A navegação marítima é utilizada no transporte de mercadorias desde os primórdios, sendo hoje o principal instrumento de movimentação de cargas e incremento da economia global, desde as embarcações mais rudimentares como as caravelas e os primeiros navios a vapor até os modernos e imponentes navios mercantes da atualidade.
Como consequência da evolução do comércio internacional, surgiu, em meados do século XX, a necessidade de modernização das operações, o que impôs o incremento tecnológico para maior segurança e agilidade nos procedimentos de carga e descarga de navios, garantindo ainda maior proteção às mercadorias transportadas, bem como otimização dos espaços a bordo das embarcações e nos terminais de origem e destino. Essa exigência conduziu à invenção de uma caixa metálica, similar a um cofre, denominada contêiner
Em 1975, alguns anos após a efetiva introdução deste equipamento no comércio e transporte internacional de cargas, a legislação brasileira incorporou importantes conceitos acerca da natureza jurídica do contêiner e da sua utilização, consagrados através da Lei 6.288 daquele ano:
Art. 3º - O container, para todos os efeitos legais, não constitui embalagem das mercadorias, sendo considerado sempre um equipamento ou acessório do veículo transportador.
Parágrafo único. A conceituação de container não abrange veículos, acessórios ou peças de veículos e embalagens, mas compreende seus acessórios e equipamentos específicos, tais como trailers, boogies, racks, ou prateleiras, berços ou módulos, desde que utilizados como parte integrante do container.
Art. 4º O container deve satisfazer as condições técnicas e de segurança previstas pelas convenções internacionais existentes, pelas normas legais ou regulamentares nacionais, inclusive controle fiscal, e atender as especificações estabelecidas por organismos especializados. 1
Mais recentemente, a lei 9.611/982, que regulamenta o transporte multimodal de cargas, seguiu no mesmo sentido, definindo o contêiner como equipamento acessório do navio, não se constituindo embalagem da mercadoria nele contida, cujo conceito não mais se discute.
Na prática, com a contratação do frete para o transporte de carga unitizada, os armadores marítimos disponibilizam contêineres aos usuários, quantos necessários, para que estes possam providenciar a respectiva estofagem das mercadorias que deverão ser transportadas. Após a conclusão do transporte, estes mesmos equipamentos são retirados pelo consignatário da carga no porto de destino, o qual fica responsável pela desova das mercadorias e devolução do contêiner vazio ao armador em prazo e local previamente estabelecidos.
Cabe registrar que este prazo estabelecido entre as partes para devolução do contêiner vazio é fixado de modo a permitir a boa ordem e controle pelo armador acerca da respectiva frota, considerando que eventual falta de contêiner implica na impossibilidade de praticar novos fretes.
Como se sabe, o contêiner é o equipamento mais utilizado no transporte marítimo de mercadorias, sendo essencial para o desenvolvimento da atividade comercial dos transportadores. Para o armador, ter uma previsão da devolução dos equipamentos disponibilizados aos usuários e o seu retorno ao circuito da sua atividade é fundamental ao funcionamento da sua respectiva cadeia logística.
No sentido contrário, a retenção dos contêineres por um prazo superior ao contratado impõe custos extremamente elevados ao transportador, obrigando-o a alterar toda a cadeia logística planejada, sendo necessária a incorporação de novos equipamentos suficientes ao atendimento da demanda, inclusive mediante o deslocamento de contêineres de outros portos.
Inobstante isso, o atraso na devolução também expõe o transportador ao risco de cancelamento de negócios pela falta de contêineres disponíveis no porto de origem, caso não seja possível a reposição em tempo hábil.
De outro lado, o prazo ajustado entre as partes para utilização do contêiner leva também em conta os procedimentos necessários para o desembaraço aduaneiro da mercadoria pelo importador ou seus representantes legais no porto de destino, bem como remoção da unidade do porto de descarga até o destino final, desova do contêiner e retorno da unidade vazia até o local indicado pelo armador, tudo isso levando-se em conta os usos e costumes inerentes ao comércio e transporte marítimo de mercadorias.
Este prazo pactuado entre os contraentes do transporte é uma franquia livre, mais conhecido como free time. Na prática, durante o free time negociado entre as partes, o consignatário da carga poderá seguir com o contêiner nos procedimentos de nacionalização, remoção do porto e desova até a restituição ao armador, sem incidir nenhum pagamento pela utilização do equipamento nesse período.
