O filme alemão Das Boot (O Barco, 1981) é, até hoje, uma referência para todos aqueles que apreciam o gênero de filmes de guerra, notadamente em razão da precisão com que, à época, reproduziu as condições a bordo de um U-Boat alemão da Segunda Guerra Mundial. Os U-Boats causaram danos consideráveis aos navios de guerra, mas também a navios mercantes, responsáveis, em grande parte, pela manutenção das cadeias de suprimento dos países aliados.
Em razão disso, os navios mercantes passaram a navegar em formações fechadas, com luzes apagadas e pouquíssima distância entre as embarcações. Nas difíceis travessias do Atlântico Norte, tornaram-se frequentes, assim, os abalroamentos em alto mar, que causavam avarias nos navios. Por esse motivo, a fim de simplificar o sistema de responsabilidade e compensação pelos danos, que seria demasiadamente complexo se fosse necessário apurar o responsável por cada acidente, convencionou-se que cada parte arcaria com os danos suportados por suas próprias embarcações, equipamentos e tripulação, isentando-se o causador de responsabilidade.1
Em resumo, cada “batida” (knock) seria compensada pela “batida” (knock) da outra parte, em um sistema “batida por batida”, ou, em inglês, knock-for-knock, isentando-se o causador de responsabilidade pela reparação do dano.
Surgia, assim, um primeiro esboço das cláusulas knock-for-knock,2 cuja enorme utilidade deu azo à sua disseminação pelo setor offshore, além de outras indústrias. Fora da área marítima, é notável o exemplo da cláusula utilizada pela NASA - Agência Espacial Norte Americana, que foi, inclusive, objeto de parecer da lavra do professor Antonio Junqueira de Azevedo, da USP - Universidade de São Paulo.3 Hoje em dia, entretanto, é no setor de óleo e gás que as referidas cláusulas se tornaram praticamente universais, sendo utilizadas, quase invariavelmente, nos contratos firmados entre empresas de E&P - Exploração e Produção e prestadoras de serviços.
Para a indústria offshore e em especial o segmento marítimo, a utilização das cláusulas knock-for-knock é de extrema importância, uma vez que são indispensáveis para a distribuição equitativa de riscos entre as partes. Isso porque, embora não haja dúvida quanto à paridade formal (ou jurídica) entre as partes de um contrato de prestação de serviços nessas indústrias, não se pode dizer o mesmo sobre sua capacidade econômica, sendo a receita de empresas de exploração geralmente muito superior à de suas prestadoras de serviço. Por esse motivo, a exclusão mútua (cross-waiver) da responsabilidade (of liability) é fundamental, pois aloca riscos que, de outra forma, as partes com menor poder econômico não seriam capazes de suportar.4
Feitas as devidas considerações sobre a origem e utilização do instituto, cumpre, agora, adentrar na análise de sua natureza e efeitos jurídicos. Conceitualmente, a cláusula knock-for-knock se assemelha a uma espécie de cláusula excludente de responsabilidade, cuja finalidade precípua consiste na isenção do dever de indenizar por parte do causador do dano. Nesse sentido, a exclusão ocorre reciprocamente, assumindo ambas as partes o ônus de arcar com os danos sofridos por seu pessoal ou sua propriedade, ainda que causados pela contraparte.5 Não se trata de uma cláusula de irresponsabilidade, mas de exclusão recíproca do dever de indenizar a parte contratante que sofreu o dano.
Embora seja um instituto desenvolvido pelo direito inglês, que tem como uma de suas características essenciais a flexibilidade das partes para ajustar seus termos, a cláusula knock-for-knock encontra algumas limitações ontológicas, ou seja, que decorrem de sua própria natureza contratual. Em primeiro lugar, a cláusula não modifica a essência do ato ilícito, que ilícito permanece. O que ocorre é tão somente a supressão de uma das consequências do ato, leia-se, a responsabilidade de indenizar.
Em segundo lugar, salvo situações excepcionais, também não há que se falar em aplicabilidade da cláusula em relação a terceiros, tampouco em relação ao Poder Público. Afinal, o contrato faz lei somente entre as partes, não vinculando pessoas alheias à sua celebração. Por esse motivo, em caso de dano, poderá o terceiro reclamar em face do causador, que, entretanto, terá direito de regresso contra a outra parte. Pelo mesmo motivo, em regra, não terá a cláusula efeito perante o Poder Público, cujo direito de reclamar indenização por dano a terceiro ou ao patrimônio coletivo permanecerá, em princípio, hígido.
