Os conflitos decorrentes da atividade de navegação e de movimentação de cargas têm sido exacerbados a medida em que aumentam exponencialmente a relevância econômica das embarcações e das mercadorias. Os múltiplos interesses dos stakeholders em uma operação marítima ou portuária, tais como armadores, afretadores, operadores portuários, seguradoras, dentre outros, compõem um cenário que demanda, cada vez mais, mecanismos diversificados de resolução de conflitos.
Nesse contexto, a existência de diferentes esferas para que os agentes possam dirimir suas controvérsias assume especial relevância, contribuindo com um cenário mais dinâmico e diversificado de solução de conflitos, também conhecido como sistema multiportas. Seguindo esse movimento, é possível notar uma participação cada vez maior de agentes públicos não apenas como reguladores, mas também como possíveis mediadores ou árbitros em conflitos surgidos entre agentes do setor.
A recente inciativa da Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ pretendendo estabelecer norma administrativa para regular a resolução de conflitos entre agentes regulados está em linha com esse movimento e segue também o papel desempenhado por outras agências reguladoras, como ANEEL e ANATEL. Não se trata, evidentemente, da mediação ou da arbitragem tradicionais, comumente utilizadas no setor marítimo e portuário, mas sim de procedimentos de resolução de conflitos no âmbito administrativo, conduzidos pela própria agência reguladora, sem prejuízo da apreciação do mérito da questão pelo Poder Judiciário.
Mais especificamente, a ANTAQ vem debatendo a proposta de instrução normativa SEI 1.492.999, que visa estabelecer “procedimentos administrativos para resolução de conflitos entre os agentes do setor regulado pela ANTAQ”. Atualmente, a minuta – que recentemente foi submetida a uma audiência pública e ainda poderá ser alterada - prevê a resolução de conflitos envolvendo apenas direitos disponíveis, tais como a aplicação de regras contratuais, fornecimento de serviços portuários e a circularização e bloqueio para afretamento de embarcações estrangeiras.
Além disso, de acordo com a versão mais atual da minuta da norma, os procedimentos de resolução de disputas incluirão (i) a mediação em serviços portuários e de navegação; (ii) a mediação em disputas envolvendo o afretamento de embarcações; e (iii) a arbitragem regulatória em conflitos relacionados a serviços portuários e de navegação. Todas essas modalidades poderão ser instauradas a requerimento de qualquer parte envolvida no conflito ou de ofício pela própria agência.
No âmbito do procedimento de mediação, que será gratuita, a proposta de instrução normativa prevê que a própria agência designará servidor para atuar como mediador, o qual deverá conduzir e orientar a negociação entre as partes. Durante as tratativas, o mediador ainda deverá se ater a determinados princípios básicos, como o da confidencialidade em relação às matérias debatidas, a imparcialidade e a neutralidade em relação às partes do conflito.
De acordo com a norma, a mediação poderá ser encerrada (i) após a celebração de acordo total ou parcial entre as partes; (ii) por decisão do próprio mediador, caso o servidor considere improvável que as partes celebrem um acordo ou, ainda, (iii) por meio de requerimento de uma das partes envolvidas no procedimento, se nenhum acordo tiver sido alcançado.
Vale notar, ainda, que a minuta de instrução normativa prevê um procedimento de mediação específico para disputas envolvendo o bloqueio de embarcações de bandeira estrangeira durante a chamada “circularização”. Nesse procedimento, realizado no âmbito de um sistema disponibilizado pela ANTAQ (sistema SAMA), verifica-se a existência ou não de embarcação de bandeira brasileira capaz de atender uma demanda de afretamento. Caso não haja disponibilidade no mercado nacional, então será possível o afretamento de embarcação estrangeira.
A possibilidade de uma mediação específica no âmbito desse processo pretende facilitar a solução de conflitos que geralmente costumam ocorrer entre os interesses de embarcações de bandeira brasileira e estrangeira, notadamente no que se refere à capacidade das primeiras de atenderem demandas de afretamento, por vezes, bastante específicas e que requerem embarcações altamente sofisticadas.
A proposta de norma ainda prevê que a ANTAQ não poderá ser responsabilizada por ato ou omissão relacionada com a mediação conduzida, desde que não haja comprovação de uma violação intencional ou negligência em relação ao dever assumido pela agência na mediação. É previsto, também, que as partes poderão ser representadas ou assistidas por advogados durante o procedimento de mediação.
Já a arbitragem regulatória será baseada no procedimento previsto na lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da administração pública Federal, e será presidido pela Diretoria Colegiada da ANTAQ, que deverá proferir decisão fundamentada e vinculante na esfera administrativa.
O procedimento poderá ser iniciado como solução imediata para o conflito ou após a realização prévia de mediação, hipótese em que as partes também poderão autorizar a utilização de documentos das negociações anteriores, em regra confidenciais. Uma vez instaurada a arbitragem regulatória, as partes interessadas serão intimadas para apresentar, no prazo de quinze dias, informações e documentos relevantes para a solução do conflito.
Após a promulgação da sentença arbitral, ainda será possível oferecer pedido de reconsideração dirigido à própria Diretoria Colegiada da ANTAQ, com exceção das decisões que somente homologarem um acordo entre as partes, as quais serão irrecorríveis. Vale notar que, segundo a proposta de norma, caso a arbitragem tenha sido precedida de mediação, será vedada a participação na arbitragem regulatória do servidor que atuou como mediador.
Apesar de os procedimentos serem descritos de forma breve na proposta de norma, a possível instrução normativa é, a princípio, promissora para resolução de disputas ocorridas no setor marítimo e portuário, considerando o papel cada vez mais relevante que a agência vem assumindo nas suas esferas de competência, especialmente com os objetivos de evitar a judicialização de conflitos. Vale notar que a proposta de norma ainda poderá sofrer alterações, sendo possível que algumas lacunas sejam identificadas e complementadas pela agência, também a partir de contribuições do setor.
A esse respeito, como mencionado anteriormente, a norma foi recentemente submetida a uma audiência pública pela agência, oportunidade em que os agentes do setor puderam apresentar suas contribuições e sugestões de alteração à proposta, as quais serão analisadas pela ANTAQ e poderão eventualmente ser incluídas na versão final da resolução normativa.
A participação de servidores técnicos especializados e da Diretoria Colegiada da ANTAQ nos procedimentos administrativos de mediação e arbitragem acima indicados poderá, a depender das circunstâncias do caso concreto, ser também benéfica para resolução de conflitos mais específicos. Resta saber, no entanto, se os procedimentos terão a adesão dos agentes privados do mercado e se haverá confiança na imparcialidade e independência da agência e de seus servidores, ou se os mecanismos de solução de disputas atualmente empregados, como a arbitragem e a própria alternativa judicial, ainda se manterão como os métodos de resolução de disputas mais utilizados pelo setor.