Em outras palavras, com a contratação do frete marítimo e reserva de espaço no navio é negociado um período de franquia (free time), no qual o usuário pode dispor do contêiner por um determinado prazo sem qualquer custo.
No entanto, na hipótese de devolução do contêiner após o free time convencionado, o consignatário ficará responsável pelo pagamento de indenização por dia de atraso, conforme preestabelecido em tabela publicizada pelo armador, cujo fenômeno é internacionalmente conhecido como demurrage de contêiner ou simplesmente sobreestadia de contêiner.
Esse instituto jurídico, próprio do Direito Marítimo, não se confunde com a sobreestadia de navios, cujo mecanismo está relacionado com o prazo de estadia dos navios no porto para as operações de carga ou descarga de mercadorias, respectivos atrasos e compensações.
De volta ao tema da sobreestadia de contêiner, com a estipulação antecipada de um valor pecuniário, o contratante do transporte tem conhecimento prévio acerca dos encargos que lhe serão atribuídos pelo uso do equipamento além do prazo convencionado. Assim, temos em um primeiro momento a conscientização da importância da devolução do equipamento no prazo previamente estabelecido, mediante a imposição de um valor que será cobrado por dia de atraso. Em segundo lugar, a cobrança pelo atraso visa oferecer ao transportador uma reparação pecuniária pelo período em que estiver impossibilitado de utilizar o seu equipamento, indenizando-o pelos custos necessários para o reajuste logístico.
Portanto, a demurrage se enquadra juridicamente como uma indenização prefixada por perdas e danos, como aliás é o entendimento da jurisprudência dominante, caracterizada pela estipulação prévia, cujos valores e prazos decorrem da liberdade contratual das partes envolvidas.
Afasta-se, assim, a classificação da demurrage como uma cláusula penal, que imporia a limitação do montante devido ao valor da obrigação principal (frete), sob a forma do artigo 412 do Código Civil3. Tal entendimento, desvirtuaria por completo a natureza da demurrage, ou seja, o seu caráter indenizatório pelos custos gerados ao armador pela indisponibilidade do equipamento para o atendimento de outros contratos por ele celebrados.
Corrobora com esse entendimento, recente decisão do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento da Apelação Cível nº 1014012-67.2020.8.26.0562, donde se extrai relevante trecho do voto proferido pelo Desembargador Relator Francisco Giaquinto:
“A sobreestadia ou demurrage consiste no termo técnico utilizado no transporte marítimo para designar a indenização devida ao armador, ou seja, ao operador do frete marítimo, por descumprimento na entrega do contêiner para embarque fora do prazo de denominado free time pelo afretador ou embarcador, cujo valor é estabelecido em contrato, por dias de atraso.
A cobrança da demurrage tem natureza jurídica de indenização pré-fixada por descumprimento contratual, compensando o proprietário pela retenção indevida do cofre, por prazo superior ao período livre convencionado.
Logo, a cobrança não se enquadra nas hipóteses previstas de cláusula penal.” 4
Noutro norte, na hipótese de incidência da obrigação de pagamento pela sobreestadia de contêiner, muitas vezes, exsurge a necessidade de cobrança do montante por via judicial ante ao não cumprimento voluntário pelo devedor.
Diante disso, é essencial a análise das provas necessárias para demonstração do direito do armador em face do devedor, razão do desenvolvimento deste breve estudo.
Nesse quesito, há muito se discute acerca da necessidade de apresentação do documento denominado “termo de responsabilidade” de devolução do contêiner, ou instrumento equivalente, para demonstrar o direito do armador à cobrança de demurrage.
No Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, já há alguns anos, tem se multiplicado decisões dispensando o termo de responsabilidade para fins de comprovação do direito de cobrança, consoante se vê em recente julgamento proferido pela 24ª Câmara de Direito Privado da Corte Paulista:
“Neste aspecto, com relação à alegada ausência de documentos que comprovem a estipulação de valores e períodos livres e de sobreestadia, de fato, a apelante não instruiu o seu pedido com nenhum termo de compromisso e responsabilidade pela devolução dos containers eventualmente firmado entre as partes.
No entanto, desnecessária a apresentação de documentos dessa natureza para viabilizar a cobrança de demurrage.
Isto porque o pagamento de sobreestadia é devido ainda que não previsto contratualmente, vez que é instituto inerente ao Direito Marítimo, estando ínsito em qualquer contrato dessa natureza em razão dos usos e costumes do comércio marítimo, praticados ao longo décadas.
(...)
