Migalhas Marítimas

Impactos da Guerra entre Rússia e Ucrânia no comércio internacional marítimo

28/4/2022

A deflagração do conflito entre Rússia e Ucrânia, além de uma crise humanitária que vem afetando milhares de pessoas -- consequência mais grave e lamentável da guerra --, vem causando também relevantes impactos no comércio internacional realizado por via marítima, os quais merecem ser analisados brevemente sob o ponto de vista jurídico.

Segundo informações divulgadas pela imprensa no último mês, dezenas de navios mercantes estariam encontrando dificuldades em seguir viagem, estando atracados em portos do Mar Negro e no adjacente Mar de Azov. Ainda segundo noticiado pela imprensa, grandes companhias de navegação estariam enfrentando dificuldades em contratos de transporte de carga vindos ou com destino à Rússia, havendo inclusive relatos de navios mercantes que teriam sido atingidos por bombardeios.

A região marítima em questão é estratégica tanto do ponto de vista militar, quanto comercial, uma vez que, nela está localizado o porto de Mariupol, importante centro de exportação de aço, carvão e cereais (especialmente trigo) para o resto do mundo. Além disso, a região é extremamente relevante também no que se refere à exploração de petróleo e gás natural, notadamente o consumido pelos países europeus.

O conflito vem aprofundar a crise na cadeia logística global iniciada com a pandemia e impactada pelo bloqueio no Canal de Suez, anteriormente abordado nessa coluna em uma série de artigos, agravando o cenário de aumento do frete e do preço dos combustíveis, escassez de contêineres e atrasos nas rotas marítimas. 

Em razão do conflito, as zonas do Mar Negro e do Mar de Azov foram incluídas na lista internacional das principais regiões com elevada probabilidade de guerra, pirataria ou terrorismo, aumentando a classificação de risco para "Risco Classe 3".

Nesse contexto, empresas de transporte marítimo enfrentam um aumento nos custos do transporte e das commodities, bem como maior risco de inadimplemento ou atrasos em contratos de compra e venda de mercadorias por via marítima. Algumas empresas, segundo o noticiado pela imprensa, mantiveram apenas o transporte de bens essenciais, suspendendo temporariamente as reservas de carga para importações e exportações para a região.

No mercado de seguros marítimos, igualmente, o impacto do conflito tende a gerar acréscimo do prêmio previsto no contrato, em virtude do risco de guerra, tornando também obrigatório, na maioria dos casos, que os armadores notifiquem previamente o seu segurador sempre que planejem viagem para a região.

No âmbito jurídico e contratual, que interessa mais diretamente ao presente artigo, recomenda-se uma análise mais cuidadosa das cláusulas referentes à entrega da mercadoria, pois são elas que irão definir quem será o responsável pelo risco de inadimplemento do contrato e da mercadoria. Por exemplo, as cláusulas "FOB" ("free on board") e DAP ("delivered at place") devem ser cuidadosamente avaliadas, já que definirão o momento da transferência de responsabilidade pela carga entre os contratantes.

Essa análise torna-se especialmente relevante no momento, uma vez que, conforme acima mencionado, a ofensiva russa tem impactado exatamente os acessos ao Mar Negro, no qual se localizam portos estratégicos do país. Portanto, na hipótese de o lugar de entrega previsto no contrato recair em uma dessas zonas, ou ainda portos afetados pelo conflito, é possível que essas cláusulas sejam objeto de controvérsia entre o comprador/vendedor. 

As cláusulas de porto seguro ("safe port clauses") e de risco de guerra ("war risk clauses"), como não poderia ser diferente, também merecem destaque nesse cenário. A primeira cláusula, como se sabe, permite que armadores/transportadores se recusem a ir ao porto indicado no contrato se o mesmo for considerado “inseguro” (o que pode decorrer de agitação política e deflagração de guerra). Já a segunda diz respeito à possibilidade de que proprietários dos navios se recusem a navegar por áreas em guerra. Além disso, as cláusulas de guerra também podem estabelecer formas de atribuição de responsabilidade por custos adicionais derivados da guerra (por exemplo, com prêmios de seguro de risco).

Com relação à cláusula de porto seguro, destaca-se que a segurança a que se faz referência costuma ser entendida não apenas como a segurança do porto, mas também a segurança da rota para o porto, o que é particularmente relevante no caso em exame. Salvo situações excepcionais, caso seja emitida uma ordem para a embarcação seguir para um porto inseguro, ou, ainda, se a situação acerca do porto ou da rota mudar após a ordem ser dada, de modo que a localidade passe a se tornar insegura, o comandante/armador, a depender das circunstâncias do caso concreto, poderá rejeitar a ordem e/ou pedir novas instruções.

De todo modo, recomenda-se cautela no momento de averiguar a segurança do porto e/ou da rota e, assim, de rejeitar as instruções para o transporte da mercadoria, a fim de que a rejeição seja devidamente motivada, evitando complicações contratuais para o armador/transportador.

