Migalhas Marítimas

Contratos de afretamento de embarcações e sua interpretação pelos Tribunais pátrios

A expectativa é que o tema continue gerando inúmeras controvérsias, que serão levadas aos Poder Judiciário ou, em caso de pactuação de cláusula arbitral, a árbitros indicados pelas próprias partes.

27/10/2022

I – Introdução

Uma das primeiras controvérsias envolvendo contratos de afretamento que se tem notícia remonta ao ano de 323 a.C. e teria ocorrido na Grécia antiga, mais especificamente na cidade de Pireu, próxima a Atenas, na qual está localizado um movimentado porto. No caso, consta que teria havido um conflito entre um proprietário de uma embarcação (armador) chamado Dionysodorus e um afretador, de nome Darius, que havia afretado a embarcação para uma viagem específica (modalidade de afretamento por viagem, como se verá adiante).1

Além de se tratar de um dos primeiros registros de uma disputa envolvendo contratos de afretamento, uma particularidade interessante do caso é que o armador e o afretador da embarcação teriam firmado um acordo pelo qual submeteram a disputa a “um ou mais comerciantes do porto de Pireus”, afastando assim a possibilidade de o conflito ser dirimido por autoridades locais. Nota-se, assim, que já nos primórdios do contrato de afretamento, a questão dos usos e costumes do direito marítimo, bem conhecidos pelos comerciantes do porto escolhidos para solucionar a controvérsia, se mostrava presente e bastante relevante para os agentes marítimos.

Passados centenas de anos, o contrato de afretamento marítimo continua sendo uma peça-chave não apenas para o transporte de mercadorias por via marítima, mas para outros setores que também empregam embarcações, como o setor de óleo e gás offshore. O contrato de afretamento está presente em diferentes áreas da economia, sendo bastante relevante, portanto, que se avalie como tem sido a interpretação de suas cláusulas, senão pelos comerciantes do porto, pelos Tribunais pátrios em seus múltiplos aspectos.

Resumidamente, o afretamento de embarcações é o contrato por meio do qual o fretador do navio cede ao afretador, por um certo período, direitos sobre o emprego da embarcação, podendo transferir ou não a sua posse. Os tipos de contrato de afretamento se dividem em (i) afretamento “a casco nu”, em que o afretador assume a responsabilidade da tripulação e manutenção do navio (gestão náutica e comercial), (ii) afretamento por tempo e (iii) afretamento por viagem (gestão comercial apenas nesses últimos dois casos). Essas modalidades devem ser avaliadas e adotadas a partir das características de cada operação.

Diante da sua relevância e das diversas questões jurídicas que podem surgir a respeito desses contratos, mister se faz analisar como os Tribunais pátrios têm interpretado e solucionado controvérsias envolvendo contratos de afretamento e suas respectivas cláusulas. Alguns casos recentes, selecionados abaixo, são interessantes para compreender essa dinâmica e as diferentes discussões surgidas no âmbito desses contratos, que são cada vez mais complexos e relevantes em termos econômicos, como se verá brevemente a seguir.

II – Exame de julgados sobre contratos de afretamento

(i)    Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: discussão a respeito do tempo de inoperância de embarcação afretada pela Petrobras (processo 0070498-26.2017.8.19.0001)

No caso em exame, tratava-se de contrato de afretamento de embarcação pela Petrobras, tendo a fretadora ingressado com ação judicial para questionar descontos que a afretadora realizou nos pagamentos, a título de inoperância da embarcação afretada.

De acordo com a fretadora, a embarcação teria sofrido um curto-circuito em seus sistemas o que ocasionou a perda de energia e, consequentemente, a sua paralisação para reparo. Contudo, ainda segundo a fretadora, a embarcação teria sido liberada alguns dias depois do ocorrido, sendo que a Petrobras, “unilateralmente e sem qualquer embasamento técnico”, como consta no acórdão, teria mantido a inoperância do navio por quase um mês, razão pela qual não seriam devidos quaisquer valores pela inoperância da embarcação durante esse período.