Se a ré, consignatária, tirou proveito do transporte, ela deve arcar com o ônus decorrente da não devolução dos containers, fato este gerador da sobreestadia. Essa conduta omissiva gerou a sua responsabilização.” 5
Denota-se, portanto, que não há a necessidade, muito menos obrigatoriedade, de comprovação formal de adesão do devedor, de forma específica, aos termos contratuais fixados no Conhecimento Marítimo e na tabela publicizada pelo armador que tratam da previsão da cobrança de demurrage, bem como do prazo franqueado para a devolução do contêiner antes da incidência da referida cobrança (free time). Trata-se efetivamente de uma praxe comercial, para qual não se pode alegar desconhecimento. O usuário, no porto de destino, tem um prazo predeterminado para a devolução do equipamento, sob pena de pagamento de um valor também preestabelecido, conforme a quantidade de dias de atraso.
A consolidação de uma corrente jurisprudencial dominante neste sentido se revela ainda mais evidente ante ao teor do julgamento proferido há poucos dias pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, já mencionado anteriormente6:
“Data vênia do convencimento do d. Juiz a quo, a não exibição de termo de responsabilidade de devolução de contêiner não impede a cobrança de demurrage, por ser prática reconhecida pelo direito marítimo, bastando a apresentação do conhecimento de embarque.”
Essa decisão, como mencionado, vem ao encontro do entendimento jurisprudencial de outras Câmaras da mesma Egrégia Corte:
TERMO DE COMPROMISSO DE DEVOLUÇÃO DE CONTÊINER - Cobrança de “demurrages” Termo de Compromisso de Devolução de Contêiner – Ausência - Usos e costumes do direito marítimo – Suficiência - Valores e condições disponibilizadas no endereço eletrônico da contratada: Embora ausente exibição do “Termo de Compromisso de Devolução”, a exigibilidade da cobrança de “demurrages” decorre dos usos e costumes do direito marítimo, em que devido o valor de sobre-estadia pela inobservância do período de “free time”. Valores e condições que se encontram expressos no endereço eletrônico da contratada, e ausência de controvérsia acerca da devolução em atraso. RELAÇÃO COMERCIAL - Cobrança de “Demurrages” - Indenização pelo uso dos contêineres fora do prazo estabelecido da isenção de pagamento - “Free-time” - Relação Comercial - Inaplicabilidade do CDC: - A cobrança de indenização pelo uso dos contêineres fora do prazo estabelecido da isenção de pagamento (“free-time”), estipulada em contrato lícito e previamente havido entre as partes, é regida por relação comercial, figurando como contratantes pessoas jurídicas. Nesse sentido, não existe relação de consumo a ser regulada pelas normas do Código de Defesa do Consumidor. RECURSO NÃO PROVIDO.
(Apelação Cível nº 1023570-63.2020.8.26.0562, Relator Des. Nelson Jorge Júnior, 13ª Câmara de Direito Privado, j. 18.2.2022, v.u.) (g.n.)
APELAÇÃO. AÇÃO DE COBRANÇA. TRANSPORTE MARÍTIMO. DEMURRAGE. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. CERCEAMENTO DE DEFESA AFASTADO. DISPENSÁVEL A TRADUÇÃO JURAMENTADA INTEGRAL DO “BILL OF LADING”. FUNDAMENTAÇÃO CONCISA DA SENTENÇA NÃO VULNERA O ARTIGO 11 DO CPC. DESNECESSIDADE DE APRESENTAÇÃO DE TERMO DE RESPONSABILIDADE. RECURSO IMPROVIDO.
(Apelação Cível nº 1013276-15.2021.8.26.0562, Relator Des. César Zalaf, 14ª Câmara de Direito Privado, j. 1.2.2022, v.u.) (g.n.)
