Migalhas Marítimas

Safety, security e as muitas incompreensões sobre o conceito de “segurança”: O que nos diz o direito marítimo?

Sérgio Ferrari fala Safety, security e as muitas incompreensões sobre o conceito de “segurança”: O que nos diz o direito marítimo?

30/6/2022

Eu gostaria de saber porque, no Brasil, bombeiro sai pra apagar fogo portando uma arma de fogo”.  Ouvi esta pergunta quando criança – possivelmente feita pela minha mãe – e, passadas algumas décadas, confesso que não consigo ainda dar uma resposta com segurança.  Não estou nem mesmo seguro de que o fato era real (não me lembro de ver bombeiros segurando armas em serviço), mas vou buscar a resposta numa questão semântica.

Uma das afirmações mais frequentes que se ouve sobre a Língua Inglesa é a sua suposta pobreza de vocabulário, que não permitiria a devida distinção entre dois conceitos, quando muito sutil a diferença entre eles, ou, por outro lado, a existência de muitas palavras com múltiplos significados.   A crítica, na verdade, é injusta. O Inglês coloquial, de fato, usa um vocabulário bastante limitado, o que reflete, em grande medida, a cultura de pragmatismo e objetividade dos povos que o adotam, especialmente nos Estados Unidos.  Mas não faltam palavras, nos dicionários de Inglês, para expressar conceitos com a sutileza necessária em quase todas as situações.  Apenas, não são usadas coloquialmente, sendo mais comuns em textos técnicos ou acadêmicos, inclusive jurídicos.

E, aqui, a diferença nem é tão sutil assim.

Safety designa a proteção ou prevenção contra danos ou riscos causados por forças naturais ou erros humanos, quando não intencionais (incluído aqui o conceito de ato culposo stricto sensu, isto é, decorrente de imperícia, negligência ou imprudência).   security designa a proteção ou prevenção contra danos causados por ações humanas deliberadas. De maneira extremamente simplificada – sem entrar nas controvérsias penais sobre dolo eventual e culpa consciente – safety diz respeito a acidentes, enquanto security diz respeito a crimes.

Na Língua Portuguesa, todavia, usamos a palavra segurança para ambos os conceitos.  Nem nos meus velhos dicionários em papel, nem nos meandros da internet, consegui encontrar vocábulos que permitam fazer essa distinção.  Ainda temos a relevante segurança jurídica, que não se confunde com nenhuma delas.  A única palavra próxima – seguridade – tampouco ajuda a desfazer a confusão, pois é empregada apenas para designar outro conceito também distinto, o de seguridade social.

O modo mais dramático de visualizar a diferença talvez seja a situação de conflito entre safety e security.  Um morador do Rio de Janeiro pode saber muito bem que o uso do cinto de segurança é uma medida de segurança (safety). Porém, usá-lo pode significar um agravamento do risco à segurança (security) quando, abordado num roubo com uso de arma de fogo, seu movimento para retirar o cinto o faz ser alvejado pelo delinquente que o confunde com uma reação, ou simplesmente o impede de deixar o carro, quando recebe a ordem de fazê-lo (e, do mesmo modo, acaba alvejado pelo criminoso).  O mesmo vale para as cadeiras próprias para o transporte de crianças: são essenciais para o transporte com segurança (safety) mas podem ser decisivas, de modo negativo, numa ameaça à segurança (security).

Estamos tão acostumados a baralhar os dois conceitos, safety e security, sob o rótulo de segurança, que a própria Constituição brasileira sistematizou o tema dessa maneira, como se vê do seu art. 144, em sua redação original:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

É possível fazer uma aproximação – e apenas uma aproximação – entre a expressão “preservação da ordem pública” e security.  Já a “proteção da incolumidade das pessoas e do patrimônio” pode envolver ambos os conceitos.   Já os órgãos relacionados nos incisos têm funções relativas a um ou outro, sendo, inclusive, agrupados no mesmo inciso V um órgão que trata de security (polícia militar) e outro que trata de safety (corpo de bombeiros militar).

Para o leitor que chegou até aqui, e acha que este é um texto preciosista, discorrendo sobre uma irrelevância vocabular, convido a refletir sobre alguns exemplos a seguir, a começar pela dúvida que abre este texto.

Antes do Decreto 2.222/1997, que previu expressamente esta autorização1, havia controvérsia sobre a legitimidade do porte de armas de fogo por bombeiros militares. Em diferentes Estados, autorizações eram concedidas por decisão judicial, sob o delgado fundamento de que são “agentes de segurança”, e ninguém jamais questionou se a “segurança” aí referida seria “safety” ou “security”.

