Introdução
A responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga transportada é um dos temas de maior debate na indústria mundial de transporte marítimo.
A indústria sempre se ressentiu de um sistema regulatório que trouxesse uniformização e harmonização em relação ao tema, de forma a criar uma base jurídica sólida capaz de favorecer o desenvolvimento do comércio internacional.
A existência de tal sistema ofereceria os seguintes benefícios:
- a) Redução dos conflitos tanto em relação à jurisdição que atrai competência para regular a matéria, quanto também em relação ao seu conteúdo. Mais importante do que se ter o conteúdo privilegiando este ou aquele segmento da indústria, é de se ter a certeza do regramento que se aplica a matéria;
- b) Maior agilidade na formação dos negócios;
- c) Redução dos custos do comércio internacional, uma vez que os riscos do negócio ficam mais bem mapeados.
Por estas razões tem havido um enorme esforço da comunidade marítima e comercial internacional em se estabelecer regras uniformes sobre a responsabilidade do transportador marítimo nos contratos de transporte.
As convenções internacionais em vigor sobre este assunto são:
- a) As Regras de Haia, criada em 1924, em Bruxelas, na Convenção Internacional para Unificação de Certas Regras de Direitos Relativas aos Conhecimentos de Transporte Marítimo. Estas regras foram posteriormente revisadas, em 1968 e 1979, passando, após a sua segunda revisão, a se chamar Regras de Haia-Visby;
- b) A Convenção Internacional para o Transporte de Mercadorias pelo Mar, conhecida como Regras de Hamburgo, criada em 1978.
As Regras de Haia-Visby são as que tem maior relevância no transporte marítimo global, uma vez que poucos países adotaram as Regras de Hamburgo.
Além das convenções internacionais citadas anteriormente, o tema em análise foi tratado na Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Transporte Internacional de Mercadorias Totalmente ou Parcialmente por Mar, criada em 2009, conhecida como Regras de Rotterdam. Tal convenção, no entanto, não está em vigor porque não foi atingida a quantidade mínima de ratificações estabelecidas em suas provisões.
O Brasil tem posição única em relação aos regimes internacionais de responsabilidade civil por danos a carga, posto que não adotou as Regras de Haia-Visby e nem as de Hamburgo, bem como não encaminhou instrumento de ratificação para as Regras de Rotterdam, razão pela qual se aplica no país, sobre o tema, a legislação doméstica.
Neste artigo será analisada a legislação brasileira sobre o assunto e a jurisprudência correlata em perspectiva crítica.
Nesta análise está sendo considerado que: a mercadoria que sofre danos está sujeita a um contrato de transporte, regido pela lei brasileira ou em que há atração da lei brasileira; o transporte é feito por navio, com navegação em alto mar; não se considerando multimodalidade, nem a aplicação do CDC - Código de Proteção e Defesa do Consumidor (lei 8.078/90). O foco da análise será apenas na legislação brasileira e jurisprudência correlata. Não será analisado nenhum texto contratual específico.
Iniciaremos a nossa análise apresentando a jurisprudência vigente.
Análise da jurisprudência vigente
A jurisprudência brasileira se consolidou no sentido de que a responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga tem natureza contratual, enquadrada como objetiva, sendo entendido que as obrigações do transportador são de resultado, razão pela qual se diz que há culpa presumida do transportador quando da ocorrência de tais danos.
Os argumentos utilizados para sustentar este entendimento e a sua análise são, de um modo geral, os seguintes:
a) Aplicam-se ao transporte marítimo as disposições do decreto legislativo 2.681/12.
“Art. 1º - As estradas de ferro serão responsáveis pela perda total ou parcial, furto ou avaria das mercadorias que receberem para transportar. Será sempre presumida a culpa e contra esta presunção só se admitirá alguma das seguintes provas...”
Em primeiro lugar se observa que a analogia que fundamenta a jurisprudência não se acha amparada lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro).
“Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” (grifo nosso)
Ocorre que a lei não é omissa, uma vez que há no Código Comercial (lei 550/1850) disposições específicas para tratar da matéria, razão pela qual não se pode fazer uso da analogia indicada.
Além disso, não é razoável considerar que se aplicam ao transporte marítimo os mesmos riscos do transporte ferroviário. Os riscos no transporte ferroviário são menores do que no transporte marítimo, não sendo, portanto adequado tratar a responsabilidade dos diferentes modais da mesma forma.
b) O contrato de transporte marítimo se assemelha ao contrato de depósito.
Este argumento se baseia no art. 519 do Código Comercial (lei 550/1850).
“Art. 519 - O capitão é considerado verdadeiro depositário da carga e de quaisquer efeitos que receber a bordo, e como tal está obrigado à sua guarda, bom acondicionamento e conservação, e à sua pronta entrega à vista dos conhecimentos (arts. 586 e 587). A responsabilidade do capitão a respeito da carga principia a correr desde o momento em que a recebe, e continua até o ato da sua entrega no lugar que se houver convencionado, ou que estiver em uso no porto da descarga.” (grifo nosso)
A jurisprudência ao conferir ao transportador marítimo culpa presumida por danos à carga, entende que a expressão “verdadeiro depositário da carga” remete ao contrato de depósito voluntário estabelecido nos arts. 627 a 646 do CC/02 (lei 10.406/02).
Tal tipo de contrato se refere à guarda de coisa, deixada em estabelecimento em terra, como por exemplo, ocorre com as bagagens de hóspedes deixadas em hotel ou nos serviços de guarda-móveis ou guarda-volumes.
O contrato de transporte marítimo não pode sob nenhuma circunstância ser assemelhado ao contrato de depósito por conta dos riscos dos referidos contratos serem completamente diferentes.
Além disso se observa que a interpretação do referido artigo deve ser feito sob o contexto do art. 529 da mesma lei, que assim estabelece:
“Art. 529 - O capitão é responsável por todas as perdas e danos que, por culpa sua, omissão ou imperícia, sobrevierem ao navio ou à carga; sem prejuízo das ações criminais a que a sua malversação ou dolo possa dar lugar (artigo 608). O capitão é também civilmente responsável pelos furtos, ou quaisquer danos praticados a bordo pelos indivíduos da tripulação nos objetos da carga, enquanto esta se achar debaixo da sua responsabilidade.” (grifo nosso)
Desta forma, o correto contexto para se interpretar o art. 509 do Código Comercial é dado pelo art. 529 da mesma lei. Portanto, não cabe fazer analogia com o contrato de depósito, previsto no CC/02, haja vista a vedação legal para tal prática, conforme mencionado no item “a” acima.
Sendo assim, a leitura conjugada dos dois artigos faz ver que segundo o Código Comercial, a responsabilidade do transportador depende da comprovação da culpa do transportador.
c) Aplica-se ao transporte marítimo o parágrafo único do art. 927 do CC/02 – Teoria do Risco.
“Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
A jurisprudência, ao aplicar o referido dispositivo, não observa que para que se possa imputar ao transportador marítimo a obrigação de indenizar independente de culpa é necessário que:
- i) haja lei específica assim definindo, ou;
- ii) a atividade normalmente desenvolvida pelo transportador, autor do dano, implique, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
No que diz respeito à primeira hipótese, não há lei especificando para o transporte marítimo de coisas a responsabilidade independente de culpa. Tal tipo de responsabilidade somente acontece para o transporte de pessoas (CC/02 – art. 734). Também não pode a jurisprudência fazer analogia com os contratos de depósito, conforme analisado no item anterior.
