Migalhas Marítimas

A dualidade dos modelos de arbitragem Institucional e Ad Hoc no cenário marítimo

De início, não é demais distinguir os modelos de arbitragem institucional e ad hoc.

3/11/2022

A relevância da arbitragem como um método efetivo de resolução de disputas no setor marítimo já foi objeto de estudo na presente coluna [Direito Marítimo e arbitragem], oportunidade em que foi abordado o panorama geral sobre o tema, bem como foi brevemente apontada a dualidade de modelos de procedimento arbitral e, neste passo, a predominância das arbitragens ad hoc no cenário estrangeiro. O que se pretende analisar no presente artigo é a dualidade dos modelos de procedimento arbitral, quais sejam, o modelo de arbitragem institucional e ad hoc no âmbito da arbitragem marítima.

De início, não é demais distinguir os modelos de arbitragem institucional e ad hoc.

A tradução para a expressão latina ad hoc é “para esta finalidade” ou “para este efeito”, indicando que algo foi constituído especialmente para uma única finalidade. No modelo de arbitragem ad hoc, o procedimento é administrado pelas partes e pelos árbitros, sem qualquer ingerência, condução ou supervisão de uma instituição – o que concede às partes uma maior autonomia na elaboração de regras procedimentais, haja vista a ausência de vinculação a um regulamento de uma instituição arbitral1.

A elevada autonomia das partes pode ser reconhecida como a grande vantagem do modelo ad hoc – a qual pode ser moldada de forma a se adequar aos interesses das partes, considerando as peculiaridades do caso em questão. Não obstante, para que o modelo ad hoc alcance seu máximo proveito, se faz necessária cooperação entre as partes e árbitros2.

Por outro lado, o modelo de arbitragem institucional é aquele previsto no Artigo 5º da Lei de Arbitragem, o qual faculta às partes eleger algum órgão arbitral institucional ou uma entidade especializada para administrar o procedimento arbitral e conduzi-lo nos termos de seu regulamento: “Art. 5º Reportando-se as partes, na cláusula compromissória, às regras de algum órgão arbitral institucional ou entidade especializada, a arbitragem será instituída e processada de acordo com tais regras, podendo, igualmente, as partes estabelecer na própria cláusula, ou em outro documento, a forma convencionada para a instituição da arbitragem.”

Muito embora a natural majoração de custos, as arbitragens institucionais são essencialmente regidas por regulamentos testados em frequente prática e administradas por entidades altamente especializadas, garantindo um procedimento eficiente.

Cumpre rememorar que o papel da entidade arbitral é essencialmente de natureza administrativa-organizacional, sendo certo que a função jurisdicional é exclusiva dos árbitros3.

No Brasil contamos com uma diversidade de instituições arbitrais de excelência, a dizer, o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC), Câmara de Arbitragem da Fundação Getúlio Vargas (CAM-FGV), Câmara de Mediação, Conciliação e Arbitragem de São Paulo – CIESP/FIESP (CAM-CIESP-FIESP), Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial (CAMARB) e a Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI).

Traçadas as premissas básicas do presente estudo, passamos a analisar a referida dualidade no cenário das disputas envolvendo o setor marítimo.

O recente e prestigioso trabalho “Arbitragem em Números (2022)”4 de autoria da Professora Selma Ferreira Lemes evidencia o crescimento e desenvolvimento da arbitragem institucional no cenário brasileiro. Depreende-se deste estudo que as arbitragens comerciais revelam uma tendência a seguir o modelo institucional, notavelmente quanto às disputas societárias, empresariais, de construção civil e energia.

Inobstante a predominância das arbitragens institucionais no âmbito das arbitragens comerciais, internacionais ou domésticas, o setor marítimo, principalmente internacional, destoa-se da prática, demonstrando uma distinta preferência pelo modelo ad hoc5, em decorrência da confidencialidade, eficiência e flexibilidade deste modelo de procedimento6.

Na prática internacional, organização que merece destaque é a London Maritime Arbitrators Association (LMAA), associação londrina fundada em 1960.

Com o surpreendente número de 2777 nomeações em 20217, estima-se que a Associação seja responsável por 80% do market share – sendo certo que a vasta maioria dos casos tem por objeto o afretamento de embarcações8. Nas arbitragens sediadas em Londres, os procedimentos são governados, a priori, pela 1996 UK Arbitration Act, somado aos Termos de Procedimento na condução do procedimento (Veja-se o LMAA Terms 20219).