E como não poderia deixar de ser mencionado, o entendimento em referência harmoniza com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acerca deste importante tema7:
“Quanto ao argumento de ausência de culpa exclusiva do réu pelo atraso na entrega dos contêineres e ocorrência de caso fortuito ou força maior que justificasse a sobreestadia, extrai-se do acórdão recorrido:
No mérito, o recurso não comporta provimento, devendo ser mantida sentença que condenou a ré ao pagamento de valor referente a sobreestadia. A inda que autora não tenha comprovado a contratação com relação ao pagamento de algum valor ou prazo de uso gratuito dos contêineres, praxe comercial indica que contratante do transporte tem a seu dispor contêiner deve devolvê-lo dentro de um prazo determinado, sob pena de pagar um valor por dia de atraso. Assim, mesmo que inexistam nos autos documentos que comprovem ciência adesão da ré a esses termos do contrato, não tendo impugnado a contratação da demurrage em sua defesa, impõe-se a manutenção da condenação. Cabia à ré impugnação específica todos fatos alegados pela autora na petição entretanto, limitou-se alegar que prazos estipulados para uso livre dos contêineres seriam exíguos insuficientes, dada ocorrência de paralisação demora das autoridades alfandegárias. Assim, não houve uma impugnação específica quanto à ocorrência da contratação seus termos, incluindo-se o prazo para uso livre e o valor das diárias de sobreestadia, tampouco quanto extensão do atraso. Desnecessário portanto, invocar-se os dispositivos legais relativos à distribuição do ônus da prova, aplicando-se previsto no artigo 302 Código de Processo Civil, ou seja, presunção de veracidade dos fatos alegados pela autora em sua petição inicial. De fato, a denominada "demurrage'' segundo a doutrina jurisprudência pacífica deste Egrégio Tribunal Justiça de Paulo, é uma indenização pré-fixada em favor do armador, que não pode dispor dos contêineres enquanto a mercadoria transportada não for desembaraçada no porto; não possuindo, portanto, natureza de cláusula penal. Referida cláusula objetiva uma reparação pelos prejuízos sofridos pelo armador enquanto este não pôde utilizar seus contêineres, em razão do atraso causado por aquele responsável por devolvê-los .Segundo entendimento jurisprudencial, a demurrage é devida independentemente da aferição de culpa do contratante pelo atraso na devolução, sendo devida ainda que imputáveis à demora das autoridades alfandegárias, mesmo em situação de greve, razão pela qual se apontou desnecessidade da produção da prova desses fatos (e-STJ, fls. 259/260).
A dinâmica do transporte marítimo de mercadorias, seja pela tecnologia atualmente empregada, seja pela necessidade premente de agilidade em todos os procedimentos da cadeia logística, não permite mais a imposição de formalidades que unicamente servem ao papel de redundância. A previsibilidade da incidência de demurrage pela não devolução do contêiner no prazo previamente estabelecido é notória, consta do respectivo conhecimento marítimo, inobstante tratar-se de praxe comercial consolidada há décadas no meio marítimo.
Em última análise, defender o excesso de formalidade e exigir o termo de responsabilidade como documento essencial à constituição do direito de cobrança de demurrage, impõe também uma reflexão: A ausência do termo permitiria então ao usuário a utilização do equipamento por tempo indeterminado, sem nenhum ônus ou dever de compensação, considerando que ao armador não haveria outro meio de provar o seu direito e buscar a devida reparação? Admitir essa possibilidade significaria contradizer o próprio Direito, beneficiando o inadimplente contratual em detrimento dos direitos do credor da obrigação, sendo o formalismo mais um ônus àquele que já se encontra em situação de prejuízo.
Ao transportador, entre outros, cabe o dever de transportar a mercadoria, informar previamente por meio de tabela pública os valores e prazos de sobreestadia, tudo no estrito cumprimento do contrato de transporte. Na outra ponta, da mesma forma, entre outros deveres, cabe ao usuário a obrigação de devolver o contêiner no prazo estabelecido. Se isso não ocorre, restará configurado o inadimplemento contratual, ensejando o pagamento da demurrage, cabendo a respectiva cobrança pela via judicial, caso necessária, independentemente de termo de responsabilidade, vez que todas as cláusulas e condições inerentes já constam dos documentos do transporte, tabelas públicas e representam os usos e costumes do comércio e transporte marítimo de mercadorias.
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1 A Lei 6.288 de 1975 regulamentava o transporte intermodal de cargas. Posteriormente, foi revogada pela Lei 9.611 de 1998.
2 Lei 9.611 de 1998, dispõe sobre o transporte multimodal de cargas.
3 Código Civil, artigo 412: “O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal”.
4 Apelação Cível nº 1014012-67.2020.8.26.0562, 13ª Câmara de Direito Privado, j. 11.5.2022, v.u.
5 Apelação Cível nº 1007079-49.2018.8.26.0562, Rel. Des. Salles Vieira, j. 27.11.2020, v.u.
6 Apelação Cível nº 1014012-67.2020.8.26.0562, 13ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Francisco Giaquinto, j. 11.5.2022, v.u.
7 AgREsp 902.593, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 20.5.2016.