Ao se discutir acerca da responsabilidade objetiva no direito brasileiro, importante ressaltar, antes mesmo de se adentrar especificamente no tema do transporte marítimo de cargas, que a responsabilidade civil como um todo, seja ela objetiva ou subjetiva, demandará três elementos para a sua existência, qual sejam: ato ilícito, dano e nexo de causalidade.
Sem a existência de um deles, especialmente do nexo de causalidade, a responsabilização de qualquer ato não se dará a termo, especialmente no que diz respeito à teoria da responsabilidade objetiva, ora foco desse artigo.
Nas palavras do professor Gustavo Tepedino:
"O dever de reparar depende da presença de nexo causal entre o ato culposo ou a atividade objetivamente considerada, e o dano, ao ser demonstrado, em princípio por quem o alega (onus probandi incumbit ei qui dicit, non qui negat), salvo nas hipóteses de inversão do ônus da prova previstas expressamente na lei, para situações específicas."1
De antemão já nos valemos dessa preciosa lição, pois, é sabido que o assunto encontra muitas opiniões contraditórias, principalmente daqueles que entendem que a reponsabilidade do réu, especialmente no que diz respeito à responsabilidade objetiva, o imputaria automaticamente culpado de qualquer infortúnio acometido nas mais variadas situações; contudo, imprescindível denotar a existência do nexo causal como elemento essencial na determinação da responsabilidade objetiva ou mesmo subjetiva em quaisquer atos cometidos pelo agente.
Entretanto, no âmbito do direito marítimo, o transportador de mercadorias, no que diz respeito à responsabilidade por danos à carga (cargo claims), deve comprovar o liame de causalidade entre o transporte que foi executado e a responsabilidade que se pretende ressarcimento, embora a legislação pátria, por muitas vezes, tenha entendido tratar-se de responsabilidade objetiva.
A responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga transportada não possui legislação internacional que pacifique, ou mesmo unifique o assunto. Algumas Convenções tergiversaram sobre o tema, tais como as Regras de Haia-Visby, as Regras de Hamburgo e as Regras de Rotterdam (essas últimas sequer entraram em vigor).
Todavia, o Brasil não contemplou nenhuma dos Tratados Internacionais anteriormente mencionados, e adota posicionamento doméstico no assunto, ou seja, aplica sua legislação interna para tratar das questões relacionadas à responsabilidade do transportador de mercadorias.
Os contratos de transporte no Brasil são disciplinados pelos princípios gerais que se relacionam a todos os contratos, que estão determinados nos arts. 730 a 733 e 743 a 753 do Código Civil, e por algumas legislações especiais, tal qual o Decreto-lei nº 116/67, que será analisado em momento oportuno.
O CC/02 estabelece as regras relativas ao contrato de transporte, principalmente de acordo com o que prevê o art. 732 do referido diploma legal, quando aduz: "Art. 732. Aos contratos de transporte, em geral, são aplicáveis, quando couber, desde que não contrariem as disposições deste Código, os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções internacionais."
A legislação especial e os tratados internacionais podem ser aplicados aos contratos de transporte marítimos, desde que não contrariem as disposições do CC/02.Eventualmente, pode-se atentar, inclusive, para a incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC).2
Alguns doutrinadores3 e parte da jurisprudência consideram que o contrato de transporte marítimo se assemelha também ao contrato de depósito. Aduz o art.519 do Código Comercial (lei 550/1850):
"Art. 519 – O capitão é considerado verdadeiro depositário da carga e de quaisquer efeitos que receber a bordo, e como tal está obrigado à sua guarda, bom acondicionamento e conservação e à sua pronta entrega à vista dos conhecimentos (arts. 586 e 587). A responsabilidade do capitão a respeito da carga principia a correr desde o momento em que a recebe, e continua até o ato da sua entrega no lugar que se houver convencionado, ou que estiver em uso no porto da descarga."
Este tipo de contrato trata especificamente à guarda de coisa. Todavia, o contrato de transporte marítimo não pode ser comparado, em nenhuma hipótese, ao contrato de depósito, por conta dos riscos de ambos os contratos serem totalmente diferentes.