Já em relação à segunda hipótese, se destaca que no contrato de transporte marítimo o embarcador se beneficia dos riscos da atividade, uma vez que se o interessado no transporte optasse por usar outros modais de transporte, como por exemplo, transporte aéreo, rodoviário ou ferroviário, a sua carga estaria exposta a riscos menores, porém tendo que pagar bem mais pelo custo do transporte. Sendo assim, a aplicação da teoria do risco nos contratos de transporte marítimo cria um desequilíbrio indevido na alocação dos riscos entre os contratantes, na medida em que a jurisprudência despreza a alocação de riscos assumida pelas partes em contrato.
A aplicação da teoria do risco nos contratos de transporte marítimo também viola o que dispõe o inciso II do art. 421-A do CC/02 que estabelece que “a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada”. Embora neste estudo não tenha sido analisado nenhuma cláusula contratual, vale observar que o mercado de transporte marítimo não tem por prática estabelecer em seus contratos a responsabilidade objetiva do transportador.
Ainda sobre a alocação de riscos no contrato de transporte marítimo, é oportuno lembrar que o art. 763 do Código Comercial estabelece o compartilhamento de riscos entre embarcador e o transportador marítimo, ao dispor sobre a avaria grossa.
“Art. 763 - As avarias são de duas espécies: avarias grossas ou comuns, e avarias simples ou particulares. A importância das primeiras é repartida proporcionalmente entre o navio, seu frete e a carga; e a das segundas é suportada, ou só pelo navio, ou só pela coisa que sofreu o dano ou deu causa à despesa.”
Em vista de todo o exposto, não há hipótese em que se possa aplicar ao transporte marítimo aquela teoria do risco estabelecida pelo legislador no parágrafo único do art. 927 da Lei Civil.
Caracterização da responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga à luz da legislação vigente
Na seção anterior foi demonstrado que não há fundamentação legal para o entendimento vigente da jurisprudência na caracterização da responsabilidade civil do transportador marítimo por danos à carga.
Passaremos agora a analisar como a legislação brasileira caracteriza tal responsabilidade.
a) Código Comercial
Já havíamos mencionado no item “b” da seção anterior que segundo o art. 529 do Código Comercial as perdas e danos que a carga sofrer, somente serão indenizadas se ficar provado que o transportador marítimo tiver agido com culpa, omissão ou imperícia. Reveja-se:
“Art. 529, Código Comercial - O capitão é responsável por todas as perdas e danos que, por culpa sua, omissão ou imperícia, sobrevierem ao navio ou à carga (...).”
Nesse sentido, é importante registrar que este entendimento já esteve esposado no passado pela jurisprudência da nossa Corte Suprema, como se demonstra a seguir:
“Transporte marítimo (...) No contrato de transporte marítimo vige, entre nós, o princípio da responsabilidade com culpa (C.Com, art. 529).” (STF - Trecho da ementa do RE no 74.443 – DJ 29/6/73).
Este entendimento deixou de ser aplicado pela jurisprudência, mas no trabalho de pesquisa preparatório para a elaboração do presente artigo, não pudemos identificar precisamente em qual momento houve a mudança do paradigma na jurisprudência outrora defendida pelo STF.
Não identificamos em nossas pesquisas a argumentação que amparasse a sua substituição, mas sim um elevado número de julgados citando a responsabilização objetiva, sem debruçar-se em quais seriam os fundamentos legais adotados ou citando os fundamentos já acima analisados, os quais, ao nosso entender, não justificam a alteração da jurisprudência.
b) Código Civil
“Art. 749. O transportador conduzirá a coisa ao seu destino, tomando todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado ou previsto.” (grifo nosso)
O art. 749 do CC/02 estipula que a obrigação do transportador de conduzir a coisa a seu destino está vinculada a adoção de todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado.
Sendo assim, o texto normativo não traduz uma obrigação de resultado ao transportador, mas sim de meios. O uso da expressão “tomando todas as cautelas necessárias” para qualificar a expressão “para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado ou previsto” deixa claro que o propósito do legislador foi estabelecer que tal obrigação é de meios e não de resultados. Desta forma, a responsabilidade do transportador marítimo por danos à carga depende da comprovação de sua culpa na ocorrência do dano.
