Migalhas Marítimas

Direito Marítimo e Arbitragem II – Oportunidades no horizonte

O PL 3.293/2021 pretende modificar algumas premissas bastante importantes para o regular funcionamento da arbitragem no país.

25/8/2022

Em artigo publicado em 16/09/2021 nesta coluna1, o tema da arbitragem envolvendo matérias de Direito Marítimo foi comentado brevemente, sendo destacadas algumas vantagens decorrentes da adoção de cláusulas arbitrais em contratos marítimos. Foram mencionados avanços legislativos em direção a um maior estímulo às arbitragens em território nacional, bem como a possibilidade de utilização de arbitragens para questões específicas, tais como débitos de tarifas portuárias (art. 62, § 1º, da lei 12.815/20132) e contratos de salvamento marítimo (decreto 8.814/20163).

Anteriormente, em artigo publicado em 23/06/2021, também nesta coluna4, o tema da arbitragem foi novamente abordado, mas sob a perspectiva de uma proposta de regulamentação (SEI 1.492.999) de um procedimento administrativo no âmbito da Agência Nacional de Transportes Aquaviários ("ANTAQ"), por meio do qual servidores da própria agência passariam a atuar na resolução de conflitos entre agentes do setor, desde que envolvendo direitos disponíveis, tais como a aplicação de regras contratuais, fornecimento de serviços portuários, circularização e bloqueio de afretamentos.

Por fim, no último artigo publicado nesta coluna em 18/08/20225, foi abordado o assunto das cláusulas escalonadas de mediação-arbitragem nos contratos marítimos tanto no âmbito nacional, quanto internacional, sendo destacadas as vantagens e características específicas da mediação, notadamente a preservação da relação comercial entre os agentes e a celeridade e menores custos em relação à própria arbitragem. A mediação, como destacado no texto, oferece uma verdadeira janela de oportunidades para o comércio marítimo internacional, sendo capaz de harmonizar as relações comerciais entre os agentes do setor.

O assunto da arbitragem marítima continua em destaque no setor e merece ser revisitado com novos comentários por razões que passam a ser expostas a resumidamente a seguir. Primeiramente porque, como vem sendo objeto de intenso debate na comunidade arbitral, o PL 3.293/2021 ("PL 3.293/2021") pretende modificar algumas premissas bastante importantes para o regular funcionamento da arbitragem no país.

A título de exemplo, de acordo com a proposta, a atuação dos árbitros estaria restrita a um determinado número máximo de procedimentos ("o árbitro não poderá atuar, concomitantemente, em mais de dez arbitragens, seja como árbitro único, coárbitro ou como presidente do tribunal arbitral"). Além disso, sob o fundamento de que seria necessário impedir a repetição dos mesmos árbitros em diferentes Tribunais Arbitrais, o PL estabelece que "não poderá haver identidade absoluta ou parcial dos membros de dois tribunais arbitrais em funcionamento, independentemente da função por eles desempenhada".

Como se não bastasse, o dever de revelação imposto aos árbitros se tornaria mais abrangente, sendo previsto que "a pessoa indicada para funcionar como árbitro tem o dever de revelar, antes da aceitação da função e durante todo o processo a quantidade de arbitragens em que atua, seja como árbitro único, coárbitro ou presidente do tribunal, e qualquer fato que denote dúvida mínima quanto à sua imparcialidade e independência". O conceito de dúvida "justificada" atualmente existente na lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem") seria alterado, assim, para dúvida "mínima", ampliando consideravelmente as hipóteses de questionamento da imparcialidade e independência dos árbitros.

 

Por fim, o PL 3.293/2021 pretende ainda retirar o segredo de justiça das ações anulatórias, contrariando nesse aspecto o próprio Código de Processo Civil, que em seu artigo 189, inciso IV, determina que tramitarão em segredo de justiça os processos que "versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo". 

Ainda que a arbitragem seja passível de críticas e haja possibilidade de aprimoramentos em diversos pontos, as alterações propostas pelo PL 3.293/2021 assustaram a comunidade jurídica diante do risco de inviabilizar ou, no mínimo, esvaziar o instituto. O projeto acaba limitando a liberdade das partes para escolher árbitros e ampliando as hipóteses de anulação, o que acabará resultando em maior insegurança jurídica, e, em última análise, desestimulando a utilização da arbitragem no País, obrigando as partes a alterar a sede da arbitragem para o exterior. Consequentemente, a possibilidade de utilização da arbitragem no País para solução de controvérsias relacionadas ao Direito Marítimo poderá ser igualmente afetada, em caso de aprovação do PL 3.293/2021.6

O segundo motivo pelo qual a arbitragem marítima merece novas reflexões é, na realidade, diametralmente oposto ao acima, sendo representado pelo incremento da possibilidade de utilização da arbitragem para solução de controvérsias em contratos de afretamento de embarcações no Brasil. Isso porque, como vem sendo destacado na comunidade jurídica, a Petrobras, uma das maiores afretadoras de embarcações do País, e que até passado recente utilizava, em sua grande maioria, cláusulas de eleição de foro judicial em seus contratos, tem passado a incluir cláusulas compromissórias prevendo a adoção da arbitragem como meio de resolução de conflitos com empresas fretadoras de embarcações e prestadores de serviços que atuam no setor marítimo.

