Migalhas Marítimas

Possíveis novidades em matéria de responsabilidade civil em poluição por óleo?

Luís Felipe Galante fala de possíveis novidades em matéria de responsabilidade civil em poluição por óleo.

2/6/2022

Depois de longos invernos sem novidades quanto à introdução de qualquer das várias e muito necessárias mudanças em áreas do Direito Marítimo brasileiro, tudo indica que finalmente uma modificação relevante se aproxima. E no supersensível tema da poluição marítima por óleo.

Embora o ponto seja desconhecido de muita gente, inclusive dentro da própria comunidade marítima, o Brasil na realidade já é signatário de uma importante convenção na matéria. Trata-se da Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil por Danos Causados por Poluição por Óleo, de 1969, por isso cognominada internacionalmente de CLC 69 (Civil Liability Convention 69).

Essa convenção foi um marco jurídico do seu tempo. Sua origem remonta ao formidável e icônico desastre com o petroleiro Torrey Canyon, ocorrido em 1967, ao largo da costa sudoeste do Reino Unido, o primeiro mega-acidente de poluição marítima da era moderna. Estimadamente, cerca de 120.000 toneladas de óleo foram despejadas ao mar, poluindo centenas de quilômetros da linha costeira e de praias da Inglaterra e Normandia, com enormes prejuízos à pesca, turismo, vida selvagem e, logicamente, ao próprio meio ambiente.

Despertada pela gravidade da ocorrência e pela percepção de que o regime tradicional de responsabilidade (baseado na culpa e na responsabilidade patrimonial do poluidor, isto é, a responsabilidade recaindo sobre os bens do poluidor) era insatisfatório, não correspondendo à realidade do transporte de óleo e seu potencial lesivo ao meio ambiente, a comunidade jurídica internacional movimentou-se na busca de uma solução mais adequada.

Tal solução tornou-se realidade exatamente através da CLC 69 e seu inovador regime de responsabilização do poluidor. Tendo com o escopo de sua aplicação o transporte de óleo como carga em embarcações (e também o óleo combustível utilizado pelos navios próprios transportadores) e cobrindo acidentes tão somente no mar territorial, a CLC 69 inovou nos seguintes pontos centrais: (i) imposição, como regra, de responsabilidade objetiva; (ii) canalização da responsabilidade para a figura do proprietário da embarcação; (iii) responsabilidade tarifada de acordo com a tonelagem da embarcação; (iv) seguro obrigatório no valor da responsabilidade estabelecida na Convenção, possível a partir da prefixação de valores tarifados; (v) direito de ação diretamente contra o segurador obrigatório, se assim preferido pelos prejudicados.

O Brasil ratificou a CLC 69 em 1977 e regulamentou-a em 1979. Portanto, o regime que acabamos de resumir se encontra desde então em vigor no país.

Sucede, porém, que com o passar dos anos e o efeito corrosivo da inflação, os valores tarifados acabaram insuficientes para atender as necessidades dos prejudicados em incidentes poluidores por óleo.

Daí a consequente evolução do regime da CLC 69 por meio de um amplo protocolo em 1992, naquilo que se convencionou chamar de CLC 92.

Os pilares do sistema convencional são os mesmos em ambos os textos convencionais, até diante do sucesso na aceitação do regime da CLC 69 dentro do concerto das nações.

As principais modificações introduzidas pela CLC 92 se traduzem, basicamente, em algumas disposições destinadas a aperfeiçoar o regime da Convenção e, de resto, uma atualização dos valores tarifados, de maneira a restituir-lhes expressão econômica e efetivo caráter reparatório. Isso granjeou-lhe vasta aceitação internacional, provocando uma intensa migração de países da CLC 69 para a CLC 92.

Exemplo de aperfeiçoamento na CLC 92 se vê na ampliação do escopo convencional, para nele também serem incluídos os incidentes ocorridos na zona econômica exclusiva dos Estados litorâneos. Quanto aos valores tarifados, estes foram incrementados, partindo-se de um piso de 4.510.000 de direitos especiais de saque/DES (unidade monetária do FMI, flutuando hoje na casa de aproximadamente 1 DES = R$ 6,40) para embarcações pequenas de até 5.000 toneladas de arqueação, ou seja, cerca de R$ 28.864.000,00, até um teto de 89.770.000 DES para embarcações maiores, vale dizer, um máximo de R$ 574.528.000,00.

Nada obstante, o Brasil, na sua frequente inércia quanto à adoção de convenções internacionais, sobretudo no campo do direito marítimo, permaneceu por trinta anos alheio à necessidade de denúncia da CLC 69 e de consequente adoção da CLC 92, namorando perigosamente todo esse tempo com os valores hoje inexpressivos da CLC 69 para o custeio do combate à poluição por óleo e para a reparação de prejuízos dela decorrentes, tanto o dano ambiental em si como os danos privados de terceiros.