Realizada uma prova pericial para avaliar a extensão dos danos e a duração do reparo, concluiu a perícia pela inexistência de motivos que impedissem o retorno da embarcação às suas atividades, tendo o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, com base nessa prova técnica, decidido pela existência do que chamou de “excesso de indisponibilidade da embarcação” causado pela Petrobras. No acórdão, os Desembargadores entenderam que, tendo havido o reparo tempestivo e estando o Comandante do navio em condições de atestar a sua operacionalidade, a retenção da embarcação pela Petrobras por período superior teria sido injustificada, razão pela qual a fretadora deveria ser indenizada pelos dias em que a embarcação permaneceu inoperante.

(ii)    Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: discussão sobre multa por atraso na entrega de embarcação objeto de contrato de afretamento (processo 0126945-97.2018.8.19.0001)

No caso em exame, tratou-se novamente de ação proposta em face da Petrobras, objetivando a inexigibilidade de multas no valor aproximado de R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais), aplicadas sob a alegação de descumprimento contratual do prazo para entrega de duas embarcações pela empresa fretadora. O acórdão concluiu pela inaplicabilidade e inexigibilidade das multas impostas no âmbito dos contratos firmados, determinando que a Petrobras se abstivesse de efetuar a cobrança.

Resumidamente, antes da entrega das embarcações, alegando questões técnicas e de segurança operacional, a fretadora comunicou a Petrobras que seria necessário substituir as “bombas de deslocamento positivo” da embarcação por “bombas centrífugas, destinadas para o serviço de transferência offshore de óleo diesel de carga”. A alteração teria sido aceita pela Petrobras em uma reunião presencial entre as partes, ficando acordado, ainda, que se as bombas substituídas não atingissem o desempenho desejado, a fretadora faria a substituição pelas bombas inicialmente contratadas.

Ocorre que, conforme narrado na petição inicial da ação, poucos dias antes da data firmada para entrega das embarcações a Petrobras enviou notificação à fretadora informando que não aceitaria mais a troca das bombas. Como não havia mais tempo hábil para a substituição daquelas peças, as partes então teriam acordado que as embarcações entrariam em operação imediatamente, comprometendo-se a fretadora a substituir as bombas centrífugas pelas orginalmente contratadas a partir de uma determinada data no curso do contrato.

Ocorre que, segundo o acórdão, a Petrobras teria recebido a embarcação normalmente e apenas autorizado a referida substituição das bombas quase um mês após a data convencionada entre as partes. Isso não teria causado qualquer prejuízo à fretadora, se a Petrobras não tivesse enviado em seguida uma notificação à fretadora alegando atraso no início dos trabalhos das embarcações, exatamente em razão da controvérsia relacionada à substituição das bombas, e aplicado à fretadora multa retroativa, no valor de mais de R$ 3 milhões. Para agravar a situação, a fretadora recorreu administrativamente da multa, tendo a Petrobras inicialmente acolhido seu recurso, mas depois voltado atrás novamente na sua decisão, para manter a multa aplicada.

Considerando esse contexto, o Tribunal de Justiça adotou o princípio da boa-fé objetiva da fretadora, que comprovadamente tentou negociar a alteração do equipamento antes mesmo do prazo de entrega da embarcação, vindo posteriormente a sofrer uma multa, de caráter retroativo, pela Petrobras em razão do alegado atraso na entrega da embarcação.

O acórdão reforçou, ainda, a necessidade de observância do princípio da estabilidade das relações jurídicas e da proteção da confiança diante da aceitação da defesa administrativa da apelada, concluindo que a Petrobras, considerando as circunstâncias do caso, não poderia voltar atrás em sua decisão e cobrar multa por descumprimento contratual retroativamente. No mais, também foi destacado pelo acórdão que a alteração das bombas das embarcações não trouxe qualquer prejuízo concreto à Petrobras, concluindo-se assim pela inexigibilidade da multa.

