Introdução
O Direito Marítimo é, sem sombra de dúvida, um dos ramos da Ciência Jurídica de mais intrincada e complexa epistemologia. Classificá-lo como disciplina de Direito público ou de Direito privado é tarefa virtualmente impossível, na medida em que se espraia por diversos outros ramos, como os Direitos Comercial, Civil, Administrativo, Processual e Internacional. No dizer de Eliane Octaviano Martins, "o conceito, a abrangência e a natureza jurídica do direito marítimo são eivados de complexidade e diversidade de entendimentos"1. A mesma autora detecta a origem mais remota desse denso ramo do Direito: "historicamente, o direito marítimo surgiu como um conjunto de normas consuetudinárias de natureza especial"2.
É certo, porém, que a atividade de navegação se apresenta a singular peculiaridade do meio (mar), que se coloca como espaço internacional, banhando a grande maioria dos Estados e possibilitando o acesso de um Estado costeiro a qualquer outro de mesma natureza. É, também, espaço aberto à navegação de todos, inclusive dos Estados que não possuem costa3. Daí decorre a estreita ligação entre o Direito Marítimo e o Direito Internacional, uma vez que grande parte das relações comerciais desenvolvidas no meio marítimo ultrapassa os limites de um Estado. Os litígios, portanto, envolverão frequentemente diferentes Estados, ou ainda nacionais ou empresas de Estados diversos. Eis a opinião de Ingrid Zanella: “O Direito Marítimo se consubstancia como um ramo do direito autônomo, assentado na internacionalidade e especialidade de suas regras, que se consagra em torno das relações provenientes da prática de comércio marítimo”4.
Neste ponto, é interessante observar como o legislador brasileiro, já em 19665, previu que um dos Juízes do Tribunal Marítimo deveria ser especialista em Direito Internacional, o que demonstra a importância desta disciplina e sua correlação com o Direito Marítimo.
Origem do Tribunal do Mar
Dado o caráter predominantemente internacional das relações jurídicas no Direito Marítimo, é natural que estas tenham sido reguladas num extenso e detalhado instrumento de Direito Internacional, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (mais conhecida pela sigla em inglês “UNCLOS”), documento de grande aceitação na comunidade internacional de Estados, também conhecido como “Constituição do Mar”.
A Seção XV da UNCLOS trata da “Solução de Controvérsias”, abrangendo meios como a negociação direta, a mediação e a conciliação. No art. 287, integrante desta Seção, previu-se a criação de um “Tribunal do Mar”, cujas linhas gerais foram previstas no Anexo VI (“Estatuto do Tribunal Internacional do Direito do Mar”).
O Tribunal foi formalmente inaugurado em 18/10/1996, tendo recebido seu primeiro caso para julgamento em 13/11/1997, proferindo sentença em 04 de dezembro daquele mesmo ano6.
Estrutura e Procedimento
O Tribunal tem sede em Hamburgo, na Alemanha (art. 2º do Anexo VI da UNCLOS) e é formado por 21 juízes, não podendo haver dois juízes de mesma nacionalidade (art. 3º). Se o juiz designado para um caso for nacional de um dos Estados-partes na controvérsia, não ficará impedido, podendo participar do julgamento. Todavia, tal circunstância dará direito à contraparte de designar um outro juiz, que funcionará como membro ad hoc do Tribunal (art. 17).
A Corte possui uma Câmara Especial de Controvérsias sobre Fundos Marinhos (art. 14), e pode constituir outras Câmaras especializadas (art. 15). A mais recente destas Câmaras foi criada em 16/03/2007, para tratar das disputas de limites (territoriais) marinhos7.
Segundo a previsão do art. 16, o Tribunal deve adotar um Regimento Interno, o que foi efetivado em 28/10/19978. No decorrer do processo o Tribunal pode adotar medidas cautelares (art. 25). As línguas oficiais são o Inglês e o Francês. É ônus da parte providenciar a tradução ou intérprete (no caso de procedimentos orais) para uma das línguas oficiais, caso deseje apresentar o caso no seu próprio idioma9.
