Introdução
Com aproximadamente 7.400 quilômetros de costa marítima navegável e cerca de 80% da população estabelecida em até 200 quilômetros de distância das regiões litorâneas, o Brasil possui vocação natural para a exploração do transporte de cabotagem, isto é, o transporte marítimo de cargas entre portos situados dentro dos limites do território nacional1.
Apesar disso, o país conta hoje com alta concentração de cargas no modal rodoviário. Em 2019, por exemplo, o Brasil movimentou 61% das cargas circuladas no país através do modal rodoviário, 21% por ferrovias e apenas 14% através do transporte aquaviário (somados a navegação marítima de longo curso, de cabotagem, fluvial e lacustre). O restante foi movimentado nos modais dutoviário e aéreo, conforme dados divulgados pela Confederação Nacional do Transporte (CNT)2.
Neste cenário, a cabotagem representa apenas 11% do total movimentado no segmento aquaviário, número considerado muito baixo diante do potencial representado pela extensa costa marítima navegável.
A concentração de cargas no modal rodoviário se evidencia não só pelos números, mas, também, pela greve deflagrada por caminhoneiros em maio de 20183, cujo movimento impediu a circulação de mercadorias de norte a sul do país durante 10 (dez) dias consecutivos, provocando o desabastecimento de bens, insumos e produtos essenciais, o que resultou na paralisação de diversas atividades econômicas naquela oportunidade.
Não se pretende aqui julgar o pleito de caminhoneiros e operadores de transportes rodoviários, mas o episódio inegavelmente ilustra o flagrante desequilíbrio da matriz logística brasileira, ainda muito dependente de um único modal de transporte, além de ressaltar a necessidade de melhor distribuição de cargas entre os modais de transportes disponíveis de acordo com variáveis determinadas por distância percorrida, tipologia de carga, custo logístico, entre outros fatores.
Se compararmos os números brasileiros com as métricas de outros países, o desequilíbrio da matriz logística nacional se torna ainda mais evidente. Esse mesmo exercício comparativo também revela que países mais desenvolvidos ou superdesenvolvidos possuem matriz logística equilibrada, o que torna seus respectivos produtos altamente competitivos no comércio internacional. Um claro indicativo de que o desenvolvimento econômico de uma nação passa necessariamente pelo equilíbrio da sua matriz logística.
Nesse aspecto, recente levantamento divulgado pelo ILOS (Instituto de Logística e Supply Chain)4 aponta que países de dimensões continentais como o Brasil, entre os quais Estados Unidos, China, Austrália e Canadá, possuem matriz logística extremamente equilibrada e contam com uma distribuição mais uniforme de cargas entre os mais diversos modais de transportes utilizados nos seus territórios. O resultado todos nós já conhecemos: são países que gozam de elevada eficiência e custos logísticos reduzidos, o que reflete diretamente na redução do preço final de produtos consumidos no mercado interno e na alta competitividade de produtos comercializados no cenário internacional.
Portanto, seja do ponto de vista estratégico (a movimentação de cargas no território nacional é questão estratégica para o abastecimento e desenvolvimento econômico do país), seja pelo aumento de agilidade e eficiência no fluxo de cargas, o Brasil precisa urgentemente reequilibrar a sua matriz de transportes mediante políticas de incentivo e incremento das operações de cabotagem (transporte marítimo de cargas entre portos do território nacional) e de outros modais compatíveis com as caraterísticas econômicas e geográficas do nosso país.
Atento à essa realidade, o Ministério da Infraestrutura apresentou o PL 4.199 de 2020, que institui o programa de incentivos às operações de cabotagem, denominado “BR do Mar”, recentemente aprovado no Congresso Nacional sob a forma da lei 14.301 de 2022, sancionada, com vetos, pela Presidência da República.
Em síntese, o "BR do Mar" tem como finalidade ampliar a oferta de navios dedicados à cabotagem na costa brasileira como forma de promover a concorrência, incentivar a criação e regularidade de novas rotas e reduzir custos logísticos.
Com efeito, a recém sancionada lei 14.301 de 2022 estabelece nova regulamentação para as operações de cabotagem, cabendo destacar, em especial, os seguintes itens, que serão objeto de análise neste artigo: (i) flexibilização gradativa das regras de afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira; (ii) novos critérios para a arrecadação do AFRMM (Adicional de Frete para Renovação da Marinha Mercante) e utilização do respectivo fundo; e (iii) revisão do mínimo de tripulantes brasileiros a bordo de navios dedicados às operações de cabotagem.