Outros limites, porém, têm sido levantados ao redor do mundo, com maior ou menor sucesso dependendo do ordenamento aplicável, mas sempre causando acirrado debate. Nesse sentido, merecem especial destaque a exceção, frequentemente presente nas cláusulas knock-for-knock, para os casos de dolo e culpa grave, conceitos, aliás, algumas vezes equiparados pela doutrina.
O dolo não apresenta maiores dificuldades de conceituação, sendo a ação praticada intencionalmente no sentido de causar o dano. A culpa, por sua vez, é aquela conduta negligente, imprudente ou imperita, na qual a intenção do agente se centrava exclusivamente na conduta, mas não na sua consequência danosa. Assim, a distinção fundamental entre a culpa e o dolo é esta: na primeira, a intenção do agente transcende a conduta, integrando o dano parte do objetivo; na segunda, o agente não pretende causar o dano, tampouco o reconhecendo ou assumindo, repousando sua intenção exclusivamente na ação.
Mas isso é dizer pouco. Necessário distinguir, ainda, entre o dolo eventual e a culpa grave. Devido às suas similaridades, caminham os dois em zona limítrofe, sendo comum sua confusão. Porém, como se verá, existe importante diferenciação entre eles, com relevante implicação em seus desdobramentos práticos. No dolo eventual, o agente assume o risco de produzir a conduta danosa, embora esta não seja, essencialmente, sua intenção. Na culpa grave, a intenção do agente permanece circunscrita à atividade, não desbordando para as consequências da ação. Entretanto, em razão da intensidade da negligência, imprudência ou imperícia, que deve ser tão aberrante, tão patente, tão inaceitável, a conduta sofre uma gradação adicional, diferenciando-a da mera culpa.
No direito inglês e na Escandinávia, a exclusão da responsabilidade mesmo nos casos de dolo (willful misconduct) e culpa grave (gross negligence) é geralmente aceita, sendo apenas afastada quando expressamente estipulada pelas partes no contrato. Entretanto, nos países de tradição romano-germânica, e especialmente no Brasil, a tendência é recusar validade às cláusulas de não indenizar quando verificado dolo ou culpa grave, sendo ambos os conceitos, inclusive, frequentemente equiparados pela doutrina e jurisprudência pátrias.
Embora haja divergência em relação a esse entendimento, o segmento da doutrina pátria que sustenta a invalidade da exclusão de responsabilidade nos casos de dolo e culpa grave geralmente aponta que a exclusão da responsabilidade nesses casos feriria gravemente princípios basilares do ordenamento jurídico, como o venire contra factum proprium. Estar-se-ia a estimular comportamentos antissociais ao se permitir que agentes de má-fé se beneficiassem da própria torpeza.
Vale conferir, ainda, o entendimento da jurisprudência nacional sobre a matéria. Embora ainda não tenha se debruçado especificamente sobre as cláusulas knock-for-knock, a jurisprudência já teve a oportunidade de avaliar as cláusulas de não indenizar, que entende como válidas, desde que observados certos requisitos, a saber: (i) ausência de contrariedade à ordem pública; (ii) paridade das partes; (iii) inexistência de afastamento da responsabilidade em caso de dolo ou culpa grave; e (iv) ausência de intenção de afastar o dever de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato. Nesse sentido, vale conferir o julgado abaixo, do TJ/BA, no qual se reconheceu a validade de cláusula de não indenizar:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA DE COBRANÇA. CONTRATO-TIPO. CLÁUSULAS PREDISPOSTAS. VONTADE PARITÁRIA DAS PARTES. VALIDADE. CLÁUSULA DE RESCISÃO UNILATERAL E DE NÃO-INDENIZAR. REQUISITOS. NÃO-CONTRARIEDADE, NA ESPÉCIE. EMPREITADA. SERVIÇO ESPECÍFICO. NÃO-EXECUÇÃO, NO PRAZO. RESCISÃO UNILATERAL AUTORIZADA. INDENIZAÇÃO E SALDO REMANESCENTE INDEVIDOS. SERVIÇO EXECUTADO PARCILAMENTE. MEDIÇÃO PARCIAL. INTERRUPÇÃO ANTES DO PRAZO CONTRATUAL. PAGAMENTO PROPORCIONAL AO TRABALHO EXECUTADO DEVIDO. SALDO DOS DIAS TRABALHADOS E LUCROS CESSANTES. CLÁUSULA DE NÃO INDENIZAR. PAGAMENTO INDEVIDO. SENTENÇA MANTIDA. APELO PROVIDO PARCIALMENTE. O contrato-tipo se assemelha, mas não se confunde com o contrato de adesão: naquele, as cláusulas, ainda que predispostas, decorrem da vontade paritária de ambas as partes, que as devem respeitar. Havendo bilateralidade de consentimento, não-colisão com preceito de ordem pública, igualdade de posição das