(iii)    Tribunal de Justiça do Espírito Santo: discussão sobre incidência de ISS nos contratos de afretamento marítimo (processo 0013608-68.2017.8.08.0035)

Também no aspecto tributário, os contratos de afretamento têm gerado controvérsias que foram dirimidas pelos Tribunais pátrios. No caso em exame, tratou-se de ação anulatória de débito fiscal ajuizada por afretador de embarcação em face do Município Vila Velha, que insistia na cobrança de débitos oriundos do Imposto sobre Serviços (“ISS”).

No entendimento do Município, a empresa afretadora exerceria atividade “predominantemente de apoio marítimo”, o que faria incidir o tributo, in casu, na medida em que se estaria diante do fato gerador do ISS, qual seja, a prestação de serviço de apoio marítimo, conforme previsto na Lista de Serviços anexa à lei Complementar 116/03, item 20.01.

O Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, em linha com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, entendeu que não há incidência de ISS aos contratos de afretamento marítimo, haja vista que esta modalidade contratual possui “natureza complexa”, não sendo possível desmembrá-la para fins de incidência do referido tributo. Com efeito, além da locação da embarcação e a prestação de serviços de apoio marítimo, os contratos de afretamento também englobam a prestação de demais serviços, dentre os quais inclui-se a cessão de mão de obra.

Ademais, os Desembargadores concluíram que não teria havido prova nos autos de que a empresa fretadora exerceu apenas serviços de apoio marítimo, como argumentava o Município de Vila Velha, razão pela qual o contrato de afretamento não estaria subsumido em qualquer item específico da Lista anexa à lei Complementar 116/03, o que reforçou a conclusão do Tribunal de que o ISS não deveria incidir sobre a citada espécie contratual.

(iv)    Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: discussão sobre Renovação de Certificado de Autorização de Afretamento (“CAA”) (Processo 0310104-77.2017.8.19.0001)

Tratou-se de ação ajuizada por empresa fretadora de embarcação, contra a Petrobras, em que a autora requereu a condenação da Petrobras ao pagamento da quantia de R$ 2.171.801,33, referente às taxas diárias da embarcação afretada durante os períodos em que ela permaneceu inoperante aguardando que a Petrobrás, ré da ação, renovasse o Certificado de Autorização de Afretamento – CAA, que consiste em uma autorização emitida pela ANTAQ para determinadas modalidades de afretamento.

Em sua defesa, a Petrobras alegou que não poderia ser responsabilizada pelo pagamento das taxas diárias relativas à embarcação no período de inoperância, uma vez que teria empregado os melhores esforços para renovar o CAA dentro do prazo previsto no contrato.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, contudo, concluiu que o contrato de afretamento possuía cláusula expressa no sentido de que a responsabilidade de providenciar o CAA era da Petrobrás. Assim, levando em consideração que a Petrobras tinha conhecimento dessa disposição do contrato, a cobrança das diárias enquanto a embarcação aguardava a obtenção, pela Petrobras, do CAA emitido pela ANTAQ, seria devida, tendo sido reconhecido o direito de indenização da fretadora.

III – Conclusão

Como se nota dos julgados brevemente analisados acima, as controvérsias acerca da execução e da interpretação de cláusulas de contratos de afretamento são bastante variadas e têm sido recorrentemente submetidas aos Tribunais pátrios nos mais diversos contextos. De modo geral, a solução de cada controvérsia depende das particularidades do caso concreto e é bastante influenciada pelas disposições contratuais estabelecidas pelas partes e pelo resultado da prova pericial, quando se trata de questões técnicas.

Com a crescente importância e relevância dos contratos de afretamento, a expectativa é que o tema continue gerando inúmeras controvérsias, que serão levadas aos Poder Judiciário ou, em caso de pactuação de cláusula arbitral, a árbitros indicados pelas próprias partes. Estes árbitros, vale notar, terão a importante missão de solucionar essas disputas de forma rápida, eficaz e bastante especializada, observando os usos e costumes do Direito Marítimo, seguindo assim a tradição do setor desde a Grécia antiga, como visto no início desse breve texto.

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1 Maritime Arbitration Report, Abril/2022, elaborado por Jus Mundi, página 11 e seguintes.

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.