Com relação ao conhecimento de embarque marítimo (Bill of Lading– BL), este é regulado pelos arts. 575 a 589 do Código Comercial (CCom) e nos decretos 14.473/30 e 20.454/31, embora a doutrina divirja quanto à natureza jurídica do BL, parte acreditando se tratar de contrato de transporte, parte considerando ser o BL evidência escrita do contrato de transporte.
Sempre oportuno reiterar que no direito brasileiro, as partes são livres para estabelecer o contrato de forma livre, desde que aquele não seja vedado pela legislação em vigor, seja na sua forma ou mesmo no seu conteúdo.
Vale ressaltar quais são as partes participantes do contrato de transporte marítimo de cargas, quais sejam: o embarcador, também chamado de exportador ou shipper, que deverá observar a carga a ser transportada. Pode-se afirmar que o embarcador "é o responsável por danos pré-embarque pela má estivação da carga da carga no contêiner".4
Outra parte a ser identificada no contrato marítimo é o consignatário, conhecido também por importador ou consignee, que é a pessoa a quem estão endereçadas as mercadorias, aquela que adquiriu os bens.
Nesse ínterim, importante destacar o que aduz o Decreto Lei n° 116 de 25 de janeiro de 1967, já citado anteriormente, quando declara:
"Art.1º As mercadorias destinadas ao transporte sobre água, que antes ou depois da viagem forem confiadas à guarda e acondicionamento dos armazéns das entidades portuárias ou trapiches municipais, serão entregues contrarrecibo passado pela entidade recebedora à entregadora (...)
§3º Os volumes em falta, avariados ou sem embalagem ou embalagem inadequada ao transporte por água, serão desde logo ressalvados pelo recebedor, e vistoriados no ato da entrega, na presença dos interessados."5
O decreto-lei ora sob os holofotes também conceitua a respeito do transportador marítimo, o carrier, que é a pessoa responsável por efetuar o transporte das mercadorias do porto de embarque ao porto de destino. Esta previsão está contida no art. 3º.§1º do mencionado diploma legal:
"Art.3º A responsabilidade do navio ou embarcação transportadora começa com o recebimento da mercadoria a bordo, e cessa com a sua entrega à entidade portuária ou trapiche municipal, no porto de destino, ao costado do navio.
§1ºConsidera-se como de efetiva entrega a bordo, as mercadorias operadas com os aparelhos da embarcação, desde o início da operação, ao costado do navio."
Neste ponto reside a grande celeuma relativa à responsabilidade do transportador marítimo perante a legislação brasileira, vez que o Código Civil determina ser essa responsabilidade objetiva em face do consignatário da carga. Em que pese o ditame legal, não há como se considerar tal responsabilidade absoluta, pois, para que esta ocorra é necessário que estejam presentes os elementos que irão determinar a responsabilidade objetiva, quais sejam: o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade.
Nas palavras da professora Maria Helena Diniz:
"O ato ilícito é o praticado culposamente em desacordo com a norma jurídica, destinada a proteger interesses alheios; é o que viola direito subjetivo individual, causando prejuízo a outrem, criando o dever de repara tal lesão. Para que se apresente o ilícito será imprescindível um dano oriundo de atividade culposa."6
Pode-se afirmar, portanto, que o ato ilícito é um instituto derivado de um ato ilegal, ou ainda ilícito, que cause prejuízo a terceiros, e seja passível de indenização.
Outro elemento do trinômio caracterizador da responsabilidade objetiva é o dano, que pode ser originário de uma ação ou omissão do agente provocador, seja essa lesão provocada por meio de dolo, negligência, imperícia ou imprudência.
Por fim, tem-se o nexo de causalidade, qual seja, o elo, o liame entre o ato ilícito que foi praticado e os danos sofridos, os quais se deseja o ressarcimento.