partes, inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do estipulante e a ausência da intenção de afastar obrigação inerente à função, tem-se como válida, a priori, a cláusula contratual de rescisão unilateral e de não indenizar. No contrato de empreitada, se a parte não executa o serviço específico para o qual foi contratada no prazo avençado, autorizada está a rescisão unilateral por parte do contratante, sem direito a qualquer indenização ou saldo remanescente em favor do contratado. Se o contrato de empreitada, por sua natureza, admite medição parcial, e foi interrompido, por iniciativa do contratante, antes de findo o prazo contratual, a contratada faz jus ao pagamento do serviço efetivamente executado enquanto vigente o contrato, servindo a cláusula de não-indenizar de escusa apenas para pagamento do saldo de dias não-trabalhados (entre o dia da interrupção dos serviços e o prazo final do contrato) e lucros cessantes. Sentença reformada. Apelo provido parcialmente.”6
Observando os mesmos parâmetros do julgado acima, vale analisar também o seguinte precedente, desta vez do TJ/SP, no qual restou invalidada cláusula de não indenizar fixada em contrato de prestação de serviços odontológicos:
“Também não socorre à apelante a alegação de isenção de responsabilidade assinada pela apelada, pois, a responsabilidade civil da apelada é objetiva e independe da demonstração de culpa, não podendo a vontade das partes se sobrepor à responsabilidade que decorre por lei.
Segundo o jurista Carlos Roberto Gonçalves há cinco requisitos a serem respeitados para que a cláusula de não indenizar seja considerada plenamente válida pelo ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam: a) não colisão com preceito de ordem pública; b) ausência de intenção de afastar obrigação de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato; c) inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do causador do dano; d) bilateralidade de consentimento; e e) igualdade de posição das partes.
Veja-se que o termo de isenção assinado pela apelada esbarra já no primeiro requisito acima expresso, bem como, nos demais, já que há clara violação à norma pública e desigualdade entre as partes, além da intenção de afastar a obrigação de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato – a realização do implante.
Sendo assim, inafastável o dever da apelante em indenizar a autora, nos termos do artigo 186 do Código Civil, a seguir transcrito: (...)"7
Por fim, também o STJ já reconheceu a validade de cláusulas de não indenizar, como pode se ver abaixo:
“Nada impede, desse modo, a inserção da chamada cláusula de não indenizar, ou cláusula de irresponsabilidade, como preferem alguns, valendo conferir, quanto à validade das cláusulas contratuais dessa natureza, os ensinamentos de José de Aguiar Dias (in Cláusula de Não-indenizar: Chamada Cláusula de Irresponsabilidade. 4ª ed., rev., Rio de Janeiro: Forense, 1980, págs. 40 e 43): “Intervindo no contrato, para afastar o efeito do inadimplemento, ou declarada, genericamente, em face de obrigação legal, para suprimir o resultado da infração, a cláusula, em qualquer caso, é emanação da liberdade de contratar, em cujos limites se fixa rigorosamente a sua validade. (...) São as cláusulas de não-indenizar, portanto, sempre válidas, desde que não ofendam a ordem pública e os bons costumes. Como dissemos, não há novidade alguma, nem exigência especial com relação a elas, para terem eficácia. As condições em que se consideram estipulações lícitas são exigidas para qualquer contrato ou ato jurídico: capacidade das partes, objeto lícito, forma prescrita em lei, requisitos de solenidade, consentimento ou acordo de vontades.”8
Como se vê, embora empregadas de forma quase universal nos contratos da indústria offshore, a cláusula knock-for-knock ainda não foi apreciada pela jurisprudência nacional. Da mesma maneira, a doutrina ainda não se aprofundou sobre a matéria de forma específica, sendo as lições pertinentes referentes ao gênero maior das cláusulas de não indenizar. De qualquer forma, os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais disponíveis sobre as cláusulas excludentes de indenizar, logicamente aplicáveis às cláusulas knock-for-knock, indicam sua compatibilidade com o ordenamento pátrio, ressalvados, possivelmente, os casos de dolo e culpa grave, aos quais ambos juristas e tribunais pátrios têm se mostrado contrários em outras situações.
