Migalhas Marítimas

Impactos do conflito entre Rússia e Ucrânia - II: breves reflexões sobre caso fortuito, força maior ou onerosidade excessiva

O prolongamento do conflito enseja novas reflexões sob o aspecto contratual, agora com maior enfoque nas excludentes de responsabilidade, como o caso fortuito e a força maior, e nos mecanismos de reequilíbrio contratual, em especial a onerosidade excessiva.

21/7/2022

Em artigo anteriormente publicado nesta coluna, foram analisados brevemente os impactos do conflito entre Rússia e Ucrânia, com enfoque nas cláusulas contratuais que geralmente nessas situações são objeto de discussão entre os agentes do setor, tais como a cláusula de Porto Seguro ("safe port clauses") e de risco de guerra ("war risk clauses").

O prolongamento do conflito, que continua gerando entraves relevantes em alguns setores da economia, enseja, porém, novas reflexões sob o aspecto contratual, agora com maior enfoque nas excludentes de responsabilidade, como o caso fortuito e a força maior, e nos mecanismos de reequilíbrio contratual, em especial a onerosidade excessiva.

É que, passados quase cinco meses desde o início do conflito, os impactos nas diversas cadeias de fornecimento tornam-se bastante variados, afetando não apenas o comércio internacional marítimo, mas também outros contratos, cujos objetos estão relacionados, no todo ou em parte, a insumos ou matérias-primas trazidas dos países em conflito por embarcações.

O conflito está localizado no leste europeu, mas seus efeitos são globais. A interdependência entre fornecedores e clientes presentes em diversos continentes, assim como a dependência que possuem do transporte marítimo de cargas, torna a análise de contratos do setor marítimo de especial relevância nesse contexto.

A começar pelo aumento dos custos do frete marítimo, com impactos imediatos no preço das mercadorias e insumos importados da região. A dificuldade de acesso ao mar negro, as sanções e embargos impostos contra a Rússia, a destruição de infraestruturas relevantes na Ucrânia e o aumento dos preços dos seguros são alguns dos fatores que explicam o incremento desses custos desde fevereiro deste ano, como publicado recentemente pela imprensa.

Como se não bastasse, em razão desses aumentos de preço, há casos em que o próprio cumprimento de obrigações pactuadas antes do início do conflito torna-se mais oneroso, ou até mesmo impossível na forma e no prazo originalmente acordados, ensejando problemas contratuais de extrema relevância.

Merecem especial atenção no Brasil, nesse contexto, os conceitos de caso fortuito ou força maior e de onerosidade excessiva, além da boa-fé objetiva que deve sempre nortear as partes na conclusão e na execução do contrato.

Diante da amplitude do conceito de caso fortuito ou força maior — fato necessário cujos efeitos não podem ser evitados ou impedidos — os contratos de longo prazo e que tenham sido negociados, ou seja, que não sejam de adesão ou sigam cláusulas modelo, costumam conter disposições mais detalhadas.

Notadamente, as partes procuram definir os eventos que possibilitarão a suspensão ou mesmo a extinção de obrigações, principalmente após determinado prazo de duração do evento de caso fortuito ou força maior. A depender do tipo de contrato, a continuidade de um evento de caso fortuito ou força maior por 90 dias, 150 dias, 180 dias, ou outro que as partes tenham convencionado, pode gerar a rescisão do contrato.

Nesse sentido, é preciso ter cautela com a tentativa de caracterização de uma determinada situação como caso fortuito ou força maior, sendo recomendável uma análise de cada situação específica para que se verifique se há, ou não, relação entre o evento e a impossibilidade temporária ou permanente de cumprimento das obrigações contratuais da forma como foram pactuadas.

Em muitas hipóteses, tratando-se de um conflito armado ou guerra, a tendência pode ser de uma das partes alegar força maior ou caso fortuito sem maiores reflexões sobre a consequência dessa alegação. Por outro lado, cabe à parte eventualmente notificada também avaliar essa caracterização.

Por exemplo, é importante avaliar: (i) se no momento da celebração do contrato, os efeitos do alegado evento de força maior ou caso fortuito em relação às obrigações assumidas pelas partes foram, de fato, inevitáveis, considerando o seu objeto, bem como (ii) se as suas consequências poderiam ser gerenciadas pelas partes a partir das ferramentas contratuais e legais disponíveis, em prol da continuidade da prestação.

Caso seja possível prever, afastar ou até mesmo mitigar os impactos contratuais decorrentes do evento, seja implementando uma rota alternativa, seja adquirindo um determinado componente ou insumo de outra localidade não afetada pelo conflito, tais aspectos costumam ser levados em consideração. Evidentemente, as circunstâncias do caso concreto, notadamente o objeto e o prazo da contratação, terão especial relevância na definição das questões controvertidas.

Em muitas situações, será possível o cumprimento da obrigação com alguns ajustes. Nesse caso, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá haver a possibilidade de repactuação.

Nos casos em que os efeitos causados pelo evento na relação contratual envolvam aumento de prazos ou de custos, incluindo preços de combustíveis, frete ou seguro, o conceito de onerosidade excessiva poderá ser mais aplicável do que o de caso fortuito ou força maior, cabendo às partes avaliarem a possibilidade de revisão dos termos e condições contratuais ou, na falta de um acordo, de sua rescisão.

Mais especificamente, se os efeitos do evento de força maior ou caso fortuito perdurem e tragam desequilíbrio à chamada base objetiva do contrato, será possível avaliar se os custos adicionais incorridos pelo contratante para mitigar os impactos contratuais de tal evento deverão ser, parcial ou totalmente, objeto de ressarcimento pela outra parte, o que somente será possível avaliar em cada contratação.

Não obstante essa possibilidade, é importante que esses conceitos não sejam utilizados de forma imprópria, configurando abuso de direito. O CC/02 estabelece que também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Da mesma forma, os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, devendo, em regra, ser atribuído o sentido que corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.

No caso dos contratos marítimos, em especial, serão relevantes também os usos e costumes do comércio internacional marítimo, podendo se avaliar tais questões contratuais também com base na experiência acumulada pelo setor marítimo em conflitos, guerras e outros eventos semelhantes ocorridos no passado.

A única certeza, porém, é que não há resposta simples e automática para os efeitos do conflito envolvendo Rússia e Ucrânia. A depender da situação específica, poderão ser aplicáveis diferentes conceitos do direito contratual, devendo-se observar sempre a boa-fé objetiva e evitar o abuso de direito, sob pena de inviabilizar a colaboração entre os parceiros comerciais e gasto de tempo e recursos com litígios que poderiam ser evitados.

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.