O incidente da contaminação de extensos trechos de litoral no Nordeste em 2019 por óleo de origem desconhecida, amplamente divulgado no Brasil e mundo afora, serviu, todavia, como um toque de despertar, para setores mais extensos do Poder Público, sobre a urgência da questão. Os custos de limpeza das praias e costões deu a exata dimensão do problema que o país poderia ter que enfrentar na situação de um incidente coberto pelos parcos recursos assegurados sob a CLC 69.   

Em um movimento liderado pela Marinha do Brasil (que, justiça seja feita, já havia na década de 2000 tentado sensibilizar outras instâncias do Poder Executivo para a relevância do tema), a discussão sobre a saída da CLC 69 e ingresso na CLC 92 foi então retomada e encaminhada ao Ministério das Relações Exteriores. Lá, a matéria foi subsequentemente aprovada, hoje se achando em fase final de análise pelo Ministério da Economia. Saindo esta última aprovação, a recomendação de ratificação da CLC 92 será encaminhada ao Poder Legislativo, a quem compete autorizar a ratificação de tratados internacionais, autorização esta a ser a seguir chancelada por decreto do Presidente da República.

Nas últimas décadas jamais estivemos diante da possibilidade de mudança tão impactante na área do direito marítimo, tão próximos da denúncia e simultânea ratificação de convenções tão significativas.

Sobrevindo, como parece iminente, o envio da matéria ao Legislativo, será então o momento da comunidade marítima - toda ela vítima dos efeitos nocivos da poluição marítima em larga escala -, através de suas organizações e empresas, se unir à Marinha do Brasil no esforço perante o Congresso de acelerar a transição do país para o regime convencional mais moderno da CLC 92, apto a proteger adequadamente os interesses nacionais, públicos e privados, quando vier a ocorrer sério incidente de poluição por óleo em nossas águas. Note-se, aqui, o deliberado uso do advérbio “quando” na frase e não da conjunção “se” - pois na medida em que a condição humana é falível, inevitável que em algum momento acidentes virão a acontecer.

Em fevereiro de 1997 o navio petroleiro “San Jorge” transportava 60.000 toneladas de óleo do porto de Comodoro Rivadavia, Argentina, para São Sebastião, Brasil, quando se chocou contra um fundo rochoso não cartografado ao longo da costa do Uruguai, próximo ao balneário de Punta del Este. Estima-se que aproximadamente 6.000 toneladas vazaram para o mar. Operações de contenção e limpeza tiveram que ser rapidamente desencadeadas, inclusive para evitar que a poluição alcançasse as praias do famoso balneário em pleno verão. Nisto as operações acabaram por ser bem-sucedidas. Entretanto, não lograram evitar que o óleo atingisse uma das maiores colônias de focas marinhas sul-americanas, situada em Isla de Lobos, contando cerca de 200.000 indivíduos. Aproximadamente 5.000 filhotes de focas pereceram devido a contaminação por óleo. Os custos de combate à poluição e os passivos ambientais foram muito elevados.

Pouco após o incidente com o “San Jorge”, pressionado pela opinião pública, o Parlamento uruguaio decidiu acelerar os trabalhos legislativos para a ratificação da CLC 92, assunto que até então não merecera a devida atenção por parte do Executivo e do Legislativo. Em pouco mais de dois meses, em 23 de abril de 1997 a Convenção foi formalmente ratificada através da lei 16.820. Porém não mais a tempo de ser aplicada ao acidente do “San Jorge”.

Em 2002, durante uma rodada de discussões na IMO-International Maritime Organization, agência da ONU para assuntos marítimos, um membro da delegação uruguaia aproximou-se de um dos delegados da missão brasileira durante um coffee break. Seguiu-se uma animada conversa, ao final da qual o delegado uruguaio, sem maiores rodeios, fez então a seguinte indagação ao brasileiro - com genuíno espírito de contribuição, embora talvez de forma um pouco menos diplomática do que seria de se esperar para o ambiente: “O que o Brasil está esperando para ratificar a CLC 92? Outro “San Jorge” lá com vocês?”.

As engrenagens estatais brasileiras finalmente começaram a girar aqui no país e avançam na direção da ratificação brasileira da CLC 92. Mas muito tempo já se passou, 30 anos desde o advento da CLC 92 - e, implacável, continua a passar. Um total de 145 países já ratificaram a Convenção, equivalentes a 97,52% da tonelagem mundial. E nós continuamos a fazer parte de pífios 2,94% que ainda integram a CLC 69.

Oxalá a dúvida profética do solidário delegado uruguaio não chegue a se tornar realidade. Mas temos que reconhecer: ao longo de todo esse tempo, Deus tem sido bastante brasileiro, para usar daquele chiste comum no anedotário do nosso país. Mas não convém continuar abusando da paciência do Senhor.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.