Se, por um lado, o Código Civil, alterado pela lei 13.874/19, passou a prever que “a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada” (art. 421-A, inciso II), por outro lado, os Tribunais pátrios há muito entendem que determinadas previsões contratuais, ainda que reflitam alocações de risco entre os contratantes, não seriam admissíveis por contrariarem o cerne da obrigação assumida pelo contratante, como se verifica em caso de conduta dolosa ou, para alguns estudiosos do tema, também para os casos de culpa grave, que mereceria, nessa avaliação, o mesmo tratamento jurídico do dolo.
Diante da complexidade da questão, e especialmente na indústria marítima offshore, cujas atividades envolvem altíssimo nível de perícia técnica, com a utilização de delicados equipamentos, a definição clara e objetiva no contrato sobre a caracterização da culpa grave se torna ainda mais relevante.9
Independentemente dessa questão, a cláusula knock-for-knock traz o inegável benefício de permitir que os contratantes, diante de um dano concreto, concentrem-se na solução do problema, e não na atribuição recíproca de responsabilidades, como usualmente ocorre quando essa cláusula não se encontra presente. Privilegia-se, assim, o ambiente de transparência e colaboração entre os contratantes, que terão incentivos mútuos para evitar acidentes na operação, já que responderão pelos danos sofridos, ainda não sejam decorrentes de sua culpa (salvo, evidentemente, as exceções anteriormente mencionadas).
Por fim, é interessante notar a repercussão dessas cláusulas nos contratos de seguro. As apólices de seguro relacionadas a contratos que adotam a cláusula knock-for-knock geralmente conterão também a renúncia, por parte da seguradora, do direito de requerer, via ação de regresso, indenização do causador do dano, com exceção das situações já citadas, como a ocorrência de dolo. Não fosse assim, a sub-rogação da seguradora contra o agente do dano acabaria por anular a isenção recíproca pretendida pela cláusula knock-for-knock.
As cláusulas knock-for-knock percorreram um longo caminho e ainda estão longe de atingir sua forma final. Utilizadas amplamente na indústria nacional de óleo e gás e em contratos de afretamento -- desdobrando-se frequentemente nos chamados Acordos Múltiplos de Isenção de Responsabilidade, cuja análise foge ao escopo deste breve artigo -- tais cláusulas se encontram em constante mutação, refletindo a rápida evolução da indústria e das necessidades de seus agentes. No Brasil, será interessante acompanhar como a doutrina e os Tribunais Pátrios receberão tais evoluções, especialmente no que diz respeito às interações mais extremas da cláusula knock-for-knock, como as que incluem, por exemplo, a exclusão a responsabilidade mesmo nos casos de dolo e culpa grave.
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1 PERIVOLARIS, Ana Carolina. Offshore Contracts: Liability and Indemnity Regimes (Masters Dissertation). University of Olso, Faculty of Law, Oslo, 2008. Disponível aqui.
2 Alguns autores apontam origens alternativas para a cláusula. Nesse sentido: “The knock-for-knock principle is said to have appeared during World War II, where countries of the allied forces agreed that in case of collision between allied ships, each State would bear the loss incurred by its ship regardless of which bore the responsibility for the collision. It is also reported that in common law countries (United Kingdom, USA and Australia), it has been usual practice in the car insurance business to cover losses consecutive to traffic accidents on a knock-for-knock basis. This meant that insurance companies would make agreements according to which each would compensate its own client’s losses, regardless of whether the client was at fault or not, and waive their possible right of recourse against the insurer of the party responsible for the accident.” CAVALERI, Sylvie Cécile. The validity of knock-for-knock clauses in comparative perspective. CEVIA Working Paper Series, Copenhagen, Issue 3/2018, No. 12, Outubro, 2017. Disponível aqui.
3 ARLOTA, Alexandre Sales Cabral. A cláusula knock-for-knock e sua admissibilidade à luz do direito brasileiro (Tese de Doutorado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito, Rio de Janeiro, 2018. Disponível aqui.
4 Ibidem. pp. 122-123/179.
5 PARCHOMOVSKY, Gideon; STAVANG, Andre. Contracting around tort defaults: the knock-for-knock principle and accident costs. CREE Working Paper 14/2013. Disponível aqui.
6 TJ/BA - APL: 03207479420118050001, Relator: Telma Laura Silva Britto, Terceira Câmara Cível, Data de Publicação: 24/08/2016.
7 TJ/SP - AC: 10141782020178260590 SP 1014178-20.2017.8.26.0590, Relator: Alexandre Coelho, Data de Julgamento: 16/06/2021, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/06/2021.
8 REsp 1169109/DF, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/06/2010, DJe 01/07/2010.