Valemo-nos novamente da lição da professora Maria Helena Diniz, quando ensinou sobre o nexo de causalidade:
"Não poderá existir (nexo de causalidade) sem o vínculo entre a ação e o dano. Se o lesado experimentar dano, mas este não resultou de uma conduta do réu, o pedido de indenização será improcedente. Será necessária a inexistência de causa excludente de responsabilidade como p. ex., ausência de força maior, de caso fortuito ou de culpa exclusiva da vítima(...). Realmente não haverá relação de causalidade se o evento se deu p. ex por culpa exclusiva da vítima ou por culpa concorrente da vítima."7
A doutrina de Caio Mário da Silva Pereira corrobora com esse entendimento ao lecionar:
"Cabe, todavia, não levar a extremo de considerar que todo dano é indenizável pelo fato de alguém desenvolver uma atividade. Aqui é que surge o elemento básico, a que já acima me referi: a relação de causalidade. Da mesma forma que na doutrina subjetiva, o elemento causal é indispensável na determinação da responsabilidade civil, também na doutrina objetiva o fenômeno há de ocorrer. A obrigação de indenizar existirá como decorrência natural entre o dano e a atividade criada pelo agente. O vínculo causal estabelecer-se-á entre um e outro. Num dos extremos está o dano causado. No outro, a atividade causadora do prejuízo."8
A teoria da responsabilidade objetiva, portanto, poderá ser determinada a partir da ocorrência da nocividade somada ao nexo causal, pois irá acarretar automaticamente na responsabilização do agente, tenha ele agido com dolo ou culpa. "É irrelevante a conduta culposa ou dolosa do causador da perda, uma vez que bastará a subsistência do nexo causal entre o agravo sofrido para que haja o dever de indenizar. A obrigação de indenizar, em regra, não ultrapassa os limites traçados pela conexão causal".9
A demonstração da presença do nexo no liame da responsabilização do agente causador de um dano é reforçada pelo art. 373 do Código de Processo Civil de 2015, quando determina: "Art. 373. O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito."10
Haja vista a legislação vigente e o posicionamento doutrinário mais ilustre, relevante apontar o que vêm decidindo os Tribunais Superiores do país quando da responsabilização do transportador marítimo de mercadorias. O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo manifestou sua decisão em momento oportuno, que reproduzimos a seguir:
Apelação. Ação de regresso que visa o recebimento de valor pago pela seguradora. Transporte marítimo de cargas. Arguição de ilegitimidade de parte passiva. Inadmissibilidade. CDC. Não incidência. Alegação da Autora de que a transportadora marítima deu causa aos prejuízos sofridos pela segurada que teve sua carga avariada. Não comprovação dos fatos constitutivos do seu direito. Preliminar rejeitada. Recurso provido.
(...) Não houve prova de que a mercadoria sofreu avaria durante a custódia da transportadora apelante e tampouco de que a transportadora terrestre tivesse recebido a mercadoria com avarias, mormente porque ela assumiu o ônus decorrente da desistência de vistoria aduaneira.
Conclui-se, portanto, que a autora não se desincumbiu de provar que a culpa pela avaria parcial da carga foi do transportador marítimo, ou seja, que a apelante tenha concorrido para a ocorrência do dano causado na carga segurada, conforme alegado na inicial.
Existindo relação jurídica nos moldes do art,333, I, do CPC, incumbia à autora comprovar o fato constitutivo de seu direito, ou seja, de que o valor pago à segurada correspondeu aos prejuízos ocorridos na mercadoria transportada e que foi a transportadora marítima quem deu causa aos danos por ela apontados. Ao contrário, limitou-se a afirmar na inicial que após a comunicação do sinistro a indenização para a sua segurada, sub-rogou-se em todos os seus direitos e ações com relação aos referidos sinistros, conforme recibo de quitação anexo.
Por conseguinte, ausente os requisitos da configuração do ato ilícito, para a caracterização da responsabilidade civil, eis que necessária a demonstração da culpa ou dolo do agente, bem como do nexo causal, não há como imputar-lhe a obrigação indenizatória."11
Entendimento similar teve o Eg. Tribunal de Justiça do Paraná, ao concluir que se não houver comprovação sobre o fato constitutivo do direito da parte autora, ou do nexo de causalidade entre o dano (avaria na carga) e as obrigações inerentes ao transporte executado pela ré, não há que se arguir sobre responsabilidade, senão vejamos:
"Apelação Cível. Ação Regressiva de ressarcimento. Seguradora Sub-rogada nos direitos da segurada. Avarias nas mercadorias transportadas. Transporte marítimo. Ausência de recibo da mercadoria. Presunção de produto em perfeito estado. Inexistência de recusa da seguradora. Responsabilidade da transportadora limitada a entrega do bem. Culpa e nexo de causalidade não comprovados. Recurso desprovido.
