Os leitores e as leitoras da coluna, interessados que são nos assuntos que envolvem o mundo da navegação, muito provavelmente acompanharam com espanto as notícias sobre o acidente ocorrido em 14/11, envolvendo o navio graneleiro "São Luiz". A embarcação, um cargueiro de 63.000 toneladas e 244 metros de comprimento que se encontrava fundeado na Baía de Guanabara, foi arrastada pelos fortes ventos que atingiram a cidade naquele dia até se chocar com a estrutura da icônica Ponte Rio-Niterói, na Baía de Guanabara, um dos cartões-postais do Rio de Janeiro.
Como devidamente registrado por um dos milhares de motoristas que trafegavam pela rodovia naquele horário de pico, a estrutura da ponte chegou a balançar em virtude da colisão. Em razão do acidente, o tráfego na Ponte teve que ser paralisado em ambos os sentidos, e só foi reaberto no dia seguinte, após a realização de uma avaliação técnica pela concessionária da rodovia.
Em nota oficial, a Capitania dos Portos do Rio de Janeiro informou que, devido às "condições climáticas extremas", a embarcação teve "sua amarra partida e se deslocou do local em que se encontrava fundeada". Ainda segundo a nota, a Capitania enviou uma equipe de busca e salvamento ao local, tendo essa equipe rebocado a embarcação para atracação no Porto do Rio de Janeiro. A nota também informa que a embarcação era objeto de um processo judicial e encontrava-se fundeada em local pré-definido pela Autoridade Marítima desde fevereiro de 2016. Em razão do acidente, a Capitania informou, ainda, que irá instaurar um Inquérito sobre Acidentes e Fatos de Navegação para apurar o ocorrido.
Sem que tenha havido pronunciamento por parte do armador ou eventual afretador da embarcação, surgiram diversas especulações sobre a sua causa do acidente, trazendo à tona também alguns pontos que merecem exame mais aprofundado sob o ponto de vista jurídico.
Primeiramente, é importante analisar os autos de um processo judicial (sem prejuízo de outros existentes) envolvendo a embarcação São Luiz (processo nº 5093186-56.2019.4.02.5101, em curso na 16ª Vara Federal). A ação foi ajuizada no ano de 2019 pela Companhia Docas com o objetivo de condenar a empresa responsável pela embarcação a efetuar o pagamento de uma dívida pela utilização da infraestrutura portuária e - merece destaque -- a retirar imediatamente o navio "São Luiz" do local de fundeio em que se encontrava, a fim de evitar danos ambientais e risco à segurança da navegação.
Ocorre que, de acordo com os autos do processo, a empresa ré da ação, proprietária da embarcação, não teria sido localizada. Diante disso, houve um despacho deferindo uma tutela de urgência que autorizava a Companhia Docas a retirar a embarcação para um local seguro de sua escolha. A ordem judicial foi dirigida à Companhia Docas, muito provavelmente, pela dificuldade de localização de representantes da empresa ré da ação, considerando que, se a parte não havia sido encontrada até então, nem apresentado qualquer manifestação nos autos, seria remota a possibilidade de que houvesse o cumprimento dessa decisão.
Seja como for, nota-se que a tutela judicial em questão não chegou a ser efetivamente cumprida, seja pela autora, seja pela ré da ação. Considerando a natureza da medida, alguns pontos merecem destaque e podem explicar a demora no cumprimento da ordem judicial. Uma operação desse tipo envolve não apenas planejamento e recursos operacionais e de pessoal, mas sobretudo alto custo financeiro. São diversos os aspectos a serem considerados, incluindo o planejamento da operação, como será realizado o reboque da embarcação, para onde essa embarcação de grande porte será levada e quem arcará com os custos de atracação dela, dentre outros aspectos.
