Migalhas Marítimas

A vez da mediação marítima no Brasil: a cláusula escalonada mediação-arbitragem nos contratos marítimos

Marcelo Silva Moreira Marques

Cerca de 90% do comércio internacional é feito pelo mar, sendo que 99% dos contratos marítimos já contém a cláusula compromissória fazendo escolha pela arbitragem, tudo com o objetivo de garantir a segurança jurídica.

18/8/2022

Cerca de 90% (noventa por cento) do comércio internacional é feito pelo mar, sendo que 99% (noventa e nove por cento) dos contratos marítimos1, normalmente padronizados, já contém a cláusula compromissória fazendo escolha pela arbitragem, tudo com o objetivo de garantir a segurança jurídica por meio da decisão de especialistas quando há necessidade de resolução dos conflitos.                    

O fato de serem contratos padrões, não significa que sejam contratos de adesão, havendo espaço para negociar inserção da cláusula escalonada mediação-arbitragem, como defenderemos em seguir.

Como é cediço, o direito marítimo é dotado de uma especificidade tamanha que passa ao largo, de uma maneira geral, das grades curriculares dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito.

Somado a isso, sabe-se que muitos operadores do direito em atuação, sejam Advogados, Juízes e membros do Ministério Público são formados nos bancos das Faculdades de Direito na cultura da litigiosidade, em prejuízo da consensualidade, o que requer uma mudança cultural e no meio acadêmico pelos motivos que passaremos a expor.

A morosidade do Poder Judiciário é uma realidade de décadas em todo mundo, bem como a falta de conhecimento técnico específico dos magistrados no Direito Marítimo, pelas causas acima apontadas. Isso trouxe como efeito colateral positivo ao longo dos anos, especialmente no Direito Marítimo, a inserção das cláusulas compromissórias nos contratos regulados pelo acima mencionado ramo do direito.

Tal fato, permitiu o desenvolvimento da formação de árbitros especializados nos conflitos marítimos e, consequentemente, o desenvolvimento da arbitragem para solução adequada de conflitos daí decorrentes, inclusive "a arbitragem se mostra consolidada no Direito Marítimo desde o final da década de 1980 e segue sendo prevista nos modelos de contratos mais recentes".2

Maior margem de acerto da decisão do árbitro, quando em comparação com o juiz togado normalmente neófito na temática marítima, menor tempo ao menor custo para solução do conflito, se compararmos com a clássica judicialização do conflito, são aspectos relevantes que explicam o progresso das cláusulas compromissórias de arbitragem nos contratos regulados pelo Direito Marítimo.

A partir da década de 1990, câmaras de arbitragem clássicas como o The London Maritime Arbitrators Association (LMAA) e a Singapore Chamber of Commerce (SCMA) começam a abrir espaço para a mediação como meio adequado de solução de conflitos regulados pelo Direito Marítimo.

Como nos lembra Menon, incluiu-se cláusulas de mediação no âmbito da Baltic and International Maritime Council (BIMCO) Standard Law and Arbitration Clause, assim como no EUROMED Charter Party, que inclusive prevê o escalonamento da mediação para arbitragem caso não haja um acordo em 35 dias.3

A Society of Maritime Arbitrators (SMA) também contém previsão de mediação e conciliação, tanto na câmara quanto no próprio regulamento, sendo a mediação confidencial e voluntária e, quase sempre, realizada na cidade de Nova Iorque, conforme se constata da leitura dos artigos 4º e 6º do respectivo regulamento.

Quanto a Singapore International Mediation Centre (SIMC), basta seja formalizado o pedido de mediação no site da referida instituição, o que poderá redundar numa mediação feita com profissionais internos ou externos, mas sempre a mediação é realizada na Cidade de Singapura. A LMAA, por sua vez, tem um rol de mediadores em parceria com o BIMCO.

No contexto da pandemia (COVID-19), ganhou escala a mediação on line (virtual), tudo em virtude da flexibilidade e celeridade do procedimento, por meio de softwares modernos de videoconferência que tem a capacidade de simular uma sessão presencial.4

Nos termos em que nos ensina Levy, "cláusulas escalonadas são cláusulas que preveem a utilização sequencial de meios alternativos de soluções de controvérsias, inseridos num contexto de múltiplas etapas, utilizando dois ou mais mecanismos de solução do conflito como, por exemplo, a negociação, a mediação e a arbitragem".5

Ocorre que a mediação tem características que falecem a arbitragem, notadamente um menor custo6, e que também podem ser úteis, mediante cláusula de escalonamento, a contribuir com a solução do conflito através da reconstrução da relação jurídica entre as partes conflitantes, a um menor tempo e custo que a arbitragem, senão vejamos:

"A experiência tem demonstrado que a utilização simultânea de mediação e arbitragem através da cláusula escalonada contribui bastante para preservar o bom entendimento entre os sócios, no ambiente comercial. A cláusula que prevê ambos os procedimentos mencionados em suas variações- med-arb, arb-med, arb-med-arb – traz vantagens pelo agrupamento de um método autocompositivo com um heterocompositivo.7"

Na sessão 73 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 2018, decidiu-se facilitar o comércio internacional por meio da mediação. Em 2019, em Singapura, assinou-se a Convenção das Nações Unidas sobre Acordos Comerciais Internacionais Resultante da Mediação, que alterou a Lei Modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (UNCITRAL) sobre Conciliação Comercial Internacional de 2002, para o fim de prever o acordo por mediação.

Nos termos em que dispõe o art. 7º da Lei Federal n. 13.140/2015 (Lei de Mediação Brasileira), não é possível a atuação do mediador como árbitro na solução do conflito em que já atuara na condição de mediador, nada obstante diversas câmaras de resolução de controvérsias não prevejam tal restrição. Entretanto, a segurança jurídica está a indicar que se impeça a acumulação das funções de mediador/árbitro, prevenindo eventuais nulidades da sentença arbitral.

