Migalhas Marítimas

As Funções do Tribunal Marítimo – Parte VII – A Função Instrutória sob o Olhar da Jurisprudência

No texto de hoje, Sérgio Ferrari e Roberta Labruna analisam como a jurisprudência tem tratado da repercussão das decisões do TM sobre os processos judiciais.

12/5/2022

Nos dois textos mais recentes desta série de artigos, apresentamos a função instrutória do Tribunal Marítimo (TM), sem dúvida a que gera maiores controvérsias e a que tem maior interesse para os profissionais do Direito em geral, dada sua obrigatória repercussão sobre os processos judiciais.

Depois de fazer uma breve aproximação do conceito de função instrutória do TM, seguida da análise crítica da doutrina sobre o art. 18 da lei 2.180/54, no texto de hoje analisaremos como a jurisprudência tem tratado da repercussão das decisões do TM sobre os processos judiciais.

Vale relembrar, de início, que com redação dada pela lei 9.578/1997, que alterou alguns dos dispositivos da Lei Orgânica do Tribunal Marítimo, a premissa de que “[a]s decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.” se encontra consolidada através do 18º artigo da mencionada lei 2.180/54. Portanto, faz-se uma leitura da jurisprudência a partir dos seus pontos centrais da função instrutória, no que diz respeito aos acórdãos exarados pelo Tribunal Marítimo, quais sejam: valor probatório, presunção de acerto e, ainda, suscetibilidade ao reexame pelo Poder Judiciário.

De pronto, é importante reforçar que a jurisprudência que decide sobre os elementos acima dispostos é bastante esparsa e carece de correntes bem definidas, o que dificulta qualquer tipo de padronização, ou mesmo de categorização dos julgados que versem sobre o tema. A título exemplificativo, traz-se à baila o levantamento quantitativo promovido por Eliane Octaviano até o ano de 2010, por meio do qual identificou-se o seguinte:

“Em análise da esfera jurisprudencial no TJSP, TJRJ, TJRS, TJSC, TJAP, TJPR, TJES, TRF-1, TRF-3, STJ e STF, foram detectados 23 precedentes versando sobre decisões do TM acatadas/ratificadas pelo poder judiciário até o início de 2010 (...) Em sentido contrário, foram evidenciados catorze precedentes pelo reexame ou desconsideração da decisão do TM, irrelevância ou ausência de influência na causa julgada.”.

Pois bem. Da leitura dos breves julgados que se dispõem a abordar os três elementos centrais do art. 18º, ainda que indiretamente, tem-se que uma parcela das decisões proferidas prestigia, de forma inequívoca, os acórdãos do Tribunal Marítimo. Estas decisões valorizam a função instrutória da Corte Marítima e evidenciam o valor probatório das suas decisões – apesar de, não necessariamente, se alinharem ao entendimento daquela Corte.

Um exemplo prático desse tipo de entendimento se manifesta por meio de acórdão exarado pelo Tribunal de Justiça do Amazonas, por meio do qual o i. Relator destaca que, objetivamente, “(...) o artigo 18 do mencionado diploma legal estabelece que as decisões do Tribunal Marítimo, quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação, têm valor probatório e se presumem certas, sendo, porém, suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário”1.

Em decisão ainda mais recente, o Tribunal de Justiça do Paraná dispôs de forma semelhante, se dignando a, inclusive, reproduzir precedente da própria Corte local nesse sentido2. O acompanharam, em decisões extremamente parecidas, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina3, de São Paulo4, do Espírito Santo5, do Distrito Federal6, do Rio de Janeiro7, Rio Grande do Sul8, o TRF da 2ª região9, o STJ10 e até mesmo a Justiça Trabalhista11, em sede de recurso de revista.

Este ponto merece especial destaque: embora a análise da função instrutória costume ter como foco de atenção a jurisdição cível, o art. 18 da Lei 2.180/54 trata apenas do “Poder Judiciário”, sem distinções, de modo que suas decisões, no específico ponto de apreciação do processo marítimo, devem ser levadas em conta também na jurisdição penal e na trabalhista.

Por outro lado, a presunção de certeza contida no art. 18 da LOTM tende a ser afastada em outros julgados – alguns, inclusive, proferidos por Tribunais já mencionados neste breve artigo. De forma mais sutil, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já caracterizou, oportunamente, que o fato de que inquérito instaurado pelo Tribunal Marítimo fora arquivado em razão de não se chegar à comprovação da causa do evento ou de culpa da ré seria inteiramente “desinfluente ao desfecho da presente lide”. O julgado opta por afastar o entendimento da Corte Marítima sem grandes pretensões de fundamentar a escolha, tratando o acórdão como mera opinião12.