Alguns casos julgados pelo Tribunal
O Tribunal recebeu, até o momento, 29 casos. Alguns dos mais famosos são o caso “ARA Libertad” e o caso “Artic Sunrise”. Mais recentemente, questões envolvendo agressões da Rússia contra a Ucrânia chamaram a atenção da mídia, inclusive para a própria existência do Tribunal.
No caso “ARA Libertad”, um navio-escola argentino foi arrestado no Porto de Tema, em Gana, por determinação do Poder Judiciário ganense, como ato executório de uma dívida de credor norte-americano, declarada por um Tribunal de Nova York10. De forma muito resumida, a decisão cautelar, que teve como relator o Juiz J. H. Paik, entendeu que o Estado de Gana não defendia nenhum direito próprio, e não teria qualquer prejuízo com a liberação do navio. Além disso, a própria delegação de Gana teria reconhecido, perante o Tribunal, que o navio-escola argentino se enquadra no conceito de “navio de guerra”11.
O caso “Artic Sunrise” tornou-se bastante conhecido na Imprensa em todo o mundo, por concernir a uma embarcação da Organização não Governamental “Greenpeace”, de bandeira holandesa, apreendido (inclusive com a detenção de todos os tripulantes) pela Rússia.
O caso foi iniciado pelos Países Baixos, porém a Rússia recusou a jurisdição do Tribunal, por entender que o caso em questão era de mera aplicação do direito interno russo, inclusive criminal12. Mesmo assim, o Tribunal deu prosseguimento ao caso e determinou, em medida cautelar de 22/11/2013, por 19 votos a 2, a imediata liberação do navio e a libertação dos tripulantes ilegalmente detidos na Rússia13.
O caso “Ucrânia x Rússia” teve início em 16/04/2019 (antes, portanto, da mal denominada “guerra” iniciada em 2022, com a efetiva violação territorial), com a reclamação da Ucrânia contra a detenção ilegal de embarcações de sua Marinha, inclusive com a prisão de tripulantes. Também neste caso, a manifestação da Rússia foi pela recusa da competência do Tribunal para a questão. Apesar disso, também neste caso foram deferidas medidas cautelares.
Conclusão
Deste breve escorço, pode-se perceber que o Tribunal do Mar é instituição de grande importância, vocacionada a solucionar conflitos entre Estados, concernentes às questões marítimas. Apesar de ser relativamente recente, quando comparado a outras Cortes internacionais mais consolidadas, o Tribunal demonstra estar capacitado a prover soluções justas e rápidas para as controvérsias de direito público entre Estados signatários da UNCLOS.
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1 MARTINS, Eliane M. Octaviano. Curso de Direito Marítimo, vol. I, 4ª ed. Barueri, Manole, 2013, p. 5.
2 MARTINS, Eliane M. Octaviano, op. e loc cit.
3 O art. 17 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS) assegura o direito de passagem inocente aos “navios de qualquer Estado, costeiro ou sem litoral”.
4 CAMPOS, Ingrid Zanella de Andrade. Direito Constitucional Marítimo. Curitiba: Juruá, 2011, p. 97. Não sublinhado nem destacado no original.
5 O Decreto-lei 25, de 1966, alterou a Lei 2.180/54, incluindo tal previsão.
6 Disponível aqui.
7 Disponível aqui, acesso em 13/04/14.
8 Disponível aqui, acesso em 13/04/14.
9 Disponível aqui, acesso em 13/04/14.
10 Informações extraídas da petição apresentada pelo Governo de Gana, disponível no site do Tribunal (Disponível aqui, acesso em 13/04/14).
11 Resumo feito a partir da Declaração de Voto do Juiz-Relator, lida no Tribunal em 15/12/2012 e disponível no site do Tribunal (Disponível aqui, acesso em 13/04/14).
12 Conforme Nota Diplomática enviada, ao Tribunal, pelo Embaixador russo em Berlim, em 22/10/2013, cópia disponível no site do Tribunal (Disponível aqui, acesso em 13/04/14).
13 Decisão disponível no site do Tribunal (Disponível aqui, acesso em 13/04/14).