Na prática, essa alteração fará com que uma série de controvérsias que anteriormente seriam decididas pelo Poder Judiciário passem a ser remetidas a um Tribunal Arbitral ou a um Árbitro Único, dependendo geralmente do valor envolvido. Será importante, assim, acompanhar a formação de um novo conjunto de decisões, dessa vez, proferidas em arbitragem, a respeito de temas que estavam originalmente concentrados no Poder Judiciário, especialmente na Comarca do Rio de Janeiro.

Sobre esse aspecto, será preciso avaliar se ocorrerá a formação de uma série de decisões arbitrais semelhantes, de modo a se criar uma "jurisprudência arbitral", tal como ocorre no Poder Judiciário, ou se a própria possibilidade de previsão pelas partes de confidencialidade da arbitragem acabará tornando mais difícil a formação e interpretação de um conjunto de decisões8. Como visto, este ponto também poderá ser impactado pela aprovação o PL 3.293/2021, que pretende garantir a observância da publicidade nas arbitragens.

Será também importante avaliar se o maior grau de especialização dos árbitros na matéria objeto da disputa refletirá em uma maior qualidade das decisões a respeito de temas bastante específicos relacionados à indústria marítima e de óleo e gás. Do mesmo modo, será interessante notar em quanto tempo serão decididas essas controvérsias, a fim de confirmar a expectativa de maior celeridade da arbitragem como meio de resolução de conflitos em comparação com o Poder Judiciário, tema especificamente sensível ao setor marítimo, que é inerentemente dinâmico em razão da natureza de suas atividades.

Por fim, em terceiro e último lugar, a arbitragem envolvendo Direito Marítimo é também merecedora de nova reflexão em razão da sua utilização recorrente no âmbito internacional, reforçando as potencialidades do instituto na seara marítima, que já constitui a prática na indústria. Apenas a título de exemplo, de acordo com a London Maritime Arbitrators Association ("LMAA"), principal instituição da área no cenário internacional, em 2021, foram nomeados 2.777 árbitros para condução de arbitragens marítimas, além de terem sido proferidas 531 sentenças arbitrais9. Muito embora tais números não reflitam o número de procedimentos efetivamente instaurados, eles indicam a expressividade do uso desse método de solução de disputas no âmbito global. A Câmara de Arbitragem Marítima de Singapura, por sua vez, que registrou 37 procedimentos arbitrais ao longo de 202110 e a Comissão Chinesa de Arbitragem Marítima registrou 110 casos no ano de 202011.

Em resumo, ao que tudo indica, e a despeito dos riscos trazidos pelo PL 3.293/2021, os agentes do setor marítimo, bem como os demais especialistas da área, ainda terão um longo caminho para utilização, construção e aprimoramento da arbitragem marítima no Brasil, buscando maior celeridade, especialidade e economia de custos, resultando possivelmente na criação de um ambiente jurídico mais seguro e próximo das necessidades da indústria marítima no país.

Referências

CREMASCO, Suzana; BRENDOLAN, Paula Regina. "O PL Antiarbitragem e o risco de esvaziamento da arbitragem no Brasil".

MUNIZ, Joaquim de Paiva. "PL antiarbitragem é remédio que pode matar o paciente".

MOREIRA MARQUES, Marcelo Silva. "A vez da mediação marítima no Brasil: a cláusula escalonada mediação-arbitragem nos contratos marítimos". Disponível aqui.

CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino de. Breves notas sobre arbitragem marítima e portuária. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 12, n. 46, p. 171-190, abr./jun. 2014.

China Maritime Arbitration Association. Estatísticas de 2020. Disponível aqui.

Centro de Arbitragem e Mediação Brasil-Canadá. Fatos e Números 2021-2021. Disponível aqui.

London Maritime Arbitrators Association. Estatísticas de 2021. Disponível aqui.

Singapore Chamber of Maritime Arbitration. 2021 Year in Review. Disponível aqui.

__________

1 Disponível aqui.

2 "Art. 62. O inadimplemento, pelas concessionárias, arrendatárias, autorizatárias e operadoras portuárias no recolhimento de tarifas portuárias e outras obrigações financeiras perante a administração do porto e a Antaq, assim declarado em decisão final, impossibilita a inadimplente de celebrar ou prorrogar contratos de concessão e arrendamento, bem como obter novas autorizações. § 1º Para dirimir litígios relativos aos débitos a que se refere o caput, poderá ser utilizada a arbitragem, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. (Regulamento)"

3 "Artigo 2º - Aplicação da Convenção - Esta Convenção deverá aplicar- se  sempre que processos judiciais ou arbitrais, relacionados com assuntos tratados por esta Convenção, sejam instaurados em um Estado Parte".

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou o requerimento de realização de uma audiência pública para debater o PL nº 3.293/2021.

7 Devido à sua natureza como sociedade de economia mista, muitos dos contratos celebrados pela Petrobras são disponibilizadas ao público em geral, permitindo o acesso às informações indicadas acima. 

8 CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino de. Breves notas sobre arbitragem marítima e portuária. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 12, n. 46, p. 171-190, abr./jun. 2014.

9 Dados disponíveis aqui.

10 Conforme dados divulgados no último relatório da instituição, disponível no seguinte endereço eletrônico.

11 Dados disponíveis aqui.

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.