A tendência que se observa, no entanto, é de valorização do decisum administrativo marítimo, até mesmo, como bem colocou o juiz daquela Corte, Marcelo David Gonçalves, em recente escrito doutrinário, em razão da “obstinada exigência [do NCPC] de que toda decisão judicial seja fundamentada, [de modo que] não pode o juiz simplesmente desprezar ou desconsiderar a decisão do Tribunal Marítimo, uma vez que seus acórdãos gozam de presunção de certeza. Terá o magistrado a hercúlea missão de enfrentar a decisão e fundamentar em sentido contrário”13.

Em harmonia com o entendimento acima disposto, merece destaque que o Supremo Tribunal Federal se propôs a aprofundar, ainda antes da virada do século, a questão na análise da posição e valor dos julgados do Tribunal Marítimo colocando, ainda nas palavras de Marcelo David Gonçalves, uma “pá de cal” sobre o assunto. Esse valioso evento ocorreu através do AI 51711-RJ, de relatoria do Ministro Bilac Pinto. Confira-se a ementa do julgado.:

SEGURO MARITIMO. NAUFRAGIO DE NAVIO. AÇÃO DE COBRANÇA DA INDENIZAÇÃO CORRESPONDENTE A SUA PERDA TOTAL. LEGITIMIDADE DA UTILIZAÇÃO DA PROVA, DAS CONCLUSÕES TECNICAS E DA DECISÃO DO TRIBUNAL MARITIMO ADMINISTRATIVO NO JULGAMENTO DA AÇÃO PELO TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS. TENDENCIA DO ESTADO MODERNO DE ATRIBUIR O EXERCÍCIO DE FUNÇÕES QUASE-JURISDICIONAIS A ÓRGÃOS DA ADMINISTRAÇÃO, ALIVIANDO OS ÓRGÃOS DO PODER JUDICIARIO DO EXAME DE MATERIAS PURAMENTE TECNICAS. INVIABILIDADE DO EXTRAORDINÁRIO PARA O REEXAME DE PROVAS. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (STF - AI: 62811 RJ, Relator: BILAC PINTO, Data de Julgamento: 20/06/1975, PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 26-09-1975)

Dessa decisão, e em um contexto de valorização das decisões exaradas por órgãos administrativos que possuem entendimento especializado técnico sobre temas particulares, merece grande destaque o entendimento ministerial, no seguinte sentido:

“[a]s conclusões de natureza técnica, do Tribunal Marítimo inscrevem-se, entretanto no particular, entre as provas de maior valia, devendo merecer a mais destacada consideração, de juízes e tribunais, por tratar-se de órgão oficial e especializado. Sem prova mais convincente em contrário, nada autoriza se desprezarem as conclusões técnicas do Tribunal Marítimo.

É certo que a decisão é antiga (1975) e anterior à Constituição de 1988, ou seja, quando o STF ainda acumulava as funções de guardião do direito federal ordinário, hoje cometidas ao Superior Tribunal de Justiça.    De todo modo, como a função instrutória do TM não está prevista no texto constitucional, mas na sua Lei Orgânica (2.180/54), é pouquíssimo provável que o tema venha a merecer a atenção da Corte Constitucional, salvo se vier a analisar o dispositivo à luz do princípio da inafastabilidade da jurisdição14.

Os relevantes reflexos desse entendimento podem ser identificados em julgados recentes, a exemplo do acórdão proferido pela 11ª câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em sede de julgamento de aclaratórios no recurso de apelação 9221073-86.2003.8.26.0000, no notório caso “Dg Harmony”.

O julgado em referência se viu diante de alegada afronta ao disposto nos arts. 18 e 19 da lei 2.180/54, visto que o Juízo a quo proferira sentença a despeito de insistentes pedidos da apelante – ora embargante – para que fosse aguardado o julgamento do acidente pelo Tribunal Marítimo, previamente à prolação de sentença naqueles autos. A decisão do Tribunal acabou por ser acostada aos autos como “fato novo” já em segundo grau.

Em seu voto, o Des. Relator, Marco Fábio Morsello, sustenta reputar-se “mais correto inferir que tal suspensão não se mostra obrigatória, mas, em vista do valor probante de que são dotadas as decisões acerca de questões de ordem técnica discutidas pelo Tribunal Marítimo, devem estas ser juntadas aos autos e levadas em consideração pelo órgão judiciário”.

A conclusão auferida no que diz respeito ao acórdão em comento foi bem resumida por Marcelo Sammarco15 em artigo desta mesa coluna, com conclusão que em muito remete ao posicionamento do e. STF no julgamento do já estudado AI 51711-RJ:

“Nesse aspecto, o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo levou em consideração o fato de que não havia nos autos nenhuma prova técnica capaz de contrapor de forma consistente e balizada o teor da decisão emanada do Tribunal Marítimo. Ou seja, as decisões do Tribunal Marítimo não vinculam o Judiciário e podem ser contrapostas, desde que confrontadas por prova judicial suficientemente embasada tecnicamente para tanto, como, por exemplo, uma perícia judicial.”