Embora não esteja claro do processo judicial em questão, tudo isso pode ter resultado no não cumprimento imediato da determinação judicial pela Companhia Docas, a fim de se obter mais tempo para que a proprietária da embarcação fosse localizada e arcasse com os custos e demais providências relacionadas a essa operação de alta complexidade.
Após o deferimento da tutela antecipada, não cumprida, e a suspensão do processo por conta de implicações da Covid-19, foi enfim declarada revelia da proprietária da embarcação e proferida sentença. Ao contrário da tutela de urgência, a sentença determinou que a proprietária do navio, e não a Companhia Docas, removesse a embarcação para fora do entorno da Baía, bem como que realizasse o pagamento de dívidas na monta de quase R$ 7 milhões. Não obstante, essa determinação imposta pela sentença de mérito também não chegou a ser cumprida pela ré da ação.
Como se não bastasse, no final do ano passado, em novembro, a embarcação foi alvo de uma operação do Ministério Público do Trabalho ("MPT"). De acordo com o órgão, o navio estaria abrigando dois funcionários que estariam trabalhando em condições análogas à escravidão, uma vez que, além de não possuírem carteira assinada, circulavam pela área interna da embarcação sem luz e sem alimentação adequada.
Para concluir, em abril desse ano, houve ainda um pedido de desarquivamento dos autos e início do cumprimento de sentença. A nova intimação da empresa ré na ação ocorreu no mês de julho, não tendo havido qualquer manifestação da parte. O processo, então, foi suspenso novamente, prosseguindo a embarcação fundeada na Baia de Guanabara.
Menos de um mês antes do acidente, em 28/10, a Companhia Docas chegou a solicitar "autorização de acesso ao navio, para execução de serviços de solda dos volantes de todas as válvulas internas de fundo, caixas de mar e possíveis locais que, porventura, apareçam após vistoria subaquática, bem como reforçar o fundeio, implantando mais uma amarração, de forma a complementar o sistema de fundeio existente, e bloquear os acessos de água do navio com o tamponamento das válvulas de fundo existentes, caixas de mar e das entradas de ar". Contudo, a decisão referente a esse pedido foi proferida apenas em 16 de novembro de 2022, ou seja, 2 dias após a colisão da embarcação com Ponte Rio-Niterói.
Muito embora o acidente tenha causado espanto, um estudo conduzido pela Universidade Federal Fluminense indica que a colisão do navio "São Luiz" pode se repetir futuramente. Isso porque, segundo esse estudo, existiriam pelo menos outras 80 (oitenta) embarcações em situação similar à do navio “São Luiz” e que, potencialmente, a depender das circunstâncias de cada caso, podem representar risco à navegação, à integridade da estrutura da Ponte Rio-Niterói e, como advertiram os ambientalistas, ao meio ambiente. De fato, dentre os impactos ambientais que a situação pode acarretar, destacam-se a descarga ilegal de esgoto sanitário dos navios, o risco de vazamento de óleo, dentre outros possíveis danos ambientais.
O "cemitério de navios abandonados", como denominou a imprensa, chama a atenção e requer pronta solução. Especialistas sugerem que as embarcações poderiam ser desmembradas, de forma a promover a reciclagem de suas peças. Contudo, também não se sabe ao certo quais seriam os possíveis impactos ambientais em tal operação, haja vista a grande concentração de metais pesados nas estruturas navais. Além disso, essa operação é invariavelmente custosa e, nos casos de navios abandonados, geralmente o proprietário da embarcação costuma ser uma empresa em estado de falência ou já liquidada.
Nesses casos, em havendo risco à navegação, a responsabilidade direta pela retirada da embarcação acaba recaindo sobre a Marinha do Brasil. Com efeito, a previsão da lei 7.542/86 é de que compete à Marinha a "remoção e demolição de coisas ou bens afundados, submersos, encalhados e perdidos em águas sob jurisdição nacional", em "decorrência de sinistro, alijamento ou fortuna do mar". A missão não é simples, seja em razão do grande número de embarcações nessa situação, seja porque a demolição de um navio do porte do São Luiz, e as consequências ambientais dessa operação, requerem planejamento e alto custo financeiro, como anteriormente mencionado.