A título de exemplo, no modelo de cláusula "VOYWAR 2013", divulgada pela Bimco ("The Baltic and International Maritime Council"), há a previsão de que o armador ("Owner") não será obrigado a transportar ou descarregar cargas em locais sujeitos ao chamado "Risco de Guerra". Nesse caso, o armador deverá notificar o afretador para que este indique um porto seguro em 48 horas e, caso essa indicação não seja realizada, o armador poderá descarregar a carga ou parte dela em um porto de sua escolha, podendo ainda cobrar do afretador as despesas adicionais eventualmente incorridas. Evidentemente, a questão dependerá da caracterização do conceito de "Risco de Guerra", o que somente será possível avaliar no caso concreto. Mesmo assim, vale conferir a redação da cláusula em exame:

"(c) The Owners shall not be required to continue to load cargo for any voyage, or to sign bills of lading, waybills or other documents evidencing contracts of carriage for any port or place, or to proceed or continue on any voyage, or on any part thereof, or to proceed through any canal or waterway, or to proceed to or remain at any port or place whatsoever, where it appears, either after the loading of the cargo commences, or at any stage of the voyage thereafter before the discharge of the cargo is completed, that, in the reasonable judgement of the Master and/or the Owners, the Vessel, cargo, crew or other persons on board the Vessel may be exposed to War Risks. If it should so appear, the Owners may by notice request the Charterers to nominate a safe port for the discharge of the cargo or any part thereof, and if within 48 hours of the receipt of such notice, the Charterers shall not have nominated such a port, the Owners may discharge the cargo at any safe port of their choice (including the port of loading) in complete fulfilment of the Contract of Carriage. The Owners shall be entitled to recover from the Charterers the extra expenses of such discharge and, if the discharge takes place at any port other than the loading port, to receive the full freight as though the cargo had been carried to the discharging port and if the extra distance exceeds 100 miles, to additional freight which shall be the same percentage of the freight contracted for as the percentage which the extra distance represents to the distance of the normal and customary route, the Owners having a lien on the cargo for such expenses and freight." 

Por fim, mas não menos relevante, ganha destaque no contexto em exame a cláusula referente à força maior. A ocorrência desta situação, ao longo da execução contratual, a depender das circunstâncias concretas, pode impactar os contratos em curso.   A sua redação precisará ser interpretada conforme os fatos concretos. Isto é, a parte afetada pelos impactos do conflito terá o ônus de provar que o evento era, no contexto da contratação, um fato imprevisível e possui relação com a impossibilidade de cumprimento ou de cumprimento pontual do contrato, o que geralmente requer também a prova de que outros meios de adimplemento não eram possíveis.

Por exemplo, o proprietário de um navio que alega não poder transportar a mercadoria para o porto em que esta deveria ser descarregada, poderá ter que demonstrar não só que foi física ou juridicamente impossível levar a mercadoria ao porto – devido, por exemplo, a bloqueios decorrentes da guerra –, mas também que não havia outras formas de realizar a viagem, por exemplo, por meio de rotas alternativas, ainda que incorrendo em custos adicionais a serem cobrados posteriormente do afretador.

Sob a ótica do Direito brasileiro, as adversidades decorrentes de um contexto de guerra teriam de passar pelo crivo do conceito de impossibilidade superveniente, conforme artigos 234 e 248 do Código Civil, ou da onerosidade excessiva, nos termos do artigo 478 e seguintes do mesmo diploma. Evidentemente, uma questão complexa, que demanda análise cuidadosa do contrato e do contexto fático em que o mesmo foi firmado.

Além das questões acima, são inúmeros os potenciais entraves que ainda poderão se originar do conflito, especialmente se o mesmo se prolongar e/ou houver a imposição de boicotes comerciais, valendo citar os seguintes, apenas a título de exemplo: (i) cobrança de armazenagem adicional por parte do terminal/armazém; (ii) danos materiais à carga perecível devido ao congestionamento do porto ou atraso da viagem; (iii) problemas com a necessidade de troca da tripulação em razão dos atrasos ocasionados pelo conflito etc. Há, portanto, uma miríade de questões jurídicas e logísticas que poderão surgir com o prolongamento do conflito.

Portanto, ao considerar as possíveis consequências do atual conflito entre Rússia e Ucrânia no âmbito jurídico, recomenda-se às empresas de transporte marítimo, armadores e afretadores especial cautela. Para aquelas que já possuem contratos vigentes para prestação de serviços nessa região, torna-se importante realizar novas avaliações de risco do contrato firmado, revisando, principalmente, as cláusulas de porto seguro, de risco de guerra e força maior anteriormente mencionadas. Para os agentes que ainda irão celebrar contratos que possam ser afetados pelo conflito ou pelas sanções impostas à Rússia, os contratos poderão incluir cláusulas específicas já prevendo o tratamento das obrigações no contexto atual do conflito.

Referências

MORENO, Elida. "Panamá diz que 3 navios foram atingidos por mísseis russos no Mar Negro durante guerra na Ucrânia". Isto É Dinheiro, 2022. Disponível aqui.

JANONE, Lucas. "Pelo menos seis companhias interrompem cruzeiros em portos da Rússia e Ucrânia". CNN Brasil, 2022. Disponível aqui.

HIRATA, Taís. "Guerra deverá agravar caos logístico no mundo". Valor O Globo, 2022. Disponível aqui.

CASTRO JR., Osvaldo Agripino de. "Guerra da Rússia x Ucrânia: Uma nova onda de abusos na logística marítima e portuária?". Portogente, 2022. Disponível aqui. 

MENDES, Carla. "Pelo menos cinco navios cargueiros já foram bombardeados nas regiões do Mar Negro e de Azov". Notícias Agrícolas, 2022. Disponível aqui.

FIGUEIREDO, Felipe. "O avanço da guerra pelo Mar Negro e seu impacto no comércio marítimo". Gazeta do Povo, 2022. Disponível aqui.

DIAS, Daniel; ROSENVALD, Nelson; FONTES, Pedro; VENTURI, Thais G. Pascoaloto Venturi. "Guerra e contrato: implicações do conflito entre Rússia e Ucrânia para comerciantes." Migalhas, 2022. Disponível aqui.

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.