No Direito Marítimo, tal como leciona Brewer, essa combinação mediação-arbitragem pode gerar maior efetividade na solução adequada dos conflitos à luz do princípio jurídico do custo-benefício,8 tanto que a SMA levou a termo uma cláusula padrão nos seguintes termos:

"Cláusula Modelo de Mediação/Arbitragem: Se surgir uma disputa sob este contrato, as partes podem concordar em buscar uma solução amigável dessa disputa por mediação sob as Regras de Mediação da Society of Maritime Arbitrators, Inc. (SMA) de Nova York então em vigor. Se houver uma mediação, mas não resultar em um acordo, ou se as partes não concordarem em mediar, a disputa será submetida à arbitragem perante três árbitros comerciais sob as Regras de Arbitragem da Sociedade de Árbitros Marítimos, Inc. (SMA ), um a ser nomeado por cada uma das partes e o terceiro pelas duas assim escolhidas e a sua decisão ou a de quaisquer duas delas será final e vinculativa. Alternativamente, as partes podem submeter a disputa a um árbitro comercial sob as Regras da SMA para Procedimento de Arbitragem Abreviada (“Regras Abreviadas da SMA”) cuja decisão será final e vinculativa. Em ambos os casos, o julgamento de tal sentença arbitral pode ser registrado no Tribunal Distrital Federal dos EUA para o Distrito Sul de Nova York.9"

Como se pode verificar na cláusula padrão acima, a mediação pode ser anterior ao procedimento arbitral, ou as partes podem optar por um ou outro método à luz das circunstâncias do caso concreto conflituoso.

A LMMA, por seu turno, igualmente disponibiliza serviços de mediação por meio da LMAA Mediation Panel e, também, através da LMAA/Bactic Exchange Mediation Panel, sendo certo que o item 9.4 do the LMAA Mediaton Terms (2002) possibilita que o mediador, em havendo consenso entre as partes conflitantes, transforme o termo de mediação em sentença arbitral, ou mesmo as partes podem submeter a homologação do tribunal arbitral, na hipótese de a arbitragem ter sido deflagrada anteriormente à mediação.

O artigo 12 do regulamento LMAA Mediation Terms regula, outrossim, o procedimento arbitral superveniente à mediação, assim como a viabilidade de início da arbitragem no curso da mediação, ou seja, concomitantemente, o que incrementa as possibilidades de solução célere ao conflito.

A cláusula de resolução de conflitos da BIMCO, no mesmo sentido da LMAA, estabelece a oportunidade de emprego tanto da mediação quanto da arbitragem. De outro lado, a SIMC, a SCMA e a Singapore International Arbitration Centre (SIAC) se irmanaram de modo a produzir um protocolo Arb-Med-Arb (AMA), em sede de disputas marítimas.

Merecem menções honrosas outras relevantes instituições que vem adotando a cláusula escalonada med-arb, tais como International Chamber of Commerce (ICC), Hong Kong International Arbitration Centre (HKIAC) e o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA).

À título de sínteses conclusivas, afirma-se que diante da falta de especialização da atividade jurisdicional no mercado shipping, somada a morosidade do Poder Judiciário, a celeridade e eficiência desejadas pelo Direito Marítimo estão mais bem atendidas com as cláusulas de escalonamento mediação-arbitragem, ou arbitragem-mediação-arbitragem (AMA).

Decisão mais célere, exarada por experimentados na temática marítima, e que permita a reconstrução da relação jurídica entres as partes à luz do princípio da consensualidade, e não da litigiosidade, são grandes legados das cláusulas de escalonamento mediação-arbitragem, ou arbitragem-mediação-arbitragem (AMA), o que torna o mercado marítimo mais seguro e rentável.

Constata-se no mercado de shipping brasileiro a paulatina inserção de cláusulas escalonadas nos contratos marítimos, o que está a demonstrar o potencial da mediação no segmento marítimo pátrio.

A mediação oferece uma janela de oportunidades para o comércio marítimo internacional pela sua eficácia, economicidade, celeridade e harmonização das relações comerciais entre os diversos atores jurídicos envolvidos.

__________

1 PEREIRA, Michele Cristie. Mediação em Contratos Marítimos. Instituto e Câmara de Mediação Aplicada. Disponível aqui.

2 PAIVA, Marcella; GUIMARÃES, Marcello; PAUSEIRO, Sérgio Gustavo de Mattos. A cláusula escalonada nos contratos de afretamento e nas charter-parties. Revista Brasileira de Alternative Dispute Resolution- RBADR, Belo Horizonte, ano 02, n.04, p.90.

MENON, Sundaresh. The Future of Maritime Dispute Arbitration Annual Conference, 2015, p. 27.

OWEN, David; PARRY, Angharad. The Go-Between: resolving disputes in uncertain times. A mediator’s perpective. Arbitration classics, Twenty Essex, boletim, maio de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 21/07/2022.

5 LEVY, Fernanda Rocha. Cláusula Escalonada: Mediação Comercial no Contexto da Arbitragem. São Paulo. Saraiva. 2013.

6 PEREIRA, Michele Cristie. Mediação em Contratos Marítimos. Op. Cit.

7 DEASON, Ellen E. Combinations of mediation and arbitration with the same neutral. A framework for judicial review. Y.B. on arbitration and mediation, v. 5, 2013, p. 224.

8 BREWER, Thomas J; MILLS, R. Combining Mediation and Arbitration. Dispute Resolution Journal, v. 4 n.54, 1999, p.34.

9 ARBITRATION, Society of Maritime (SMA). Maritimme and comercial dispute resolution. 8. Edition. NY: SMA, fev. de 2020.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.