A título de exemplo, recentemente foi noticiado que um porta-aviões brasileiros teria sido adquirido como sucata para desmanche por uma empresa turca. O navio chegou a ser arrematado em março deste ano por R$10,5 milhões e seguia para desmanche na Turquia, quando recebeu ordem de retorno ao Brasil, após um comunicado divulgado pelo ministro do Meio Ambiente, Cidade e Mudanças Climáticas da Turquia, proibindo a entrada da embarcação em águas turcas pela falta, segundo noticiado pela imprensa, do envio de um relatório, por parte do governo brasileiro, contendo um inventário de materiais perigosos presentes no porta-aviões. O ocorrido demonstra exatamente a complexidade de uma operação dessa natureza, ainda que se trate do desmanche da embarcação.
Nesse aspecto, interessante notar, ainda, que a lei 7.542/86 também prevê que a Marinha poderá delegar a execução de tais serviços a outros órgãos federais e estaduais, como o INEA ou o IBAMA por exemplo. Porém, no caso do São Luiz, nenhum desses órgãos teria assumido a responsabilidade pelo ocorrido. Pelo contrário, em comunicado à imprensa, o INEA se pronunciou no sentido de que tal competência seria mesmo da Marinha, denotando mais uma vez a dificuldade prática de uma rápida solução para essa questão, considerando a diversidade de embarcações na mesma situação, detidas por diferentes proprietários, frequentemente em local incerto.
Por fim, vale ainda destacar como uma possível solução para a questão que, segundo noticiado pela Agência Câmara, em 24.11, a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que regulamenta a reciclagem de embarcações no País, estabelecendo diretrizes para a gestão e o gerenciamento da atividade. As normas se aplicam a todas as embarcações em águas brasileiras, incluindo plataformas flutuantes ou fixas, como as de petróleo. Segundo Relator do projeto, "o vasto litoral brasileiro é um grande depósito de navios abandonados, sendo um cemitério de embarcações, elevando o risco para os demais barcos e navios que trafegam pela nossa Amazônia Azul".
Segundo o texto aprovado, deverá ser realizado um plano de reciclagem contendo informações sobre materiais perigosos, resíduos e demais elementos potencialmente danosos ao meio ambiente, sendo que esse plano deverá ser aprovado pelo órgão ambiental competente. Esse órgão ficará responsável, ainda, por uma vistoria feita pela autoridade marítima ou entidade especializada devidamente autorizada. Será a autoridade marítima, enfim, que emitirá o certificado autorizando que embarcação se encontra pronta para reciclagem. O projeto seguirá agora para aprovação nas demais comissões competentes da Câmara dos Deputados.
Em outro exemplo recente, aliás, dessa vez relacionado a aeronaves, vale destacar o projeto pátios limpos, que consiste em uma operação que pretendeu retirar aeronaves sob custódia da Justiça dos aeroportos. O objetivo foi retirar todos os aviões vinculados às massas falidas ou apreendidos em processos criminais, já que o espaço a eles destinado agravava a ocupação dos aeroportos e, em alguns casos, ensejava risco às demais aeronaves em operação, além de representarem riscos à saúde pública. Nesse caso, foram envolvidos no projeto o Conselho Nacional de Justiça, a Agência de Aviação Civil (ANAC) e as Forças Armadas, demonstrando a necessidade de um esforço conjunto de vários órgãos para a solução da questão.
Em resumo, como se verifica, é provável que a solução desse problema demande esforços conjuntos dos órgãos responsáveis. No caso do "cemitério de navios", muito provavelmente, será necessária a adoção de uma solução e de esforços que demandarão planejamento, foco e atuação conjunta de várias entidades governamentais e do Poder Judiciário.