Cabe mencionar, ainda, o veto presidencial acerca da recriação do REPORTO (Regime Tributário para Incentivo à Modernização e à Ampliação da Estrutura Portuária), cujo tema será tratado à parte, em artigo especialmente dedicado ao assunto5.
Neste artigo, cuidaremos exclusivamente das novas regras inerentes à cabotagem.
Dos objetivos e diretrizes fixados no "BR do MAR"
Os artigos 1º e 2º da Lei 14.301 de 2022 estabelecem de forma clara e didática os objetivos e as diretrizes do programa “BR do Mar”.
Quanto aos objetivos, merecem destaque a melhoria de qualidade no transporte; o incentivo à concorrência e competitividade; aumento de frota dedicada; e otimização dos recursos oriundos da arrecadação do AFRMM6.
Já entre as diretrizes fixadas no artigo 2º da lei, cabe ressaltar a estabilidade regulatória; regularidade das operações; o equilíbrio da matriz logística brasileira; o incentivo ao investimento privado e a promoção da livre concorrência7.
No total, a lei estabelece 8 (oito) objetivos e 12 (doze) diretrizes que traduzem uma política clara de liberdade econômica mediante flexibilização do mercado de cabotagem com vistas a atrair investimentos de capital privado, permitir a entrada de novos players no segmento, estimular a concorrência e a redução de custos, tudo como forma de equilibrar e tornar mais eficiente a matriz logística nacional.
Sem dúvida, trata-se de um programa moderno e audacioso, restando-nos analisar se, de fato, o texto final aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado, com vetos parciais pela Presidência da República, atende as metas originalmente estabelecidas pelo Ministério da Infraestrutura, quando da elaboração do projeto.
Do afretamento por tempo ou viagem
No tocante ao afretamento por tempo ou viagem, a lei 14.301 estabelece a dispensa de autorização para afretar navio estrangeiro por viagem ou por tempo, a ser usada na navegação de cabotagem para se substituir outro navio que esteja em reforma nos estaleiros nacionais ou estrangeiros.
Na sequência, o texto aprovado define que no afretamento por tempo, não poderá haver limite para o número de viagens; e a empresa brasileira de navegação indicará a embarcação a ser utilizada, que poderá ser substituída apenas em situações que inviabilizem a sua operação8.
Dos critérios estabelecidos para o afretamento de embarcação estrangeira a caso nu, com suspensão da bandeira de origem
Certamente, uma das alterações mais significativas instituídas pela nova lei reside na possibilidade de afretamento de embarcações estrangeiras a casco nu para operações de cabotagem, com suspensão de bandeira, independentemente de a empresa possuir embarcação própria ou ter contratado construção de embarcação nova.
Dessa forma, empresas brasileiras de navegação estão autorizadas a operar na cabotagem, independente de possuir frota própria, o que é uma importante inovação na regulação da cabotagem.
Além disso, a lei prevê flexibilização gradativa quanto ao limite máximo de afretamento de embarcações estrangeiras a casco nu, com suspensão de bandeira, como forma de melhor adaptar e acomodar o mercado às novas regras, bem como proteger aqueles que já operam no segmento quanto aos impactos decorrentes da chegada de novos entrantes.
A partir da vigência da lei, o limite será de 1 (uma) embarcação afretada a casco nu. Após 1 (um) ano de vigência, este limite sobe para 2 (duas) embarcações; com 2 (dois) anos se eleva para 3 (três) embarcações e aos 3 (três) anos, o limite passará para 4 (quatro) embarcações afretadas por empresa.
Finalmente, após 4 (quatro) anos de vigência da lei (ou seja, a partir de 07 de janeiro de 2026), o afretamento a caso nu de navio estrangeiro, com suspensão de bandeira, para a navegação de cabotagem, passará a ser livre9.
Com estes novos critérios, a lei 14.301 de 2022 reduz significativamente as barreiras regulatórias para a entrada de novos players no mercado e cumpre estritamente os objetivos e diretrizes traçados no respectivo preâmbulo, notadamente no que diz respeito ao estímulo à concorrência e livre iniciativa, maior oferta de navios dedicados à cabotagem na costa brasileira, ampliação e regularidade de rotas e redução de custos.
Do mínimo de tripulantes brasileiros nas operações de cabotagem
A proposta aprovada pelo Congresso Nacional estabelecia que as embarcações afretadas pelas empresas habilitadas no BR do Mar para operar na navegação de cabotagem, deveriam operar com tripulação composta por, no mínimo, 2/3 de brasileiros em cada nível técnico de oficialato, incluídos os graduados e subalternos, e em cada ramo de atividade, incluídos o convéns e máquinas.
