Migalhas Marítimas

A aplicação da Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG) como usos e costumes do comércio internacional

A aplicação da Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG) como usos e costumes do comércio internacional.

24/3/2022

Recentemente, ao julgar a apelação 1017219-07.2017.8.26.0004, o TJ/SP concluiu pela aplicação da CISG - Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, em um processo envolvendo a compra e venda de 5.040 caixas de kiwis, sob o fundamento de que a referida Convenção reflete os usos e costumes do direito do comércio internacional, do qual as empresas brasileiras participam ativamente. O acórdão merece destaque e uma análise mais aprofundada sob o enfoque do Direito Marítimo, área em que os usos e costumes, como se sabe, possuem bastante relevância.

A CISG, como se sabe, é o conjunto de normas internacionais que regulamentam a formação, interpretação e obrigações referentes a contratos internacionais de compra e venda de mercadorias, sendo aplicável a todos aqueles que tenham seus estabelecimentos em Estados distintos, quando tais Estados forem Estados Contratantes, exatamente como era o caso do processo acima indicado, envolvendo o comprador localizado no Brasil e o vendedor na Itália. Embora tenha sido elaborada em 1980 em uma Conferência das Nações Unidas sobre o tema, a Convenção só veio a ser ratificada pelo Brasil em 2014, tendo sido promulgada pelo decreto 8.327/14.

Na hipótese do acórdão em exame, a Apelante (empresa italiana) – vendedora dos kiwis – alegou que havia efetivamente celebrado o contrato de compra e venda com a Apelada (empresa brasileira) - compradora das frutas -, sendo que as mercadorias teriam sido embarcadas em um navio no porto de Gênova, na Itália, conforme comprovavam os conhecimentos de transporte marítimo (bills of lading) juntados ao processo pela Apelante. A apelada, por outro lado, negou ter adquirido os kiwis, argumentando, sobretudo, que inexistiria contrato escrito amparando a transação. Assim, alegou que nenhum pagamento seria devido à empresa italiana, negando a existência da transação.

O argumento da apelada de inexistência do negócio jurídico em virtude da ausência de contrato sob a forma escrita prevaleceu em primeira instância. Contudo, ao apreciar os documentos comprobatórios juntados pela apelante, a 32ª câmara de Direito Privado do TJ/SP concluiu pela celebração do contrato de compra e venda de kiwis entre as partes, fundamentando tal conclusão no art. 11 da CISG, que prevê que “[o] contrato de compra e venda não requer instrumento escrito nem está sujeito a qualquer requisito de forma”.

Nos termos do voto relator, muito embora a Convenção tivesse sido promulgada após a celebração do negócio jurídico, que ocorreu em 2013, seria o caso de aplicar a norma do art. 11 da CISG como instrumento de “soft law” em Direito Internacional, “uma vez que a mesma, desde 1980, reflete os usos e costumes do direito do comércio internacional”. Prosseguindo em sua fundamentação, o acórdão também invocou o art. 113 do CC/02, segundo o qual “[o]s negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.

Dessa forma, ainda que a CISG não fosse imediatamente aplicável ao caso concreto, o Tribunal decidiu que a Convenção poderia corroborar os usos e costumes do direito do comércio internacional, conferindo maior segurança jurídica a hipóteses como a tratada naquele processo. E, com base nisso, considerou os conhecimentos de embarque/transporte (bill of lading) em nome da compradora brasileira, cotejados com o restante do conjunto probatório (como os comprovantes de recebimento da mercadoria pela compradora no porto de Santos), como suficientes para se concluir pela formação e existência do contrato.

Neste aspecto, o acórdão também aplicou os arts. 18(3) da CISG1 e 432 do CC/022 para reforçar a aceitação eficaz da proposta (e consequente formação do contrato) através da prática de atos (independente de manifestação escrita) que indicavam a intenção da apelada/compradora de firmar a compra e venda.

Além disso, o acórdão do julgamento também fez menção a outros julgados proferidos pelos Tribunais pátrios que já decidiram pela aplicação da Convenção em contratos de compra e venda. Notadamente, na apelação 0305428-39.2014.8.24.0038, o TJ/SC aplicou especificamente ao art. 11 da CISG, também reconhecendo que a forma do negócio celebrado prescindia de instrumento formal e reforçando a importância da aplicação uniforme da Convenção pelos Estados brasileiros.

O TJ/RS, por sua vez, ao julgar a apelação 0000409-73.2017.8.21.7000, discorreu sobre a aplicação da CISG como instrumento de “soft law”, destacando expressamente que “a Convenção constitui expressão da praxe mais difundida no comércio internacional de mercadorias, estando por isso ao alcance dos Juízes nacionais, até mesmo em função da norma do art. 113 do Código Civil, que determina a interpretação dos negócios jurídicos de acordo com os usos e costumes”.

Ainda segundo esse último acórdão, a Convenção tem sido qualificada como olife blood of international commerce [sangue vital do comércio internacional]”, já que se trata do mais utilizado instrumento jurídico de regulação da compra e venda internacional de mercadorias, contando com 85 ratificações, incluindo a China, EUA, Japão, Europa Ocidental, América Latina e Sudeste Asiático, regendo, assim, aproximadamente 80% do comércio internacional.

O recente julgado do TJ/SP reforça a aplicação da CISG como instrumento de “soft law” aplicável ao comércio internacional de mercadorias, especialmente por via marítima, mesmo nos casos em que a Convenção não for diretamente aplicável, como na hipótese julgada pelo referido acórdão, em que a compra e venda havia sido firmada antes mesmo da promulgação da CISG pelo decreto 8.327/14. Esse modelo de aplicação da Convenção pode representar, a depender das circunstâncias do caso concreto, uma inovação na forma como os Tribunais brasileiros interpretam e reconhecem negócios internacionais, não apenas no que diz respeito à desnecessidade de forma escrita para celebração do negócio, na forma do art. 11, citado no julgado, mas também nos demais aspectos que abrangem as obrigações assumidas pelos atores do comércio internacional.

No Direito Marítimo, sobretudo, o tema assume especial relevância na medida em que os usos e costumes, como se sabe, são particularmente importantes ao regular as especificidades dos negócios internacionais. A CISG, assim como outras convenções internacionais, tais como os INCOTERMS, tradicionalmente utilizados no comércio marítimo internacional, permite que empresas de diferentes nacionalidades adotem regras uniformes em suas transações, reduzindo a insegurança jurídica das partes. Aplicação da CISG pelos Tribunais brasileiros, desde que realizada de forma criteriosa e atenta às circunstâncias do caso concreto, pode constituir em importante avanço na melhoria do ambiente de negócios e redução dos custos de transação.  

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“(3) Se, todavia, em decorrência da proposta, ou de práticas estabelecidas entre as partes, ou ainda dos usos e costumes, o destinatário da proposta puder manifestar seu consentimento através da prática de ato relacionado, por exemplo, com a remessa das mercadorias ou com o pagamento do preço, ainda que sem comunicação ao proponente, a aceitação produzirá efeitos no momento em que esse ato for praticado, desde que observados os prazos previstos no parágrafo anterior.”

2 “Art. 432. Se o negócio for daqueles em que não seja costume a aceitação expressa, ou o proponente a tiver dispensado, reputar-se-á concluído o contrato, não chegando a tempo a recusa.”

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.