Migalhas Marítimas

Insolvência transnacional e garantias marítimas

A insolvência transnacional foi incorporada no ordenamento jurídico brasileiro a partir da lei 14.112, como parte de um esforço para fomentar a administração ordenada de reestruturações transfronteiriças.

5/5/2022

A insolvência transnacional foi incorporada no ordenamento jurídico brasileiro a partir da lei 14.112, que passou a vigorar a partir de 23 de janeiro de 2021, como parte de um esforço nacional para fomentar a administração ordenada de reestruturações transfronteiriças.

Com ênfase na cooperação, o capítulo reservado aos procedimentos internacionais de insolvência (Arts. 167-A / 167-Y), prevê e incentiva uma cooperação sem precedentes entre os tribunais de diferentes jurisdições, num esforço para proporcionar uma abordagem coordenada para administrar os ativos de um devedor com uma presença comercial que transcenda as fronteiras do país.

O Capítulo VI-A, inserido pela lei 14.112/20, também possibilita o acesso aos tribunais brasileiros para devedores estrangeiros, uma vez que um processo de insolvência estrangeiro tenha sido reconhecido, permitindo que representantes estrangeiros solicitem diretamente ao juízo especializado de primeiro grau, no Brasil, o alívio apropriado. Ao estabelecer requisitos objetivos de elegibilidade para o reconhecimento, o recente capítulo promove a previsibilidade e confiabilidade não previstas no ordenamento anterior.

Vale mencionar que o capítulo que trata da Insolvência Transnacional baseia-se na Lei Modelo sobre Insolvência Transnacional (o "Modelo de lei"1, que foi promulgada pela Comissão das Nações Unidas sobre Direito Comercial Internacional ("UNCITRAL"). A Lei Modelo foi projetada para atender:

Abordagens jurídicas inadequadas e desarmônicas, que dificultam o resgate de empresas financeiramente problemáticas, não são propícias a uma administração justa e eficiente de insolvências transfronteiriças, impedem a proteção dos ativos do devedor insolvente contra a dissipação e dificultam a maximização do valor desses ativos. Além disso, a ausência de previsibilidade no tratamento de casos de insolvência transfronteiriça impede o fluxo de capital e é um desestímulo ao investimento transfronteiriço (...) A fraude por parte de devedores insolventes, em particular, ao ocultar ativos ou transferi-los para jurisdições estrangeiras, é um problema crescente, tanto em termos de sua freqüência quanto de sua magnitude.2

Atualmente, legislações baseadas na Lei Modelo já foram adotadas em total de 54 Jurisdições3, como: Austrália, Japão, Grécia, Singapura, Inglaterra, Estados Unidos, Canadá e etc...

A aplicação do instituto da Insolvência Transnacional se faz cada vez mais relevante, especialmente em decorrência do crescimento de grupos econômicos multinacionais e da ausência de limites territoriais no âmbito empresarial, efeitos do fenômeno da globalização.

Mas aqui cabe a pergunta, por que o tema está sendo trazido numa coluna especializada em Direito Marítimo?

A resposta parte do fato de que a aplicação desse instituto da Insolvência Transnacional é ainda mais significativa para empresas do ramo do transporte marítimo, cuja atividade transfronteiriça é primordial, conectando países e continentes.

Inclusive, em inédita decisão proferida em julho de 2021, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, através do Juízo da 3ª Vara Empresarial, concedeu a antecipação de tutela à empresa Prosafe SE, especializada na exploração de embarcações marítimas, para reconhecer a existência de processo estrangeiro de insolvência em trâmite perante o Tribunal Superior de Singapura.4

A medida suspendeu o curso de processos de execução em face da devedora no Brasil, de modo a assegurar a continuidade de suas atividades empresariais e auxiliar em seu soerguimento, o que de fato ocorreu com a homologação de seu plano de reestruturação (scheme of arrangement).

Como se não bastasse o exemplo acima, nos últimos anos vários casos de insolvência envolvendo empresas do setor marítimo geraram impactos nas relações comerciais por todo o globo e expuseram relevantes conflitos legislativos entre a insolvência transnacional e o direito marítimo.

Os maiores exemplos destes conflitos ocorreram em falências de grandes companhias marítimas, como a OW Bunker, empresa que liderava o mercado de abastecimento de embarcações, fundada na Dinamarca em 1980, com operações em mais de 29 países.

A falência da empresa sul-coreana Hanjin Shipping, que já foi a sétima maior companhia de navegação do mundo, também é outro fundamental exemplo do conflito latente entre as legislações marítimas e de insolvência transnacional.

Estes conflitos originam-se principalmente em virtude da divergência, entre jurisdições, do tratamento concedido aos efeitos das chamadas garantias marítimas quando uma empresa se declara insolvente.