Entretanto, a redação do inciso II do artigo 9º da Lei 14.301 de 2022, assim como seus parágrafos 1º, 2º e 5º foram vetados pelo Presidente da República por entender que tal exigência aumentaria os custos para as embarcações estrangeiras e, por consequência, reduziria a atratividade para novas adesões ao programa.
Outros aspectos considerados para a tomada de decisão do veto pelo Presidente foram a possibilidade de redução de oferta de emprego para os trabalhadores marítimos, maior tempo de espera das cargas nos portos brasileiros, o aumento dos preços dos fretes aos usuários, a menor efetividade do transporte de cabotagem e da matriz de transporte brasileira.
Em outras palavras, a manutenção do mínimo de tripulantes brasileiros nas embarcações estrangeiras nos moldes pretendidos pelo Poder Legislativo colocaria em risco a efetividade do programa de incentivo à cabotagem, que visa incentivar a concorrência e competitividade na prestação desse serviço.
Com a exclusão dessa proporção mínima de marítimos, as embarcações estrangerias que aderirem ao programa terão seus custos equiparados às embarcações brasileiras reguladas pela lei 9.432 de 1997.
Importante mencionar, entretanto, que além do comandante e do chefe de máquinas, também deverão ser brasileiros o mestre de cabotagem e o condutor de máquinas das embarcações estrangeiras habilitadas para a operação de cabotagem, conforme prevê o artigo 9º, inciso III da Lei 14.301 de 2022.
Do Adicional de Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM)
Outra relevante alteração trazida pela lei 14.301 de 2022 diz respeito à ampliação das possibilidades de utilização do AFRMM - Adicional de Frete para Renovação da Marinha Mercante destinados as empresas brasileiras de navegação.
De acordo com a nova redação da alínea a do inciso I do artigo 19 da Lei 10.893 de 2004, referidas empresas poderão solicitar a utilização desses recursos para a construção ou aquisição de novas embarcações, sem a necessidade de atender à exigência de que tais embarcações sejam para uso próprio.
Além disso, o produto proveniente do AFRMM poderá ser utilizado para jumborização, conversão, modernização, docagem, manutenção, revisão e reparação de embarcação própria ou afretada, inclusive para aquisição e/ou instalação de equipamentos, nacionais ou importados, quando realizada por estaleiro ou empresa especializada brasileira, sendo responsabilidade da empresa proprietária ou afretadora adquirir e contratar os serviços; para manutenção, em todas as suas categorias, realizada por estaleiro brasileiro, por empresa especializada ou pela empresa proprietária ou afretadora, em embarcação própria ou afretada; para garantia à construção de embarcação em estaleiro brasileiro; para reembolso anual dos valores pagos a título de prêmio e encargos de seguro e resseguro contratados para cobertura de cascos e máquinas de embarcações próprias ou afretadas e para pagamento do valor total do afretamento de embarcações utilizadas no mesmo tipo de navegação de cabotagem, de longo curso e interior e geradoras dos recursos do AFRMM para a conta vinculada correspondente, desde que tal embarcação seja de propriedade de uma empresa brasileira de investimento na navegação e tenha sido construída no País.
A lei 14.301 de 2022 ainda possibilitou que os recursos do FMM – Fundo da Marinha Mercante administrado pelo Ministério da Infraestrutura, sejam destinados ao financiamento de até 80% (oitenta por cento) dos projetos aprovados para empresas estrangeiras para a construção ou modernização de embarcações próprias ou afretadas, bem como para o financiamento de até 90% de obras relacionadas à infraestrutura aquaviária e portuária.
Por fim, convém destacar que o projeto de lei aprovado pelo Congresso previa a redução das alíquotas do AFRMM para 8% (oito por cento) para a navegação de longo curso, cabotagem e fluvial e lacustre, por ocasião do transporte de granéis sólidos e outras cargas da região Norte e Nordeste.
Contudo, referido dispositivo foi vetado pela Presidência sob o fundamento de inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público, uma vez que essa redução caracterizaria renúncia de receitas sem a apresentação de estimativa de impacto orçamentário e financeiro e de medidas compensatórias violando, assim, dispositivos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021 e a Emenda Constitucional nº. 109 de 2021.
Nesse sentido, se por um lado, o veto presidencial não atendeu às expectativas das empresas que operam na navegação brasileira e daquelas que pretendem se habilitar no projeto para operação de cabotagem quanto à redução da alíquota do AFRMM, por outro otimizou o uso dos recursos advindos da sua arrecadação.