Este entendimento fica mais claro, quando se analisa o contexto do referido dispositivo, comparando-o com os arts. 734 e 735 do CC/02, que tratam do transporte de passageiros.
“Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.(grifo nosso)
Art. 735. A responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva.” (grifo nosso)
Observa-se que no caso do transporte de passageiros, o legislador brasileiro impôs ao transportador de passageiros responsabilidade objetiva por danos aos passageiros.
É interessante cotejar as expressões adotadas para definir as obrigações de transporte de coisas e passageiros.
- · Transporte de coisas – art. 749 – “tomar todas as cautelas necessárias”;
- · Transporte de passageiros – arts. 734 e 735 – “responde por...salvo motivo”; “a responsabilidade contratual...não é elidida por”.
Sempre que o legislador brasileiro deseja estabelecer que o dever indenizar a outrem pelo dano causado independe de conduta culposa ele é claro em sua disposição, conforme se verifica nos arts. 927 e 931 do CC/02.
“Art. 927 par. único - Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente (grifo nosso)
Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação.” (grifo nosso).
Conclusão
O Código Comercial, lei brasileira vigente aplicável ao transporte marítimo estabelece que a responsabilidade do transportador marítimo por danos à carga só deve ocorrer se ficar provado que sua conduta culposa em relação ao dano ocorrido.
Durante anos a jurisprudência brasileira abraçou este entendimento.
O CC/02, em sintonia com o que estabelece o Código Comercial e a jurisprudência anterior, indica que a responsabilidade do transportador marítimo por danos à carga transportada é subjetiva, sujeita portanto à comprovação de culpa do transportador marítimo.
Este entendimento está em linha com a alocação de riscos prevista no mercado internacional e na legislação doméstica da maior parte dos países.
Deve-se ter em mente que tal conceito tem a ver com a relação entre o valor do frete e o valor da mercadoria transportada. No transporte de granéis sólidos ou líquidos esta relação tipicamente fica entre 4% e 7%. No transporte de cargas em contêineres esta relação pode ser bem inferior a 4%.
A consequência desta relação é que a receita gerada pelo frete é insuficiente para fazer frente à indenização por danos à carga, sobretudo tendo em conta os riscos típicos do transporte marítimo.
É nesse contexto que, há séculos, a prática do mercado é que a carga transportada por via marítima esteja segurada em face de todos os riscos do transporte marítimo, o que faz com que em última análise, os riscos do transporte não fiquem alocados ao embarcador, mas sim ao seu segurador.
A indústria de seguros tem por objeto a absorção de riscos de seus clientes. O êxito desse negócio decorre do fato de que somente em uma pequena parte dos seguros contratados ocorrem sinistros que geram para os seguradores a obrigação de indenizar os segurados.
Aliás, nessa linha convém citar o julgado a seguir destacado, por meio do qual se reconhece que, se uma seguradora subrogada em hipótese de avaria de carga, no curso de uma cadeia de transporte que envolve distintos modais e operações, passa a ter direito de reclamação em face do “real causador do dano”, caberia a esta seguradora provar a culpa do agente ou do transportador contra o qual pretenda demandar, sem poder se apoiar na tese de responsabilidade objetiva presumida.
“A responsabilidade do transportador é objetiva perante o proprietário da carga, que o contratou exatamente para esse fim (trazer o equipamento do Japão para o Brasil). Contudo, tratando-se de ação regressiva envolvendo seguradora há necessidade de comprovação da culpa para viabilizar o acolhimento da pretensão indenizatória (responsabilidade subjetiva).” (Processo: 562.01.2010.032368-9, Santos, 25/11/11. Marcos Augusto Barbosa dos Reis, juiz de Direito)
Em vista de todo exposto, pretendemos com o presente artigo apenas motivar o debate e propiciar uma oportunidade de que a jurisprudência vigente sobre o tema possa ser revisitada ou ao menos discutida com maior reflexão.