A hipoteca marítima, espécie de garantia, garante que "o navio, elemento indispensável para o comércio marítimo e representando, por isso, quase sempre, valor considerável, é, pois, suscetível de ser objeto de garantia do crédito necessário à exploração naval."5

Por outro lado, quando aplicado o Regulamento Europeu de Insolvência "European Insolvency Regulation (EIR), não há segurança jurídica quanto à classificação dos créditos decorrentes da hipoteca naval, que podem perder seu status de crédito privilegiado, sendo classificados como ordinários e submetidos ao concurso de credores".

Essa falta de segurança jurídica gera um efeito em cascata em desfavor das empresas marítimas, pois seus lienholders, que anteriormente estavam cobertos por garantias, passam a se sentir vulneráveis, partindo para a utilização de medidas constritivas, como arrestos.

Os efeitos dos arrestos são enormes. As cargas transportadas ficam retidas em portos de todo o mundo e os navios, ociosos. A situação pode se agravar mais ainda em se tratando de vidas humanas, como no caso da Hanjin Shipping, em que a tripulação das embarcações se tornou impossibilitada de atracar nos portos, devido à insegurança sobre o futuro do navio, que sofria alta chance de ser arrestado.

Sob outra perspectiva, a Lei Modelo sobre Insolvência Transnacional da UNCRITRAL também não traz previsões específicas sobre as garantias marítimas, deixando para que a legislação nacional de cada país decida sobre sua submissão ao processo de insolvência ou não.

Em se tratando do reconhecimento de processos de insolvência estrangeiros, apesar da Lei Modelo possuir notório caráter universalista, cujo objetivo é garantir efeitos automáticos a partir do reconhecimento de um processo principal estrangeiro, como a suspensão do curso de execuções ou quaisquer medidas tomadas individualmente por credores, seu artigo 20.2 garante que o Estado possa introduzir exceções à regra.

No caso do Brasil, por exemplo, a partir do reconhecimento do processo estrangeiro principal, decorrem automaticamente: (i) a suspensão do curso de quaisquer processos de execução ou de quaisquer outras medidas individualmente tomadas por credores relativas ao patrimônio do devedor, respeitadas as demais disposições da lei 11.101/05; (ii) a suspensão do curso da prescrição de quaisquer execuções judiciais contra o devedor; (iii) a ineficácia de transferência, de oneração ou de qualquer forma de disposição de bens do ativo não circulante do devedor realizadas sem prévia autorização judicial.

Vale ressaltar que, nos termos do art. 167-M, §1º, a extensão, modificação ou cessão dos efeitos decorrentes do reconhecimento, subordinam-se ao disposto na lei 11.101/2005. Ou seja, deve-se seguir o período de suspensão determinado pela Lei brasileira, de 180 (cento e oitenta) dias corridos, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal.

Portanto, apesar das Legislações sobre Insolvência Transnacional representarem um essencial aperfeiçoamento na busca para uma melhor manutenção da atividade empresarial da devedora e a maximização do interesse dos credores, ainda restam grandes lacunas e conflitos, notadamente em se tratando de empresas do ramo marítimo, atividade transfronteiriça por natureza e amplamente regida pelos usos e costumes, cujas peculiaridades necessitam de debates e estudos próprios.

A questão se torna ainda mais latente quando identificado o conflito entre a validade das garantias marítimas e a submissão destes créditos ao concurso de credores e aplicação de legislação sobre insolvência transnacional. Em razão de tal divergência entre as jurisdições, é relevante que o Brasil, com o amadurecimento da nova legislação, possa trazer segurança jurídica tanto para as empresas em dificuldades financeiras, quanto aos seus credores, aplicando a norma transnacional sem desprezar as garantias concedidas aos lienhohders, mantendo apenas o stay period nos moldes da legislação e da jurisprudência brasileiras.

Referências 

BRASIL, Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.

BRASIL, Lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020.

BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Comarca da Capital, 3ª Vara Empresarial, Processo nº 0129945-03.2021.8.19.0001, Autor: Prosafe SE, MM. Dr. Juiz Diogo Barros Boechat, Sentença publicada em 08 de julho de 2021.

LACERDA, J.C Sampaio De, Curso de Direito Privado da Navegação, Volume I, Direito Marítimo, 2ª Edição, pág. 333).

UNCITRAL, Legislative Guide on Insolvency Law, at 310 (2005). 

UNCITRAL, Model Law on Cross-Border Insolvency, Status (1997), acesso em 27 de abril de 2022.

UNCITRAL, Model Law on Cross Border Insolvency with Guide to Enactment and Interpretation, (2014).

__________

1 UNCITRAL Model Law on Cross Border Insolvency with Guide to Enactment and Interpretation, (2014)

2 UNCITRAL Legislative Guide on Insolvency Law, at 310 (2005), available at.

3 Status: UNCITRAL Model Law on Cross-Border Insolvency (1997), acesso em 27 de abril de 2022.

4 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Comarca da Capital, 3ª Vara Empresarial, Processo nº 0129945-03.2021.8.19.0001.

5 LACERDA, J.C Sampaio De, Curso de Direito Privado da Navegação, Volume I, Direito Marítimo, 2ª Edição, pág. 333).

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.