Mas não é só. Posteriormente ao advento da nossa Constituição, contamos com ainda outro julgado exarado em sede excepcional sobre o tema. Trata-se do REsp n. 38.082/PR, decidido sob relatoria do Des. Ari Pargendler ainda em 1999.

O caso em estudo viu ação indenizatória ser julgada procedente no âmbito da Justiça Estadual do Paraná, de modo a reconhecer a responsabilidade de preposto não-habilitado à realização de manobra de embarcação de recreio na ocorrência de incêndio seguido de naufrágio em um iate clube. A sentença foi confirmada em sede de apelação, com um voto vencido.

Os votos vencedores no caso em concreto seguiram as conclusões alcançadas no IAFN que precedeu o ajuizamento da demanda (o qual, comenta-se, alcançou decisão manifestamente contrária à do Tribunal Marítimo), atribuindo culpa ao preposto e, ainda, ao clube. O voto vencido, por sua vez, suscitava, em síntese, que inexistia nexo de causalidade entre a conduta do empregado e o resultado, na premissa de que a presunção deste não poderia afastar o entendimento do acórdão do Tribunal Marítimo.

Já em âmbito da Corte Superior de Justiça, é curioso precisar que dois dos cinco Ministros componentes da Turma fundamentaram sua decisão pelo provimento recursal a partir do Código Civil vigente à época, e não da lei 2.180/54 (o dispositivo aplicado, art. 159, versava sobre a obrigação de reparar o dano causado culposamente). De todo modo, a despeito das diferenças em fundamentação, a decisão proferida pela Turma foi unânime.          

Não se ignora que a carência de entendimento técnico acerca das normativas que regem o Tribunal Marítimo pela maior parte dos magistrados, à sua função, escopo e conhecimento técnico são fatores que podem contribuir em larga escala para o receio em conceder, quando da realização de cotejo probatório, grande valor a eventual decisão do Tribunal Marítimo.

Dito isso, e a despeito de eventuais decisões contrárias, é fundamental reconhecer que, já em 1975, o próprio STF já compreendia pela indispensabilidade de extensa elaboração acerca dos elementos que venham a desqualificar eventual decisão do Tribunal Marítimo enquanto prova perante o Poder Judiciário, realizando para tanto o cotejo entre o julgado da Corte Marítima e provas que se reputem de maior valor.

______________

TJAM, Ap. Cível nº 0248677-43.2010.8.04.0001, 3ª C.C., Rel. Des. Aristóteles Lima Thury, p. em 31.03.2015.

2 TJPR, Ap. Cível nº 0011318-77.2011.8.16.0129, 8ª C.C., Rel. Jds. Juiz Alexandre Barbosa Fabiani, j. em 14.10.2019.

3 TJSC, Ap. Cível nº 0658868-05.2003.8.24.0023, 1ª C.C., Rel. Des. Gerson Cherem II, j. em 06.06.2019.

4 TJSP, Ap. Cível nº 1007361-87.2018.8.26.0562, 22ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Edgard Rosa, j. em 28.03.2019.

5 TJES, Ap. Cível nº 0043400-08.2014.8.08.0024, 1ª Turma Cível, Rel. Des. Arthur José Neiva De Almeida, j. em 26.11.2018.

6 TJDF, Ag. De Instrumento nº 0702831-81.2018.8.07.0000, 1ª Turma Cível, Rel. Des. Simone Lucindo, j. em 06.06.2018.

7 TJRJ, Ap. Cível nº 0063258-74.2003.8.19.0001, 24ª C.C., Rel. Jds. Ana Célia Montemor Soares Rios Gonçalves, j. 24.01.2018.

8 TJRS, Ap. Cível nº 70001379965, 9ª C.C., Rel. Des. Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira Rebout, j. em 28.11.2001.

9 TRF-2, Ap. Cível nº 0006331-50.2005.4.02.51027, 7ª Turma Especializada, Rel. Des. Luiz Paulo Da Silva Araujo Filho, j. em 18.12.2013.

10 STJ, AgInt no AREsp nº 975.219/AM, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. em 21.03.2017.

11 TST, Recurso Repetitivo nº 2657020185120047, 7ª Turma, Rel. Des. Evandro Pereira Valadao Lopes, j. 18.08.2021.

12 TJRJ, Ap. Cível nº 15144/99, Rel. Des. Antônio Lindberg Montenegro, j. em 29/02/2000.

13 LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo (Coord.). Direito Marítimo: estudos em homenagem aos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães. Belo Horizonte: Fórum, 2021, pág. 372.

14 Constituição Federal.

Art. 5º. (...)

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

15 SAMMARCO, Marcelo e col. "Caso ‘Dg Harmony’ - Uma análise das decisões do tribunal marítimo” - Migalhas. Migalhas.com.br. Disponível aqui. Acesso em: 4 maio 2022.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.