Conclusão
De acordo com o Ministério da Infraestrutura, com a aprovação do “BR do Mar”, a expectativa é ampliar o volume de contêineres transportados, por ano, “de 1,2 milhão de TEUs (unidade equivalente a 20 pés), em 2019, para 2 milhões de TEUs, além de expandir em 40% a capacidade da frota marítima dedicada à cabotagem nos próximos três anos”.
Cabe acrescentar que o Brasil atravessa um momento especial e sem precedentes em termos de expansão da infraestrutura portuária, com perspectiva de mais de 30 leilões e 68 contratos de adesão para terminais portuários, que somados, deverão atingir mais de R$ 30 bilhões em investimentos até 2025.
Esse incremento das atividades portuárias torna ainda mais urgente e fundamental o aperfeiçoamento da matriz logística brasileira na busca por eficiência, agilidade e custos reduzidos no escoamento e fluxo de cargas no território nacional, de sorte que a aprovação do "BR do Mar" chega em boa hora.
É bem verdade que o veto parcial manifestado pela Presidência da República será apreciado pelo Congresso Nacional que, pela Constituição, terá o prazo de 30 (trinta) dias contados a partir do fim do recesso legislativo, mediante votação conjunta das duas casas legislativas, Câmara e Senado, sob pena de obstrução de pauta.
Portanto, há, ainda, a possibilidade de alteração do texto da legal, mas apenas e tão somente no tocante aos itens que foram objeto do veto presidencial.
Com efeito, a derrubada de veto somente será possível por maioria absoluta dos votos de Deputados e Senadores, ou seja, 257 (duzentos e cinquenta e sete) votos de deputados e 41 (quarenta e um) votos de senadores. A contagem de votos será feita separadamente para cada uma das casas. Caso seja registrada quantidade inferior de votos em umas das Casas legislativas, o veto será mantido10.
No entanto, o eixo principal do programa “BR do Mar”, consubstanciado na autorização para exploração das operações de cabotagem por empresas brasileiras de cabotagem independentemente de frota própria e flexibilização das regras de afretamento de embarcações estrangeiras a caco nu, com suspensão de bandeira, não será objeto de análise durante a tramitação do veto no Congresso Nacional.
Assim sendo, já é possível afirmar que o programa “BR do Mar” atende o objetivo de reduzir as barreiras de entrada para novos operadores, o que deverá proporcionar maior oferta de navios e maior participação da cabotagem no transporte de cargas, bem como o aumento de concorrência, eficiência e redução de custos logísticos inerentes, contribuindo significativamente para reorganização da matriz logística nacional.
Em médio prazo, considerando a flexibilização gradual estabelecida na legislação recém aprovada, o transporte por cabotagem ganhará maior participação nos percursos mais longos, assim como o transporte ferroviário que também foi contemplado com um novo marco legal para redução de barreiras e estímulo de investimentos. De outro lado, o transporte rodoviário seguirá com a sua relevância e protagonismo, mas com utilização mais racional nas médias e curtas distâncias e, possivelmente, com maior número de viagens do que se tem hoje, o que faz todo o sentido em razão das características geográficas do país.
Ao fim e ao cabo, o crescimento da cabotagem e do modal ferroviário estabelecerá o desejado equilíbrio da matriz logística brasileira, bem como permitirá a concretização da intermodalidade.
*Marcelo Sammarco é advogado com atuação no Direito Marítimo, Portuário e Regulatório, sócio no escritório Sammarco Advogados.
**Ariela Dassie é advogada com atuação no Direito Marítimo, Portuário e Regulatório no escritório Sammarco Advogados.
***Fernanda Azevedo é advogada com atuação no Direito Marítimo e Portuário no escritório Sammarco Advogados.
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1 Lei 9.432 de 1997, artigo 2º, inciso IX.
2 Disponível aqui.
3 Disponível aqui. Acesso em 10.01.2022.
4 Disponível aqui. Acesso em 11.01.2022.
5 Mensagem nº 19 de 07 de janeiro de 2022, subscrita pela Presidência da República e endereçada ao Presidente do Senado Federal comunicando vetos parciais e respectivas justificativas. Acesso em 11.01.2022.
6 Lei 14.301 de 2022, artigo 1º.
7 Lei 14.301 de 2022, artigo 2º.
8 Lei 9.432 de 1997, artigos 9º e 10. (redação instituída pela lei 14.301 de 2022).
9 Lei 9.432 de 1997, artigo 10, §§ 1º, 2º e 3º (redação instituída pela lei 14.301 de 2022).
10 Constituição Federal, artigo 66, §4 e artigo 43 do Regimento Comum do Congresso Nacional.