Dando sequência à série de artigos sobre as funções do Tribunal Marítimo, iniciarei hoje a abordagem sobre a função instrutória, que é, sem dúvida, a que gera maiores polêmicas e discussões, tanto na doutrina quanto na jurisprudência.
Em artigos anteriores, neste mesmo espaço, já expus uma visão geral das funções do TM, quando foi possível perceber que as dificuldades começam na própria individualização de tal função, muitas vezes confundida com a função sancionatória. Começarei, então, por tentar diferenciá-las.
Numa primeira aproximação, a função instrutória do TM consiste na apuração dos acidentes e fatos da navegação, e sua interpretação à luz das normas técnicas e jurídicas, de modo a determinar circunstâncias, causas e culpas dos acidentes.
Essa função instrutória não se confunde com a função sancionatória, exposta em artigo anterior, uma vez que seu resultado terá, em princípio, natureza informativa, e tem como destinatário o Poder Judiciário, que tomará a decisão do TM como prova. O valor dessa prova – e mesmo sua natureza, ou seja, se é realmente prova, parecer técnico ou julgamento jurídico – é, como já dito, matéria altamente controversa.
A frequente confusão que se faz entre a função sancionatória e a função instrutória decorre do fato de que ambas se desenrolam no mesmo processo, que apura acidentes e fatos da navegação, e se encerram no mesmo acórdão. Isso levou alguns autores a, baseados num critério exclusivamente formal, baralhar ambas sob o mesmo rótulo de “jurisdição contenciosa do TM”.
É preciso contextualizar a crítica: a obra de J. Haroldo dos Anjos e Caros Rubens Caminha Gomes1 foi precursora no exame das funções do Tribunal Marítimo, numa época em que praticamente nada fora escrito sobre o tema, nem havia significativa atenção da literatura jurídica à Corte do Mar. Exatamente por esta virtude do pioneirismo, a referida classificação foi seguida e propagada por praticamente todos os autores que se dedicaram ao assunto nas décadas seguintes. É o conhecido paradoxo do progresso científico: sem que o caminho fosse desbravado pelos precursores, não seria possível construir novas teorias, exatamente pela contraposição às pioneiras e sua superação.
À luz do Direito Constitucional, todavia, especialmente sob a lente da separação dos poderes, a diferença entre as duas funções é patente: uma representa o exercício de atividade administrativa sancionatória, em que o TM instrui o processo e aplica pena, enquanto a outra se encerra na instrução em si, e terá valor significativo para o exercício de outra função estatal, a judicial.
A função instrutória tem sua matriz no muito controvertido art. 18 da lei 2.180/54, bem como em seu art. 19:
Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.
Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva.
Por ora, basta dizer que, a despeito das variações na redação dos dispositivos e da longa controvérsia sobre os efeitos da decisão do TM junto ao Judiciário, é certo que se tem aí uma função autônoma, da maior importância, que é o julgamento de fatos (aqui utilizado no sentido jurídico mais genérico), que consubstanciam acidentes e fatos (no sentido específico da lei 2.180/54) da navegação, para fins de estabelecimento de responsabilidades. Quando esse julgamento é levado ao Judiciário, ingressando num processo judicial stricto sensu, como prova, constitui exatamente o exercício da função instrutória pelo TM. Note-se que, também sob este ângulo, a função instrutória é autônoma com relação à função sancionatória: o TM pode atribuir responsabilidades, mas deixar de aplicar pena (por algum fator excludente e exclusivo do âmbito do Direito Administrativo Sancionador), e, ainda assim, essa decisão pode levar a uma condenação judicial, no âmbito civil. A hipótese oposta também é possível: o TM pode entender pela culpa concorrente de duas ou mais pessoas num acidente da navegação, punindo todas, mas, no âmbito judicial, isso pode resultar na falta de responsabilização civil, em razão exatamente da culpa concorrente.
A análise do art. 74 da lei 2.180/54 permite vislumbrar, com maior clareza, ambas as funções, contidas no mesmo processo e no mesmo acórdão:
Art. 74. Em todos os casos de acidente ou fato da navegação, o acórdão conterá:
a) a definição da natureza do acidente ou fato e as circunstâncias em que se verificou;
b) a determinação das causas;
c) a fixação das responsabilidades, a sanção e o fundamento desta;
d) a indicação das medidas preventivas e de segurança da navegação, quando fôr o caso.