Dentre os órgãos listados no art. 144 da Constituição, a Polícia Rodoviária Federal teve suas funções definidas no § 3º como o “patrulhamento ostensivo das rodovias federais”.  Trata-se de um patrulhamento relativo a infrações de trânsito (safety), ou a crimes cometidos nas próprias rodovias (security)?  O § 10, acrescentando em 20142, para definir o conceito de “segurança viária”, tampouco esclarece a questão, pois, embora fale genericamente em “ordem pública” (security), especifica no inciso I tarefas (educação, engenharia e fiscalização de trânsito) que aparentam ser relacionados à safety:

§ 10. A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas:

I - compreende a educação, engenharia e fiscalização de trânsito, além de outras atividades previstas em lei, que assegurem ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente; e

Tampouco a lei 9.654/983 traz respostas conclusivas sobre a questão, pois utiliza os mesmos vocábulos genéricos de “patrulhamento” e “policiamento ostensivo”, sem esclarecer se este último seria uma polícia de trânsito, com natureza administrativa, ou uma polícia criminal ampla.

Necessário esclarecer, desde logo, que este artigo não toma posição sobre nenhuma destas questões (porte de armas de fogo por bombeiros militares e limites de atuação da Polícia Rodoviária Federal), mas apenas as traz como exemplo de como o conceito de “segurança” pode ser equívoco, e como essa equivocidade traz problemas reais na aplicação do Direito, e não apenas semânticos.

No âmbito da responsabilidade civil, é conhecida a noção de responsabilidade objetiva do transportador terrestre de passageiros, cabendo-lhe transportar o passageiro de um ponto a outro em segurança4.  A obrigação abrange, sem dúvida, a safety. Mas já houve quem entendesse que dessa obrigação de transportar em segurança estaria incluída, também, a prevenção de crimes praticados contra os passageiros. Quando se pensa no transporte urbano em grandes metrópoles, porém, seria possível responsabilizar o transportador por todos os roubos e furtos ocorridos em ônibus? A jurisprudência também já foi oscilante nesse sentido, com julgados que responsabilizavam o transportador pela segurança, sem especificá-la, e outros que afastavam a obrigação quanto à security, embora tomando o caminho argumentativo das excludentes de responsabilidade, como o fato de terceiro ou a força maior.

Como se percebe, qualquer estipulação legal ou contratual que determine obrigações de “segurança”, ou distribua competências, prerrogativas e responsabilidades no âmbito da “segurança pública”, trará em si esta dificuldade interpretativa, de saber se a referência é à safety, security ou ambas.

No âmbito do Direito Marítimo, porém, a questão está há muito equacionada, pois, em razão do caráter transnacional das obrigações e contratos marítimos, as convenções internacionais e o costume são suas principais fontes.

A principal convenção sobre o tema é a SOLAS (International Convention for the Safety of Life at Sea), que dispõe claramente, em seus vários capítulos, sobre medidas relativas à safety. A primeira Convenção SOLAS foi aprovada em 1914, sucedendo-se outras, até a de 1974, atualmente em vigor, com várias emendas. Após os atentados do 11 de setembro de 2001, aumentou a preocupação também com a security dos navios e instalações portuárias, sendo inserido um capítulo (XI-2) na SOLAS, em vigor desde 2004.  Conhecido como ISPS Code (International Ship and Port Facility Security Code), contém inclusive uma Regra específica (8.2) sobre o potencial conflito entre safety e security.  Eis a redação da primeira parte desta Regra, no idioma original Inglês:

If, in the professional judgement of the master, a conflict between any safety and security requirements applicable to the ship arises during its operations, the master shall give effect to those requirements necessary to maintain the safety of the ship. In such cases, the master may implement temporary security measures and shall forthwith inform the Administration and, if appropriate, the Contracting Government in whose port the ship is operating or intends to enter. (não destacado no original)

Como um tradutor brasileiro sairia da armadilha de ter que traduzir “a conflict between any safety and security requirements” por “um conflito entre quaisquer exigências de segurança e segurança”?  Não parece uma tarefa fácil.

Na versão oficial, anexa ao Decreto de promulgação da SOLAS5, a opção foi pelas palavras “segurança e proteção”, o que está longe de esclarecer os conceitos, mas, talvez seja o melhor que pôde ser feito com as opções que a Língua Portuguesa oferece:

Se durante a operação do navio surgir, na avaliação profissional do Comandante, qualquer conflito entre quaisquer exigências aplicáveis ao navio relativas à segurança e à proteção, o Comandante deverá implementar as exigências necessárias para manter a segurança do navio. Nestes casos, o Comandante poderá tomar medidas de proteção temporárias e informar imediatamente à Administração e, se for adequado, ao Governo Contratante em cujo porto o navio estiver operando, ou em que pretenda entrar. (não destacado no original)

No âmbito contratual, os contratos no Direito Marítimo distinguem claramente as responsabilidades decorrentes de falhas de safety (como um erro de manobra da tripulação ou a falta de um equipamento obrigatório de salvatagem6) e de fatos relacionados a questões de security, como a pirataria.  Dentre as cláusulas dos contratos-padrão7, existe inclusive a “Cláusula ISPS Code”, visando obrigar as partes a observar as determinações contidas nesta parte da Convenção.  Como destaca Marco Antônio Moysés Filho: “A própria BIMCO possui duas cláusulas específicas: a ISPS/MTSA Clause for Voyage Charter Parties 2005 (uso em contrato de afretamentos por viagem) e a ISPS/MTSA Clause for Time Charter Parties 2005 (uso em contrato de afretamento por tempo), as quais obrigam as partes a observarem também as normas do US Maritime Transportation Security Act 2002 (MTSA).8