Não subsiste a obrigação de indenizar quando a parte não se desincumbe do ônus da prova, da culpa e do nexo de causalidade entre o transporte e o dano, inteligência do art. 333, I, do Código de Processo Civil. Recurso Conhecido e Não Provido."12
Acrescenta-se a este artigo mais uma decisão que edifica o posicionamento dos Tribunais Superiores quando julgam a respeito da importância da existência do nexo causal com relação ao pagamento ou não das seguradoras, no que diz respeito ao transporte marítimo de cargas. Decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo:
"Transporte marítimo. Cargas. Avarias. Ausência de provas hábeis de que tenham ocorrido enquanto as mercadorias estavam sob a custódia do transportador. Ação improcedente. Se dos próprios documentos juntados pela Autora não se consegue definir onde e quando ocorreram as avarias, impossível cogitar da responsabilidade do transportador. Recurso não provido."13
Finalmente quedamo-nos ao entendimento da 23ª Câmara de Direito Privado de São Paulo que decidiu:
"Ação Regressiva - Transporte marítimo avaria parcial na carga transportada – Alegação de que houve furo no contêiner que ocasionou a molhadura da parte da mercadoria documentos acostados aos autos insuficientes para assegurar que o furo ocorreu durante o transporte ou mesmo que essa foi a causa da molhadura da mercadoria inutilizada pela importadora – Responsabilidade objetiva da transportadora que não afasta o dever da autora apontar nexo de causalidade, o que inexistiu na hipótese – Autora que não se desincumbiu do ônus de provar o fato constitutivo do seu julgado – Ação julgada improcedente – Sentença reformada – Recurso provido.14
Em face o posicionamento demonstrado acima, adotado pelos Tribunais Superiores que, desconsideraram a responsabilidade objetiva no tocante ao transporte marítimo de cargas, devendo o autor demonstrar que houve o nexo causal gerador do dano, repartimos da mesma opinião e, entendemos que esta deva ser uníssona não somente em toda jurisprudência, como no ordenamento jurídico como um todo.
A teoria da responsabilidade objetiva não pode servir como meio de fazer com que o autor não cumpra com sua obrigação legal e esconda-se atrás de ditames legais para se furtar com o cumprimento de suas responsabilidades, cabendo sempre ao transportador apontar que não deu causa aos danos ocorridos.
__________
1 GustavoTepedino, Notas sobre o nexo de causalidade.
2 Eliane M. Octaviano Martins, Direito Marítimo: estudos em homenagem a circum-navegação de Fernão de Magalhães, p.218.
3 Paulo Campos Fernandes e Lucas Leite Marques, Responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga – releitura da legislação aplicável.
4 Luiza Neves Silva Chang, A limitação da responsabilidade civil do transportador marítimo: a necessidade de comprovação do nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva.
5 Brasil, Decreto -Lei nº 116 de 25 de janeiro de 1967.
6 Maria Helena Diniz, Direito Civil Brasileiro, p.50.
7 Idem, p.54.
8 Caio Mario da Silva Pereira, Responsabilidade Civil, p.289
9 Maria Helena Diniz, Direito Civil Brasileiro, p. 132.
10 Brasil. Lei 13.105/2015, de 16 de março de 2015.
11 TJ SP – 37ª Câmara de Direito Privado, Rel Des Pedro Kodama, AC 1003915-12.2015.8.26.0003, deram provimento ao Recurso, v.u., J.06.10.2015, DJe. 14.10.2015.
12 TJ PR, AC nº 440.136-5, 9ª Câmara Cível, Rel. Des. Rosana Amara Girardi Fachin, recurso não provido, votação unânime, J. 13.03.2008.
13 TJ SP – 11ª Câmara de Direito Privado, Rel Des Gilberto dos Santos AC 7.279.030-6, negaram provimento ao Recurso, J. 13.11.2008, DJ 25.11.2008.
14 TJ SP – 23ª Câmara de Direito Privado. Relator: Paulo Roberto Santana AC 1024437-61.2017.8.26.0562.