A função sancionatória está claramente contida na alínea “c” do dispositivo, em que o TM aplica a sanção cabível, uma vez fixadas as responsabilidades. Obviamente, a aplicação da sanção dependerá também do contido nas alíneas “a” e “b”, pois as responsabilidades só podem ser fixadas quando se tem a definição dos fatos e a determinação das suas causas.
Quanto à função instrutória, está contida, também com clareza, nas alíneas “a” e “b”, pois são estes fatores, cuja ocorrência, conteúdo e natureza terão a chancela do TM, que o Poder Judiciário poderá tomar como pressuposto ao decidir uma lide civil ou criminal, ou seja, exercendo a jurisdição num sentido estrito.
Entretanto, a parte inicial da alínea “c” (“fixação das responsabilidades”) gera dúvidas sobre seu enquadramento também na função instrutória, o que está intrinsecamente ligado à interpretação que se dê ao art. 18 da lei: ao fixar responsabilidades, a decisão do TM terá, também nesta parte, valor probatório junto ao Poder Judiciário? Essa fixação aprecia fato ou direito? A resposta a essas perplexidades depende exatamente da visão que se tenha da natureza jurídica dessa função instrutória.
Ainda nesta primeira aproximação, é importante dizer que a redação do art. 18 variou ao longo dos anos, para conferir maior ou menor vinculação do Poder Judiciário à decisão do TM. Em todos estes períodos, inclusive sob a redação atual, que é de 1997, se discute se a definição de responsabilidade, pelo TM, vincula, como presunção absoluta ou relativa, a decisão do Judiciário em matéria penal ou civil.
Tradicionalmente, nos debates sobre o tema, se fala – certamente por influência da redação do art. 18 – em “revisão” ou “reexame” das decisões do TM pelo Judiciário. Entendo haver aí uma perspectiva equivocada.
Na verdade, só se pode falar em “revisão” ou “reexame” das decisões do TM quando se está diante das funções registral ou sancionatória. No âmbito da função instrutória, a decisão do TM é levada ao Judiciário, para subsidiar a decisão daquele próprio Poder. O ponto, então, não é se o Judiciário irá “rever” ou “reexaminar” a decisão do TM, mas precisamente “valorá-la”, no sentido de adotar ou não seus termos como razão de decidir no exercício da jurisdição civil ou penal.
Em termos práticos: se o Judiciário ignora a decisão do TM, atribuindo responsabilidade civil ou penal distinta do apurado no processo marítimo, isto não terá nenhuma influência sobre a decisão administrativa em si, ou seja, não modificará eventual punição ou absolvição que a Corte do Mar tenha decidido. Não há, portanto, uma revisão ou reexame.
Entendo, assim, que é sob a ótica da valoração que se conseguirá melhor compreender o verdadeiro alcance dos citados dispositivos e, em consequência, da natureza e dos limites da função instrutória do TM.
Por força, portanto, do que dispõem os arts. 18 e 19 da lei 2.180/54 – em vigor e recepcionados por sucessivas Constituições, como já dito anteriormente – a decisão final do TM na apuração de acidentes e fatos da navegação terá obrigatoriamente uma repercussão nos processos judiciais (civis ou penais) que tratem dos mesmos fatos. Neste primeiro momento, então, o que se pretende deixar claro é que esta repercussão tem claríssima base legal (não pode ser simplesmente ignorada pelos Juízes), é função autônoma do TM, inconfundível com as demais, e tampouco essa repercussão no processo judicial constitui “reexame” ou “revisão” da decisão do processo marítimo.
Esclarecidas estas premissas, nos próximos artigos abordarei a visão da literatura jurídica, da jurisprudência e uma possível sistematização dessa função, cujo conhecimento é tão importante para os que atuam nos processos judiciais relacionados a acidentes e fatos da navegação.
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1 ANJOS, J. Haroldo dos, GOMES, Carlos Rubens Caminha. Curso de Direito Marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 111.