Os Termos de Procedimento de 2021 aplicam-se às arbitragens mediante a incorporação destes às clausulas arbitrais, a qual será poderá ser presumida, consoante o item 5 dos Termos.

Importante pontuar que a Associação também dispõe de Procedimento de Demandas Intermediárias (para demandas superiores a US$ 100.000,00 que não excedam US$ 400.000,00)10, Procedimento de Demandas Menores (para demandas que não excedam US$ 100.000,00)11, diretrizes para condução dos mencionados procedimentos, bem como uma inovadora diretriz para condução de audiências virtuais e semi-virtuais.

Ressalta-se que muito embora a condução do procedimento arbitral seja regida pelos Termos da LMAA, não há qualquer ingerência ou administração pela Associação, (em exceção à hipótese de a Associação figurar como a appointing authority) - o que configuraria uma arbitragem ad hoc. Em verdade o que a Associação pretende é facilitar a arbitragem ad hoc12de formas pontuais.

Outra Associação que merece atenção é a nova-iorquina Society of Maritime Arbitrators of New York (SMA), cujo realce está diretamente conectado à transformação de Nova Iorque como um centro internacional da indústria marítima, também no início da década de sessenta13.

A Associação recentemente disponibilizou o regulamento de 202214, que estabelece diversas questões do procedimento arbitral – desde o escopo de aplicação do regulamento e a constituição do Tribunal, passando pela consolidação de procedimentos e produção de provas, até os requisitos para a sentença arbitral.

Destas disposições, pontuam-se as seguintes – de grande relevância prática: (i) a publicação da sentença arbitral, caso não haja acordo contrário (Section 1); (ii) a possibilidade de consolidação de procedimentos que comunguem questões de fato, de direito ou as disputas versem sobre uma transação comum, hipótese em que o procedimento poderá sofrer ingerência da Presidência da SMA (Section 2) e; (iii) a possibilidade de limitar o procedimento a documentos escritos, isto é, em síntese, vedar submissões orais e produção de prova oral (Section 27).

Assim como a LMAA, a SMA não desempenha função administrativa-organizacional do procedimento arbitral, mas pontualmente poderá auxiliar em questões acerca da referida consolidação de procedimentos (Section 2) e a manutenção de conta-garantia (Section 37).

A SMA também dispõe de Regulamento de arbitragem expedita, o Shortened Arbitration Dispute15, o qual prevê um procedimento marcado por custos e prazos reduzidos, bem como uma fase instrutória limitada a documentos (sendo vedado o Discovery, a não ser que o Árbitro entenda necessário).  Diversamente ao procedimento expedita da LMAA, o regulamento de arbitragem expedita da SMA não impõe um limite de valores – mas dispõe de um aditamento padrão à cláusula compromissória, no qual as partes poderão estabelecer um limite de valor (por exemplo, a cláusula arbitral padrão da BIMCO estabelece o limite no valor de US$ 100.000,0016).

Fechando a tríade dos grandes Arbitration Hubs, o estudo se direciona ao continente asiático, o qual demonstra ampla relevância no setor marítimo internacional17.

A Singapore Maritime Arbitration Chamber (SCMA) afirma que desenvolveu um modelo único de arbitragem, marcado pela mínima intervenção institucional, máxima autonomia das partes e custo-eficiência dos procedimentos18. Em que pese a SCMA não administrar os procedimentos regidos pelo seu Regulamento, o Centro poderá atuar como a autoridade nomeadora, decidir questões acerca de impugnação de árbitros, administrar fundos e realizar a autenticação de sentenças arbitrais19.

O Centro dispõe de um regulamento de arbitragem expedita para demandas que não excedam o valor total de US$ 300.000,00, ou quando houver previsão expressa acerca da aplicação do regulamento. Seguindo a tendência dos regulamentos de arbitragem expedita, o procedimento enseja uma curta duração, custos reduzidos e será conduzido e julgado por um árbitro único.

Conforme as estatísticas de 202120, houve 37 arbitragens conduzidas pelo regulamento da SCMA, sendo certo que as disputas mais frequentes versaram sobre contratos de afretamento, bunkering e gestão comercial de embarcações.

No cenário nacional, onde prevalece o modelo de arbitragem institucional, duas Câmaras de arbitragem merecem destaque quando há direito marítimo em questão.

O Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA)21 instituição fundada em 2002 pela Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ), Federação Nacional das Empresas Privadas de Seguros e Capitalização (FENASEG) e Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN), possui uma comissão especializada para administrar a arbitragem de direito marítimo e portuário, com reconhecimento internacional, sendo listada como renomada "Associação de Arbitragem Marítima" pelo ICMA22.

