidade de carga a ser transportada aumentou em 24,3%, em comparação ao mesmo mês de 2021, principalmente em razão da aquisição pelos players de novas aeronaves cargueiras. Registre-se que a Europa, Oriente Médio, América do Norte, Ásia e Pacífico tiveram queda relevante da demanda no período3.

Neste contexto, a logística brasileira vem aumentando os investimentos em novos modelos de transporte, considerando o crescente mercado de vendas online (e-commerce) e a necessidade de agilidade nas entregas por este tipo de comércio, sendo o transporte aéreo seu principal aliado. Contudo, o aumento do volume de carga transportada neste meio traz à tona questões de infraestrutura, operacionais e, dentro dessas, soluções e resoluções de questões jurídicas que podem ter impacto nas atividades diárias e custos do transporte de carga aérea.

No âmbito do transporte aéreo internacional, importante pontuar o disposto na Convenção de Montreal (Decreto nº 5.910/2006), o qual dispõe entre seus artigos 4º a 13, a documentação necessária e as regras a serem cumpridas no transporte de cargas, além das disposições relacionadas à limitação de responsabilidade em caso de avarias ou atraso na entrega da carga, nos termos dos artigos 22.3 e 22.4 da Convenção, limitando-a, em caso de carga de valor não declarado, ao valor de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma.

Sobre eventual multimodalidade e eventuais danos à carga, interessante notar que, nos termos do artigo 18.4 da Convenção, o período do transporte aéreo da carga não abarcará eventuais etapas em modalidades diversas, mas, quando estas ocorrem durante a execução do transporte aéreo, para o carregamento, a entrega ou o transbordo, caso não haja prova ao contrário, eventual dano à carga se presume ocorrido durante o transporte aéreo, aplicando as regras da Convenção.

Assim, "quando um transportador, sem o consentimento do expedidor, substitui total ou parcialmente o transporte previsto no acordo entre as duas partes como transporte aéreo por outra modalidade de transporte, o transporte efetuado por outro modo se considerará compreendido no período de transporte aéreo."

No âmbito do transporte marítimo, o contrato de transporte é instrumentalizado pelo conhecimento de embarque (Bill of Lading-BL), que consiste num documento expedido pelo transportador ao embarcador. Já no transporte aéreo, o serviço de carga é formalizado através do conhecimento de carga aérea (Airway Bill-AWB).

Cabe ressaltar a imprescindível obediência aos dispostos nos contratos de transporte, a saber, no BL e no AWB, e nas respectivas convenções internacionais.

No tocante à jurisprudência brasileira, o Superior Tribunal de Justiça tem revisto decisões dos tribunais estaduais que afastariam a aplicação das regras da Convenção em casos específicos de transporte aéreo internacional de cargas4, em vista do entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal (o qual fixou o tema de repercussão geral nº 210 em 2017) no sentido da prevalência das regras dos tratados internacionais em caso de transporte internacional, o que vem trazendo maior segurança jurídica ao mercado.

Com intuito de fomentar o transporte mais integrado e célere, é interessante apontar que tramita na Câmara dos Deputados o PL 3.757/2020, o qual tem como principal objetivo regulamentar a atividade de operador logístico no Brasil, atualizando, desta forma, o decreto sobre o estabelecimento de Armazéns Gerais no país, que é de 1903.

Operadores logísticos são pessoas jurídicas capacitadas que prestam serviços logísticos ou de gestão para operações do ciclo da cadeia de suprimentos tais como: gestão de transporte, o armazenamento das mercadorias/produtos e o controle de estoque. Além de outros benefícios da terceirização, é possível destacar profissionais qualificados, redução de custos operacionais, maior foco no objetivo do negócio bem como acesso a novas tecnologias.

É inquestionável a importância que os transportes e operações logísticas têm para o crescimento econômico e social dos países, seja pelo alto potencial para geração de emprego que possuem, ou para garantir entrada e/ou saída de mercadorias, matérias primas e produtos que movimentam a economia. Desta forma, é imprescindível o avanço da legislação a respeito no Brasil visando garantir melhorias operacionais, maior integração das modalidades de transporte, redução de custos e definição com maior clareza das responsabilidades e deveres dos agentes envolvidos, assim como a observância de regras, usos e costumes já existentes, principalmente as dispostas em convenções ou tratados internacionais firmados, contribuindo, assim, para a tão mencionada segurança jurídica e fomento de negócios.

__________

1 Ambas se diferenciam pela emissão de um único documento de transporte no caso da intermodalidade e a emissão individual de documentos para cada tipo de transporte na multimodalidade.

2 O Direito Dos Transportes tem como objetivo estudar os conceitos e regras jurídicas nas mais diversas modalidades de transporte, como os transportes terrestre, ferroviário, aéreo, rodoviário etc. Defende Fernando Mendonça, em sua obra Direitos do Transportes, que o Direito dos Transportes é um "complexo de princípios e regras que regulam a condução de pessoas e coisas de um lugar para o outro", não admitindo a autonomia dos direitos marítimo, aeronáutico, tec., os quais, segundo ele, seriam definidos como "regras disciplinadoras de cada modalidade de transporte (...), sem quebrar a unidade daquele". (MENDONÇA, Fernando. Direito dos transportes. 1990. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 209 p. 13 e 14 ).

3 Disponível aqui.

4 Vide recente Acórdão do E.TJSP na Apelação nº 0061628-64.2012.8.26.0100; Relator (a): Roberto Mac Cracken; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 31ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/06/2022; Data de Registro: 28/06/2022.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.