No Direito brasileiro, o Tribunal Marítimo, sobre o qual muito tenho publicado nesta Coluna, define sua própria missão como “justiça e segurança para a navegação”. E, de fato, o art. 13 da sua Lei Orgânica (Lei 2.180/54), ao detalhar sua competência para “julgar os acidentes e fatos da navegação”, trata da proposta de “medidas preventivas e de segurança da navegação9.  Evidentemente, a lei está se referindo à safety, e a punição prevista na alínea “b”, quando trata da “aplicação de penas”, está tratando de penas de natureza administrativa, que são as únicas que podem ser aplicadas pela Corte Marítima, e não de penas de natureza criminal.

O art. 15 da mesma lei, ao definir os “fatos da navegação”, trata, nas primeiras cinco alíneas, de medidas que também são claramente concernentes à safety. Nada obstante, a lei 5.056/66 acrescentou a alínea “f”, que define também como fato da navegação “o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional10.  Ao apreciar atos definidos como crime ou contravenção, o Tribunal Marítimo estará tratando de security, e não de safety.  De todo modo, a Lei, coerentemente, reiterou que o julgamento penal não caberá à Corte Marítima, embora suas conclusões devam ser encaminhadas à Justiça Criminal, e lá tomadas em consideração no julgamento dos crimes ou contravenções, como previsto no art. 2111.

Neste brevíssimo ensaio, que, longe de pretender abordar em profundidade o tema, procurou apenas lançar uma provocação, busquei demonstrar que safety e security são conceitos bastante diferentes e que a designação de ambas, em Língua Portuguesa, pela palavra segurança, não é apenas uma dificuldade vocabular.  Além da questão semântica, a falta de distinção entre os dois conceitos de “segurança” pode levar a conclusões equivocadas, em especial na atribuição de responsabilidades contratuais ou extracontratuais, com reflexos na obrigação de indenizar.  No mais, tentei também apontar que, no Direito Marítimo, tal problema praticamente não existe, na medida em que a adoção de regras internacionais, a padronização de contratos, e a prevalência do costume, fazem com que os conceitos sejam bem delimitados, especialmente na atribuição de responsabilidades.  Mesmo no Direito brasileiro, a Lei de regência do Tribunal Marítimo, embora usando apenas a palavra “segurança”, é bastante clara ao tratar de uma e outra acepção do termo.

__________________

Art. 28. O porte de arma de fogo é inerente aos policiais federais, policiais civis, policiais militares e bombeiros militares.

2 Emenda Constitucional nº 82.

3 Cria a carreira de Policial Rodoviário Federal e dá outras providências.

4 Código Civil: Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.

5 A promulgação original foi pelo Decreto 87.186/1982, revogado pelo Decreto 9.988/2019, que ratificou alterações e atualizações posteriores, às quais o Brasil aderiu.

6 No conceito de “equipamentos de salvatagem” se incluem, entre outros, coletes de flutuação, boias, balsas, etc.

7 Como se sabe, no Direito Marítimo, são largamente utilizadas minutas-padrão de contratos, especialmente de afretamento, disponibilizadas por entidades de reconhecida expertise técnica, e que garantem uma uniformidade, em todo o Mundo, na forma como são distribuídas as obrigações contratuais no transporte marítimo.  Este fato ressalta duas das principais características do Direito Marítimo: o caráter transnacional e a forte presença do costume como fonte.

8 MOYSÉS FILHO, Marco Antonio. Contratos de Afretamento de Navios.  Curitiba: Juruá, 2017, p. 279.

Art . 13. Compete ao Tribunal Marítimo:

I - julgar os acidentes e fatos da navegação;

a) definindo-lhes a natureza e determinando-lhes as causas, circunstâncias e extensão;

b) indicando os responsáveis e aplicando-lhes as penas estabelecidas nesta lei;

c) propondo medidas preventivas e de segurança da navegação;

10 Art . 15. Consideram-se fatos da navegação:

 a) o mau aparelhamento ou a impropriedade da embarcação para o serviço em que é utilizada, e a deficiência da equipagem;

 b) a alteração da rota;

 c) a má estimação da carga, que sujeite a risco a segurança da expedição;

 d) a recusa injustificada de socorrro a embarcação em perigo;

 e) todos os fatos que prejudiquem ou ponham em risco a incolumidade e segurança da embarcação, as vidas e fazendas de bordo.

 f) o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional.   

11 Art . 21. Nos processos instaurados perante o Tribunal Marítimo em que houver crime ou contravenção a punir, nem esta nem aquêle impedem o julgamento do que fôr da sua competência, mas finda a sua ação, ou desde logo, sem prejuízo dela, serão remetidas, em traslado, as peças necessárias à ação da Justiça.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.