Pontua-se que o Centro de Arbitragem estabeleceu em 2015 o regulamento para arbitragem expedita23. Nos termos do item 1 do regulamento, a aplicação do procedimento está condicionada a dois requisitos, quais sejam o limite da disputa ao valor de R$ 6.000.000,00 e o consentimento das partes – mediante celebração da convenção de arbitragem ou, ainda, quando da apresentação do requerimento da arbitragem. Em verdade, como uma forma de garantir a higidez do procedimento, o Centro poderá decidir aplicar o procedimento ordinário, considerando a complexidade da matéria em disputa.

Alinhado à prática internacional, o regulamento de arbitragem expedita é regido pelo binômio custo-eficiência: tem-se um regulamento mais compacto e de custos reduzidos.

Pode-se inferir que, não obstante a inegável competência das câmaras arbitrais brasileiras, espelhar as práticas internacionais, especialmente quando se trata do setor marítimo, é de suma importância para a boa gestão das disputas e para o desenvolvimento da arbitragem no Brasil.

Em um país de cultura de litígios judiciais, para que se tenha uma arbitragem eficiente, um procedimento válido e uma sentença exequível, se faz necessária a boa condução da arbitragem, tanto na prestação jurisdicional, como em com no que tange ao aspecto administrativo-organizacional. Desta forma, considerando uma certa fragilidade administrativa do modelo ad hoc, observa-se que no cenário nacional a arbitragem institucional revela-se mais adequada.

Por fim, cumpre firmar o seguinte: De um lado temos que o setor marítimo é de grandeza histórica no cenário nacional24; de outro lado, a arbitragem como método adequado de resolução de disputas no cenário brasileiro é inegável – especialmente as arbitragens institucionais. O resultado destes fatores é único: o Brasil demonstra verdadeiro potencial para desenvolvimento na arbitragem marítima.

__________

Fichtner, José Antonio. Teoria geral da arbitragem / José Antonio Fichtner, Sergio Nelson Mannheimer, André Luís Monteiro. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.

3 NUNES, Thiago Marinho; SILVA, Eduardo Silva da; GUERRERO, Luis Fernando. O Brasil como sede de arbitragens internacionais: a capacitação técnica das câmaras arbitrais brasileiras. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, ano 9, v. 34, jul.-set. 2012. Disponível em: .

4 “Arbitragem em Números” Pesquisa 2020/2021. Realizada em 2022, Pesquisadora Professora Selma Ferreira Lemes. Auxílio na elaboração da pesquisa: Vera Barros e Bruno Hellmeister.

Report”elaborada pelo JusMundi reforça a preferência das arbitragens ad hoc pelo setor marítimo.

6 Eva Litina, Theory, Law and Practice of Maritime Arbitration: The Case of International Contracts for the Carriage of Goods by Sea, International Arbitration Law Library, Volume 60 (© Kluwer Law International; Kluwer Law International 2020).

8 Eva Litina, Theory, Law and Practice of Maritime Arbitration: The Case of International Contracts for the Carriage of Goods by Sea, International Arbitration Law Library, Volume 60 (© Kluwer Law International; Kluwer Law International 2020).

9 THE LMAA TERMS 2021(Último acesso em 26/09/2022).

10 THE LMAA INTERMEDIATE CLAIMS PROCEDURE 2021. (Acesso em 26/09/2022)

11 THE LMAA SMALL CLAIMS PROCEDURE 2021. (Acesso em 26/09/2022).

12 LMAA Statistics. (Acesso em 26/09/2022).

13 Society of Maritime Arbitrators of New York - “Where Arbitration Began”. (Acesso em 26/09/2022).

14 Maritime Arbitration Rules – Society of Maritime Arbitrators, INC (SMA) – 2022. (Acesso em 26/09/2022).

16 BIMCO Law and Arbitration Clause 2020 New York(Acesso em 26/09/2022).

18 Article: Exclusive interview with the SCMA as it turns 10. (Acesso em 26/10/2022).

19 SCMA Arbitration Rules – 4th Edition. (Acesso em 26/09/2022).

20 2021 Year in Review. (Acesso em 26/09/2022).

21 Centro Brasileiro de Mediação de Arbitragem. (Acesso em 26/09/2022).

22 International Congress of Maritime Arbitrators – Maritime Arbitrtion Associations. (Acesso em 26/09/2022).

23 Regulamento para Arbitragem Expedita (CBMA) (Acesso em 26/09/2022).

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.